É surpreendente que em meros 50 dias à frente do comando do País o governo Bolsonaro tenha conseguido produzir, sozinho, por geração espontânea, de maneira a mais atabalhoada possível, tantas e seguidas crises capazes de macularem perigosamente o seu já incipiente capital político que, de mais a mais, deveria estar sendo usado para os assuntos que de fato interessam aos brasileiros – eleitores ou não, simpatizantes ou não, que dependem de suas ações.
Nos últimos dias em especial, uma montanha-russa de emoções e achincalhe em rede aberta do mandatário polarizaram as atenções. Filhos com poderes plenipotenciários, tais quais membros de uma família real, pintaram o sete. Um deles, o “Zero Dois”, o “pitbull”, como também é conhecido, brincou de fritar ministro, com o aval, estímulo e posterior reforço paterno, que replicou as traquinagens do rebento. A mistura do público e do privado, de assuntos familiares com os de interesse de Estado, esteve em voga, sem limites ou fronteiras.
A presepada se deu, fundamentalmente, via Twitter, meio de comunicação preferido do presidente, que vai se mostrando uma armadilha das grandes contra seus próprios planos de angariar o respeito público – pela fragilidade, óbvia, de segurança nas redes digitais. Bolsonaro pai e filho chamaram o então ministro, agora demitido, Gustavo Bebianno, de “mentiroso”. Fizeram-no arder na fogueira por dias a fio, num interregno pavoroso que parecia insinuar que o mandatário temia rebotes do antes fiel depositário de suas confidências, articulações e mesmo perrengues na Justiça (Bebianno seguia até a semana passada como advogado pessoal de Jair Messias, ao menos em uma ação de queixa-crime do adversário político Ciro Gomes). Ferido na autoestima, humilhado publicamente, o alvo, de fato, não tardou a dar sinais de vingança, numa mal velada chantagem que começou por recados atravessados.
Disse coisas do tipo: “o presidente está com medo de receber algum respingo”. Ou assim: “sou homem, não sou moleque”, “o presidente não morrerá presidente”. E sacramentou com um “eu só fiz o bem, capitão. Até aqui.” Mesmo para quem não tem o dom de decifrar sinais, a mensagem ficou clara. A turma dos panos quentes buscou amenizar. Negociou, apelou, mas o estrago estava feito. O que se seguiu foi ainda mais constrangedor. O presidente, que pareceu acusar o golpe, ofereceu ao novo desafeto o posto de diretor numa estatal que lhe renderia, pelas informações do próprio Bebianno, mais de R$ 1,1 milhão em salário anual, ou, a sua escolha, uma embaixada na Europa. Não fosse suficiente, o chefe da Nação ainda se submeteu a gravar um vídeo no qual, visivelmente desconcertado, e também despertando vergonha alheia a quem o assistia em transmissão nacional, teceu elogios ao subordinado afastado. Para que tudo Isso? Talvez o estoque de munição do contendedor não tivesse se esgotado. A autoridade executiva saiu chamuscada.
Qualquer mandatário que perde a confiança em um dos seus ministros pode, e deve, despachá-lo de imediato com uma canetada no Diário Oficial. Simples assim. Não precisava montar tamanho escarcéu e arrastar a Nação nesse show de inabilidade. Bolsonaro parece enxergar fantasmas na própria sombra. Imaginou que Bebianno estava urdindo na surdina a sua desestabilização, como “agente infiltrado”. Não havia gostado nada de alguns dos movimentos do ex-ministro. Veio o bate-boca por mensagens. O filho entrou no meio e botou mais lenha na fogueira. Ao negar que havia ocorrido três conversas com o subordinado e tachá-lo de mentiroso, Bolsonaro pai se colocou na situação de ser, ele próprio, desmentido pelos fatos e gravações e saiu como o Pinóquio da história. Não foi a primeira vez. Já no início do mandato foi desautorizado por um assessor, quando falou que iria baixar a alíquota do Imposto de Renda.
Ao lado dele, o elenco de ministros, cada um a sua maneira, vem praticando escorregões dignos de assombro. A ministra Damares, dos Direitos Humanos, depois do “meninos vestem azul, meninas, rosa”, sugeriu aos pais de meninas que fossem embora do País. O ministro da Educação disse que o brasileiro é canibal e rouba em viagens, o do Meio Ambiente destratou o ícone ambientalista morto Chico Mendes, o chanceler segue a brigar com parceiros externos enquanto o ministro do Turismo, envolto no mesmo laranjal de Bebianno, é mantido no posto e o ministro chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, sofre acusação de caixa dois, tal qual o escolhido da pasta da Saúde, Luiz Mandetta, que foi denunciado por fraude em licitação e tráfico de influência.
Ao menos sete titulares do primeiro escalão do presidente estão hoje sob suspeição e no rol ainda se encontra outro dos filhos, o senador Flavio Bolsonaro, que entrou na mira por ter montado uma espécie de “mensalinho” quando dava expediente no seu gabinete na Assembleia do Rio. Isso tudo em um governo que prometeu uma revolução ética. Das palavras às ações, vai se verificando uma larga distância. O amadorismo e a falta de traquejo para lidar com os afazeres e rotina do Planalto têm despertado a desconfiança dos próprios aliados. Militares falam em tutelar Bolsonaro.
Políticos e partidos estão organizando resistência a sua atuação e já lhe brindaram com uma fragorosa derrota na votação de seu primeiro projeto, sobre uma lei que limitaria o acesso à informação. Não é pouca coisa a debilidade de articulação do Planalto no momento. No período inicial, tradicionalmente de lua de mel, com o alto capital de popularidade angariado nas urnas, governantes normalmente apostam esse arsenal para fazer valer no Congresso suas pautas mais amargas e complexas. Bolsonaro, ao contrário, desprezou a liturgia do cargo, vestiu-se de camiseta pirata, chinelo e calça moletom, e dedicou-se à sanha tuiteira de ataques e despachos informais, como quem ainda não desceu do palanque. Estão todos à espera de que ele perceba a real dimensão do posto que assumiu. E desista dessa prática da autossabotagem.
Carlos José Marques, diretor editorial da Editora Três
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sábado, 23 de fevereiro de 2019
A autossabotagem do governo
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