Enquanto a população festejava na única praça
a queda da República ainda na primeira infância, um grupo sobraçando
carabinas prendeu o delegado, outro se apropriou da estação da estrada
de ferro inaugurada no ano anterior e um terceiro expropriou o telégrafo
para comemorar a chegada de informações alvissareiras sobre o andamento
da insurreição em outras cidades. Depois de algumas horas, o primeiro
telegrama informou que os monarquistas de São Carlos do Pinhal se haviam
sublevado. Não chegou mais nenhum. Diante da constatação de que apenas
duas cidades estavam dispostas a sepultar a República, os líderes do
movimento em Ribeirãozinho voltaram para casa, e ali aguardaram os
encarregados de levá-los para a gaiola. A monarquia durou um dia.
Compreensivelmente
desolada, Ribeirãozinho baixou o penacho durante alguns meses, até que a
lira do delírio foi novamente acionada, no mesmo ano da graça de 1902,
pela notícia perturbadora: dezenas de leprosos, como eram então chamados
os futuros hansenianos, vinham dos lados de Araraquara em direção à
vila, avançando pelos trilhos da estrada de ferro. De novo, os moradores
não perderam tempo com reuniões deliberativas, trocas de ideia e outras
firulas de pouca valia.
Enquanto mulheres e crianças se trancavam em
casa, os homens rumaram para a estação de trem armados de carabinas,
trabucos, garruchas, espingardas, um e outro facão de cortar cana
simulando baionetas. De bruços na linha férrea, passaram a noite e a
madrugada esperando a aparição do inimigo. Na manhã seguinte,
descobriram que a marcha dos leprosos era boato.
O que faria a numerosa
milícia civil se fosse verdade?
Negociariam uma retirada sem sangue ou
repeliriam a ameaça de contágio na base do tiro, porrada e bomba?
Como
já não restavam sobreviventes quando nasci, não pude decifrar o enigma.
Mas o ânimo beligerante da tropa improvisada recomenda que se crave a
segunda opção. Aquilo tinha tudo para não acabar bem.
Não parecem
mais ajuizados que aqueles sertanejos de Ribeirãozinho os sete homens e
duas mulheres que compõem a bancada majoritária do Supremo Tribunal
Federal.
Pelo que andou dizendo em Lisboa o ministro Dias Toffoli, a
monarquia foi oficiosamente ressuscitada no momento em que a Corte
anexou ao amplo espaço que já dominava o vasto território do Poder
Moderador.
Pelas audácias fora da lei que vêm colecionando, os ministros
Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso são os braços do decano
Gilmar Mendes, o déspota no trono.
Os leprosos da hora agrupam as
ramificações da grande tribo dos “negacionistas” — os que tomaram
vacina, os que enxergam também efeitos colaterais perigosos na
imunização sem limites, os que dispensam o uso da máscara em conversas
no restaurante, os que se recusam a enxergar um genocida no presidente
Jair Bolsonaro e, fora o resto, os que se atrevem a criticar integrantes
da nobreza de toga. “Mexeu com um, mexeu com todos”, avisou há pouco
tempo Luiz Fux.
André Mendonça tem tudo para tornar-se um ótimo juiz: basta fazer o contrário do que fazem os semideuses de picadeiro
Nesta
semana, a Constituição foi novamente submetida a selvagens sessões de
tortura por gente que existe para preservar-lhe a integridade. Alexandre
de Moraes, o Carcereiro Compulsivo, mandou um recado ao
procurador-geral da República, Augusto Aras: convém concordar com os
castigos impostos ao preso político Roberto Jefferson, ao exilado
político Allan dos Santos, ao deputado federal Daniel Silveira e a quem
mais lhe aprouver.
E é bom parar de divergir das sucessivas provocações
feitas por Moraes ao chefe do Poder Executivo.
Por ter sugerido que Jair
Bolsonaro fosse poupado de prestar depoimento à Polícia Federal, Aras
foi tratado grosseiramente pelo capitão do mato togado.
O chefe do
Ministério Público foi intimado a enviar ao ministro, no prazo de 24
horas, o material que há na procuradoria sobre o inquérito que Moraes
abriu a pedido de Omar Aziz — este sim um caso de polícia.
Barroso,
depois de novas alusões a “autoridades genocidas”, decidiu que só
entrariam no país portadores do passaporte vacinal.
Alguém lhe soprou
que, aplicada a brasileiros que viajaram para o exterior sem o
documento, estaria criada a versão brasileira de um personagem que até
agora existiu apenas no cinema: o exilado de aeroporto.
Ao reescrever o
decreto às pressas, acabou endossando quarentenas e testes que rejeitara
quando propostos pelo presidente da República.
A suprema semana
terminou com a posse do ministro André Mendonça, que tem tudo para
tornar-se um ótimo juiz: basta fazer o contrário do que fazem os
semideuses de picadeiro — e qualificar publicamente de inconstitucionais
as decisões inconstitucionais dos colegas.
Talvez consiga injetar uma
dose de coragem em Nunes Marques, a decepcionante primeira indicação de
Bolsonaro.
Quando isso vai acabar?, perguntam-se milhões de
brasileiros inconformados com a arrogância insolente do que é, em sua
essência, um time de funcionários públicos do grupo A muito bem
remunerados com o dinheiro dos impostos.
Vai acabar no momento em que a Polícia Federal se recusar a prender
alguma autoridade alvejada por mais um mandado de prisão proibido pela
Constituição.
Leia também “Os imoderados no poder”
Augusto Nunes, colunista - Revista Oeste
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