Seriam férias de reencontro em julho com a filha numa casa alugada no meio do silêncio, praias de rio e mar, numa aldeia de mil habitantes. De repente, uma dor alucinante. “Vomitei, pensei em intoxicação alimentar. Fui a um hospital público a duas horas e meia dali, em Portimão, no Algarve”. Como a fila dava voltas na emergência por conta da Covid, a próxima parada foi um hospital particular, à 1h da madrugada. Fez tomografia computadorizada do abdômen. Injetaram um remédio para dor, deram antibiótico e a liberaram. Diagnóstico: gastroenterite.
Como continuava a urrar de dor, com febre, voltou com a filha para Lisboa. Foi ao consultório de um médico brasileiro que atende também na rede pública. Ele diagnosticou cálculo renal. “Deu uma batida do rim. Eu pulei. 'Viu? É pedra no rim, aposto' ”. No dia seguinte, já de cadeira de rodas pela dor, foi à CUF, o sonho de todo mundo. Tipo Copa Star, Sírio Libanês. O ultrassom renal não acusou nada. “Só olharam o rim. Não investigaram. Português pensa na caixinha”.
Sem evacuar e sem comer quase nada, barriga inchada como se estivesse grávida, começou a vomitar água. De ambulância dos bombeiros, foi para o Hospital Universitário São José, referência pública. O enfermeiro lhe deu uma pulseira verde, de casos não graves! Como gritava que ia morrer, uma residente se compadeceu e a mandou para o cirurgião. “Médicos não botam a mão em você até saber se está ou não com Covid. Fiz PCR na emergência, mas o resultado, negativo, levou seis horas! Uma sonda me tirou dois litros de suco gástrico. Mas só me operaram às 2h da manhã do dia seguinte”.
“Não fizeram ressonância. Abriram minha barriga, dos seios à virilha, sem saber o que havia dentro. Em duas horas, me abriram, descobriram o apêndice já supurado e me grampearam, técnica em desuso no Brasil. Fiquei 12 dias na UTI”. Outro trauma. “Só 4 enfermeiros por turno para 32 leitos. Cama quebrada. Sem suporte para o soro. A comadre não era individual. Era uma enfermaria mista. Talvez por ser uma sociedade patriarcal, cada homem tinha sua arrastadeira (comadre). Mulher não, tinha que pedir e esperar”. Teve diarreia, mas não havia papel no banheiro. Teve flebite e, quando reclamava de dor pedindo para trocar a veia, ouvia um deboche. “’O que é que é, brazuca?’ ‘Gente, sou cidadã portuguesa’, eu respondia. Muito preconceito”.
Com seis quilos a menos, teve alta antes do tempo. “Acho que precisavam do leito. Minha ferida ainda estava purgando e eu tinha febre baixa. Não me receitaram antibiótico nem recomendaram cinta. Não me deram telemóvel (celular) de nenhum médico. Era início de agosto. Auge do verão. Médicos em férias. O único disponível se negava a examinar paciente pós-cirúrgico. Com febrão de quase 39, liguei em pânico para o hospital. Me receitaram paracetamol!”
Uma semana após a alta, em consulta marcada conforme o padrão, o cirurgião receitou antibiótico oral. “Com isso, você pode pegar um avião”. No Rio, ela volta aos poucos à vida, recuperando-se da terceira cirurgia, ainda com muitas limitações. Precisou reconstruir o umbigo, que depois de tantos cortes e intervenções estava na lateral direita do corpo. Teve de colocar uma tela porque não se conseguia unir mais os tecidos, após as infecções. Sempre foi saudável, forte, adepta de ioga, comida orgânica, meditação, bicicleta. Sempre nadou às 6h da manhã. Precisa esperar até retomar seu cotidiano.
Ah, você pode dizer, erros médicos acontecem, um caso não pode condenar a medicina de um país. Verdade. E por isso conversei com turistas ou moradores de Portugal. Escutei histórias horripilantes.
Enfermeiro em hospital servindo carne de porco para recém-operado de estômago.
Parafusos enferrujados em joelhos.
Médico que não conseguiu enxergar um tumor na tireoide olhando exames de imagem.
Ruth de Aquino - O Globo
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