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sábado, 23 de fevereiro de 2019

A autossabotagem do governo

É surpreendente que em meros 50 dias à frente do comando do País o governo Bolsonaro tenha conseguido produzir, sozinho, por geração espontânea, de maneira a mais atabalhoada possível, tantas e seguidas crises capazes de macularem perigosamente o seu já incipiente capital político que, de mais a mais, deveria estar sendo usado para os assuntos que de fato interessam aos brasileiros – eleitores ou não, simpatizantes ou não, que dependem de suas ações. 

Nos últimos dias em especial, uma montanha-russa de emoções e achincalhe em rede aberta do mandatário polarizaram as atenções. Filhos com poderes plenipotenciários, tais quais membros de uma família real, pintaram o sete. Um deles, o “Zero Dois”, o “pitbull”, como também é conhecido, brincou de fritar ministro, com o aval, estímulo e posterior reforço paterno, que replicou as traquinagens do rebento. A mistura do público e do privado, de assuntos familiares com os de interesse de Estado, esteve em voga, sem limites ou fronteiras. 

A presepada se deu, fundamentalmente, via Twitter, meio de comunicação preferido do presidente, que vai se mostrando uma armadilha das grandes contra seus próprios planos de angariar o respeito público – pela fragilidade, óbvia, de segurança nas redes digitais. Bolsonaro pai e filho chamaram o então ministro, agora demitido, Gustavo Bebianno, de “mentiroso”. Fizeram-no arder na fogueira por dias a fio, num interregno pavoroso que parecia insinuar que o mandatário temia rebotes do antes fiel depositário de suas confidências, articulações e mesmo perrengues na Justiça (Bebianno seguia até a semana passada como advogado pessoal de Jair Messias, ao menos em uma ação de queixa-crime do adversário político Ciro Gomes). Ferido na autoestima, humilhado publicamente, o alvo, de fato, não tardou a dar sinais de vingança, numa mal velada chantagem que começou por recados atravessados. 

Disse coisas do tipo: “o presidente está com medo de receber algum respingo”. Ou assim: “sou homem, não sou moleque”, “o presidente não morrerá presidente”. E sacramentou com um “eu só fiz o bem, capitão. Até aqui.” Mesmo para quem não tem o dom de decifrar sinais, a mensagem ficou clara. A turma dos panos quentes buscou amenizar. Negociou, apelou, mas o estrago estava feito. O que se seguiu foi ainda mais constrangedor. O presidente, que pareceu acusar o golpe, ofereceu ao novo desafeto o posto de diretor numa estatal que lhe renderia, pelas informações do próprio Bebianno, mais de R$ 1,1 milhão em salário anual, ou, a sua escolha, uma embaixada na Europa. Não fosse suficiente, o chefe da Nação ainda se submeteu a gravar um vídeo no qual, visivelmente desconcertado, e também despertando vergonha alheia a quem o assistia em transmissão nacional, teceu elogios ao subordinado afastado. Para que tudo Isso? Talvez o estoque de munição do contendedor não tivesse se esgotado. A autoridade executiva saiu chamuscada. 

Qualquer mandatário que perde a confiança em um dos seus ministros pode, e deve, despachá-lo de imediato com uma canetada no Diário Oficial. Simples assim. Não precisava montar tamanho escarcéu e arrastar a Nação nesse show de inabilidade. Bolsonaro parece enxergar fantasmas na própria sombra. Imaginou que Bebianno estava urdindo na surdina a sua desestabilização, como “agente infiltrado”. Não havia gostado nada de alguns dos movimentos do ex-ministro. Veio o bate-boca por mensagens. O filho entrou no meio e botou mais lenha na fogueira. Ao negar que havia ocorrido três conversas com o subordinado e tachá-lo de mentiroso, Bolsonaro pai se colocou na situação de ser, ele próprio, desmentido pelos fatos e gravações e saiu como o Pinóquio da história. Não foi a primeira vez. Já no início do mandato foi desautorizado por um assessor, quando falou que iria baixar a alíquota do Imposto de Renda. 

Ao lado dele, o elenco de ministros, cada um a sua maneira, vem praticando escorregões dignos de assombro. A ministra Damares, dos Direitos Humanos, depois do “meninos vestem azul, meninas, rosa”, sugeriu aos pais de meninas que fossem embora do País. O ministro da Educação disse que o brasileiro é canibal e rouba em viagens, o do Meio Ambiente destratou o ícone ambientalista morto Chico Mendes, o chanceler segue a brigar com parceiros externos enquanto o ministro do Turismo, envolto no mesmo laranjal de Bebianno, é mantido no posto e o ministro chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, sofre acusação de caixa dois, tal qual o escolhido da pasta da Saúde, Luiz Mandetta, que foi denunciado por fraude em licitação e tráfico de influência. 

Ao menos sete titulares do primeiro escalão do presidente estão hoje sob suspeição e no rol ainda se encontra outro dos filhos, o senador Flavio Bolsonaro, que entrou na mira por ter montado uma espécie de “mensalinho” quando dava expediente no seu gabinete na Assembleia do Rio. Isso tudo em um governo que prometeu uma revolução ética. Das palavras às ações, vai se verificando uma larga distância. O amadorismo e a falta de traquejo para lidar com os afazeres e rotina do Planalto têm despertado a desconfiança dos próprios aliados. Militares falam em tutelar Bolsonaro.

Políticos e partidos estão organizando resistência a sua atuação e já lhe brindaram com uma fragorosa derrota na votação de seu primeiro projeto, sobre uma lei que limitaria o acesso à informação. Não é pouca coisa a debilidade de articulação do Planalto no momento. No período inicial, tradicionalmente de lua de mel, com o alto capital de popularidade angariado nas urnas, governantes normalmente apostam esse arsenal para fazer valer no Congresso suas pautas mais amargas e complexas. Bolsonaro, ao contrário, desprezou a liturgia do cargo, vestiu-se de camiseta pirata, chinelo e calça moletom, e dedicou-se à sanha tuiteira de ataques e despachos informais, como quem ainda não desceu do palanque. Estão todos à espera de que ele perceba a real dimensão do posto que assumiu. E desista dessa prática da autossabotagem.

Carlos José Marques, diretor editorial da Editora Três

 

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Liberal

Coluna publicada em O Globo - Economia 10 de janeiro de 2019
 
Na comemoração dos seus 175 anos, em setembro último, a revista Economist produziu magnífico material sobre a situação global do liberalismo, começando pela definição mais atualizada do termo. Não se trata, diz, do “progressismo” esquerdista dos campi universitários americanos (e brasileiros, acrescentamos) nem do “ultra liberalismo” direitista excomungado pela intelectualidade francesa (e brasileira). Liberalismo, eis a definição, é um compromisso com a dignidade individual, mercados abertos, governo limitado e fé no progresso humano realizado pelo debate e por reformas.

Não faltou progresso nos séculos de prevalência do liberalismo e do capitalismo, seu lado econômico. Por exemplo: expectativa global de vida em 1850 era de apenas 30 anos; hoje, acima de 70 anos. População vivendo na extrema pobreza, 80%; hoje, 8%. E o número absoluto de pobres caiu, mesmo com a população mundial passando de 100 milhões para 6,5 bilhões. Os direitos civis são mais respeitados do que nunca.  Claro que há diferenças entre os países, mas o mundo todo melhorou de vida. O progresso começou pelo Ocidente e, dado o sucesso, acabou se espalhando, no fenômeno conhecido por globalização.  De uns tempos para cá, entretanto, surgiu um claro mal-estar com o liberalismo. A questão principal está na desigualdade – os ricos avançam mais – e numa bronca contra as elites dominantes na política e na economia.

Essa onda antiliberal leva, na Europa e nos Estados Unidos, a um populismo de extrema direita. Na economia, isso leva a uma demanda por mais controle do governo para, por exemplo, defender indústrias locais, mesmo ineficientes, caso de Trump.  Na política, vem uma descrença na democracia, já que os sistemas eleitorais permitiram o contínuo comando das mesmas lideranças partidárias (que aliás, estão sendo varridas na Europa).

Na sociedade, há o retorno do conservadorismo. Por exemplo: o casamento entre pessoas do mesmo sexo é um avanço liberal evidente; a pessoa tem o direito (a liberdade) de escolher com quem quer viver. Já para o populismo de direita, casamento se dá entre homens e mulheres – e ponto final.  Essa onda bateu no Brasil, mas de um modo, digamos, enviesado. O que torna o debate confuso e raivoso – sendo nosso propósito aqui tentar colocar um pouco de bom senso.

Para começar, na economia, a demanda dominante no Brasil, expressa nas urnas, é por uma política liberal – menos Estado, mais privatizações, facilitar a vida de quem empreende honestamente, mercados abertos, livre competição. E isso faz sentido depois da falência de um sistema de mais Estado, mais gasto público – e mais corrupção. Nesse lado, portanto, a nova direita brasileira caminha na direção contrária da global.

Outra diferença importante: a direita europeia e americana é protecionista. Já a brasileira, pelo menos nas palavras de Paulo Guedes, é por livre comércio e competição entre investimentos nacionais e estrangeiros.  Já na pauta política e social, as direitas se encontram no anti-liberalismo. E não raro se encontram com a esquerda brasileira, representada pelo PT e seus associados. Por exemplo: no ataque à imprensa livre, a nossa aqui, considerada ao mesmo tempo comunista e fascista. É normal – todo autoritarismo detesta a imprensa crítica.

Já no social, a direita brasileira encontra a europeia no casamento (entre azul e rosa), na desconfiança em relação à democracia (a história da fraude nas urnas), na tentativa de impor seus padrões morais para todo mundo e excluir os adversários. Aliás, fazendo o mesmo que a esquerda faz, pelo avesso.

Não estranha que os liberais, na definição da Economist, fiquem no meio de um fogo cruzado. Mas o progresso brasileiro está no liberalismo na economia, na sociedade, nos costumes e, sobretudo, nas reformas que eliminem privilégios de uma elite voraz e corrupta.  E só pra lembrar: entre os que vivem no Brasil, os únicos que não são descendentes de imigrantes ou imigrantes de primeira viagem são os índios, que têm suas próprias culturas e não cantam o hino nacional. [as imigrações do passado eram necessárias e convenientes por trazer o progresso, incluindo melhores condições de vida para os locais - as atuais, infelizmente,  estão mais para uma distribuição de miséria.]

Carlos Alberto Sardenberg, jornalista

 


segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

A linha vermelha

Deferência de ministros diante de fortalecimento da Presidência testará seu limite para assegurar direitos fundamentais

O ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, revogou na semana passada duas decisões que ele mesmo havia proferido. Na quarta (12), desistiu de proibir multas por inobservância ao tabelamento do frete, concessão da gestão Temer aos caminhoneiros amotinados em maio. Na quinta (13), abriu mão de bloquear a extradição do terrorista Cesare Battisti, condenado na Itália por quatro homicídios cometidos na década de 1970. [decisão que foi ampla e previamente divulgada pela mídia, ensejando a fuga do facínora - que agora corre o risco de continuar impune.]

Na segunda (10), a ministra Rosa Weber fez uma defesa extensa dos direitos fundamentais e do papel do Judiciário como antídoto à tirania da maioria diante do futuro presidente, Jair Bolsonaro, que dela recebia a certificação formal de sua eleição. No início do mês, o ministro Gilmar Mendes suspendeu, com um pedido de vista, o julgamento de uma ação para tirar o ex-presidente Lula da prisão. [o ministro Gilmar Mendes, apesar da sua fama de 'soltador' de bandidos, vez ou outra toma a decisão acertada e que deverá permitir que presidiário petista aguarda na prisão por mais uma condenação - afinal, o criminoso ex-presidente é réu em mais sete processos e se cada um render em torno de dez anos de prisão, os votos de que ele 'mofe' na cadeia, do presidente Bolsonara e de milhões de brasileiros, serão atendidos.] A defesa argumenta que Sergio Moro, titular da Justiça de Bolsonaro, agiu por motivação política no processo contra o líder petista.

Durante a campanha eleitoral, Dias Toffoli, presidente do STF, nomeou um general da reserva como assessor especial e chamou de “movimento de 1964” o golpe daquele ano. Como o general original foi convidado para ser ministro da Defesa, Toffoli escalou outro no lugar [o DIREITO de uma autoridade escolher seus auxiliares é um direito que apesar de criticado é inalienável.
Por serem  os escolhidos ocupantes de um cargo que os sujeita a uma demissão 'ad nutum', eventuais erros na escolha ou de desempenho serão corrigidos sem delongas.] . O respaldo popular e parlamentar do presidente da República estava debilitado desde a segunda posse de Dilma Rousseff. O Congresso, inicialmente, e sobretudo o Supremo ocuparam as lacunas de poder e assim também se expuseram ao desgaste inevitável.

A autoridade do Planalto, associado ao xerife anticorrupção e à corporação que melhor sobreviveu ao descrédito geral (as Forças Armadas), volta a alevantar-se. O Supremo se retrai e se resguarda, como indicam os movimentos iniciais de Fux, Gilmar e Toffoli. É de Rosa, no entanto, a linha vermelha. Se a reclusão da corte significar endosso a invectivas contra o regime das liberdades, teremos trocado um tipo de anomalia por outro.
 
Vinicius Mota - Folha de S. Paulo