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sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

América vermelha - Revista Oeste

Protestos contra o governo chileno em 2019| Foto: Unsplash
Protestos contra o governo chileno em 2019| Foto: Unsplash

O encontro virtual teve a participação dos ditadores Nicolás Maduro (Venezuela), Miguel Díaz-Canel (Cuba) e Daniel Ortega (Nicarágua). Outros países latinos enviaram representantes, inclusive os narcoguerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as Farc. Quem mediou o evento foi a petista Monica Valente, mulher de Delúbio Soares, o tesoureiro oficial do mensalão.

É evidente que nada do que foi debatido no encontro teve alguma relevância a ponto de ser publicado em jornais, nem chacoalhou as bolsas pelo mundo, muito menos incomodou o empresariado. Mas a ordem para o Foro de São Paulo se reagrupar fazia algum sentido. Em outubro do ano que vem, Lula quer retomar o projeto de poder do PT, interrompido pela sua temporada na cadeia e pelo governo Jair Bolsonaro. Nada mais favorável do que buscar isso cercado por uma vizinhança amistosa.

“Não imaginávamos que esse encontro de partidos e movimentos chegasse aonde chegou, tornando-se um foro permanente e até uma referência para partidos de esquerda e progressistas de todo o mundo” (Lula, em julho do ano passado)

Chile
O episódio mais recente do avanço das labaredas vermelhas pelo continente americano ocorreu no Chile. Gabriel Boric, um deputado de 35 anos do Partido Comunista e líder estudantil — seja lá o que isso ainda signifique neste século —, foi eleito presidente. Presidente da República, não do grêmio estudantil.

A reportagem de Oeste vasculhou a trajetória de Boric e descobriu que, em janeiro de 2005, os guardas do supermercado Líder, na cidade chilena de Punta Arenas, notaram que um jovem havia saído do estabelecimento com um vidro de álcool sem pagar. Eles o interpelaram, levaram-no para a polícia e o ficharam por furto. O caso não seguiu adiante por causa do princípio da insignificância. Anos mais tarde, o rapaz afirmaria ter cometido “um erro”. Seu nome: Gabriel Boric.

O esquerdista Gabriel Boric é eleito presidente do Chile, 
 no segundo turno | Foto: Reprodução Facebook

Boric não é de família pobre. Seu pai foi gerente da Enap —  equivalente à Petrobras. A condição financeira confortável permitiu que o garoto frequentasse o Colégio Britânico de Punta Arenas, no sul do país. Seu endereço à época, conforme consta no Boletim de Ocorrência, era o de uma mansão de dois andares de frente para o Pacífico.

Curiosamente, sua mãe fez exatamente a mesma coisa anos depois — no mesmo supermercado. Não foi a primeira vez. Em 2013, ela havia sido flagrada com cerca de R$ 250 em produtos surrupiados. Em 2016, por ser reincidente, a Justiça determinou que ficasse um ano sem entrar no estabelecimento.  Boric apareceu na política em 2011, quando estudantes tomaram as ruas do país para protestar, entre outras coisas, contra a cobrança de mensalidades no ensino superior público (o que também existe em países de economia mais aberta, como os Estados Unidos). Em 2014, tornou-se deputado federal.

Longe de ser moderado, o partido de Boric, o Convergência Social, anuncia em sua plataforma a busca por “uma sociedade socialista, libertária e feminista”. O documento assusta ao falar em “socialização da produção”. O texto ainda critica a “aliança entre o patriarcado e o capital” e defende um projeto “continentalmente integrado”. Boric é uma espécie de Guilherme Boulos que deu certo.

Também sobrou, claro, para o presidente Jair Bolsonaro, classificado por ele como “racista, homofóbico” e adepto do “discurso de ódio”. Quando o brasileiro visitou o líder chileno Sebastián Piñera, em 2019, Boric se juntou aos baderneiros que organizaram um ato contra o presidente do Brasil.

Retrocesso
Num país com quase 20 milhões de habitantes do tamanho de Minas Gerais — e renda per capita maior do que o dobro do Brasil, o eleitor chileno resolveu praticar skate na Cordilheira dos Andes. Há mais de duas décadas, o Chile se nega a integrar os acordos tarifários do Mercosul. É um país de tradição econômica liberal, a despeito dos devaneios de Michelle Bachelet. Trata-se de uma nação que optou por negociações bilaterais, especialmente com os Estados Unidos. Além disso, detém o Porto de Antofagasta, com saída para o Oceano Pacífico.

A corda chilena, contudo, parece ter estourado num daqueles momentos de distração dos políticos do andar de cima. Sebastián Piñera enfrentou turbulências e pedidos de impeachment durante o mandato. Teve de manter o olhar fixo no Legislativo para não sair pela porta dos fundos e não entendeu o que acontecia na praça.  Enquanto isso, grupos de vândalos encapuzados — como os black bloc brasileiros de 2013 — decidiram tomar as ruas, com Boric à frente. Pelo menos duas igrejas foram incendiadas desde 2019, entre elas a bela Igreja da Assunção, na Praça Itália, em Santiago. O Templo dos Carabineros (polícia chilena) também foi queimado.

A economia passou longe dos debates eleitorais neste ano de pandemia. A temática foi uma profusão de pautas LGBT mescladas com liberação do aborto, ampliação de programas sociais — Boric pretende criar uma espécie de Bolsa Família — e, especialmente, os direitos dos índios.

A presidente da Assembleia Constituinte, deputada Elisa Loncón, é uma representante dos mapuches. Ela batizou a nova Carta Magna, que deverá ser aprovada em 2022, como “Constituição da Mãe Terra”. Em outubro, quando a Assembleia realizou votações, Elisa conseguiu emplacar um pré-texto que fala em punir o “negacionismo” cultural e a opressão “aos povos originários durante a colonização europeia” — cerca de 10% do país afirma ser indígena. Segundo ela, são esses 10% que o Estado deve priorizar a partir de agora.

Vizinhos incômodos
Desde 2011, a América Latina não era tão vermelha. E o cenário pode ser ainda pior — e inédito — caso o Brasil e a Colômbia optem por governos de esquerda no próximo ano. Equador e Paraguai também são exceções, mas têm peso menor na economia e na geopolítica do continente. Os equatorianos bateram na trave neste ano, mas o banqueiro Guillermo Lossa venceu a esquerda.

A Colômbia permanece sob o comando de Iván Duque, discípulo do ex-presidente Álvaro Uribe. Mas os colombianos vão às urnas em março para eleger um novo presidente. O senador Gustavo Petro, ex-integrante da guerrilha M-19 e ex-prefeito de Bogotá, aparece como favorito nas pesquisas eleitorais.

A lista de países sob domínio socialista-comunista é extensa e reúne a longeva ditadura cubana, a Venezuela chavista e a Nicarágua do golpista Daniel Ortega, que mandou prender seus adversários políticos. A Bolívia segue à mercê do grupo de Evo Morales e o Peru passou a ser administrado pelo sindicalista Pedro Castillo, uma espécie de Dilma Rousseff que fala espanhol.

Principal parceiro comercial do Brasil no continente, a Argentina segue com seu tango de alternar passos à direita, seguidos de recuos à esquerda. O único alento no país platino foi a vitória da direita nas eleições legislativas, que, além do susto na dupla presidencial, equalizou as forças.

Outra novidade foi a eleição neste mês da socialista Xiomara Castro em Honduras, encerrando um ciclo de 12 anos dos conservadores no poder. Ela é mulher de Manuel Zelaya — que ganhou notoriedade em 2009, ao transformar a embaixada brasileira em Tegucigalpa numa pensão, que ocupou por quatro meses para escapar da cadeia. No México, López Obrador é oficialmente o primeiro presidente de esquerda do país. Eleito em 2018, ele promove um plebiscito para saber se pode seguir até 2024.

Em outubro, será a vez de os brasileiros votarem para presidente. O professor de Ciência Política Jorge Corrado, da Universidade Católica de La Plata, na Argentina, afirma que o pleito no Brasil será crucial para os rumos da região. “É essencial que Bolsonaro — ou quem quer que represente a direita — triunfe”, diz. “Se o Brasil cair, estaremos em um continente incendiado. A tônica da esquerda é alcançar o poder, mudar a Constituição e permanecer no poder.”

Corrado afirma que, para aumentar as chances de sucesso, o presidente brasileiro deve ajustar sua postura pública — sem abrir mão dos princípios. “Ele precisa ter um discurso mais moderado e captar uma faixa maior da população”, diz. “Às vezes, ele tem de ser duro, às vezes conciliador. Se fizer isso, se tornará menos previsível para seus adversários”, argumenta o professor, que também é diretor do Instituto de Estudos Estratégicos de Buenos Aires.

Ele explica ainda que o sucesso da esquerda na América do Sul é fruto de três décadas de articulação conjunta, iniciada depois do colapso da União Soviética. A estratégia vai além da política eleitoral e inclui a ocupação de espaços em órgãos públicos, nas universidades e nos meios de comunicação. “Em alguns países essa semente tardou um pouco mais, em outros, menos, mas em todos ela deu frutos porque o Estado não se deu conta”, afirma. Se quiser vencer essa guerra, a direita precisará lutar nos mesmos fronts.

O que fica de lição para o Brasil na virada de um ano que promete ser de alta combustão política? Que o perigo mora ao lado. Por enquanto.

Leia também “A Nicarágua entra no clube das ditaduras”

 Gabriel de Arruda Castro - Silvio Navarro - Revista Oeste

 

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