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quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Bolsonaro, o ‘mito’, derrotou a ‘ideia’ Lula

O presidente eleito fez da megalomania do ex-presidente presidiário sua força



José Nêumanne (publicado no Estadão)

Desde 2013 que o demos (povo, em grego) bate à porta da kratia (governo), tentando fazer valer o preceito constitucional segundo o qual “todo poder emana do povo” (artigo 1.º, parágrafo único), mas só dá com madeira na cara. Então, em manifestações gigantescas na rua, a classe média exigiu ser ouvida e o poste de Lula, de plantão no palácio, fez de conta que a atendia com falsos “pactos” com que ganhou tempo. No ano seguinte, na eleição, ao custo de R$ 800 milhões (apud Palocci), parte dessa dinheirama em propinas, ela recorreu a um marketing rasteiro para manter a força.

Na dicotomia da época, o PSDB, que tivera dois mandatos, viu o PT chegar ao quarto, mas numa eleição que foi apertada, em que o derrotado obtivera 50 milhões de votos. Seu líder, então incontestado, Aécio Neves, não repetiu o vexame dos correligionários derrotados antesSerra, Alckmin e novamente Serra ─ e voltou ao Senado como alternativa confiável aos desgovernos petistas. Mas jogou-a literalmente no lixo, dedicando-se à vadiagem no cumprimento do que lhe restava do mandato. O neto do fundador da Nova República, Tancredo Neves, deixou de ser a esperança de opção viável aos desmandos do PT de Lula e passou a figurar na galeria do opróbrio ao ser pilhado numa delação premiada de corruptores, acusado de se vender para fazer o papel de oposição de fancaria. O impeachment interrompeu a desatinada gestão de Dilma, substituída pelo vice escolhido pelo demiurgo de Garanhuns, Temer, do MDB, que assumiu e impediu o salto no abismo, ficando, porém, atolado na própria lama.


Foi aí que o demos resolveu exercer a kratia e, donas do poder, as organizações partidárias apelaram para a força que tinham. Garantidas pelo veto à candidatura avulsa, substituídas as propinas privadas pelo suado dinheiro público contado em bilhões do fundo eleitoral, no controle do horário político obrigatório e impunes por mercê do Judiciário de compadritos, elas obstruíram o acesso do povo ao palácio.  Em janeiro, de volta pra casa outra vez, o cidadão sem mandato sonhou com o “não reeleja ninguém” para entrar nos aposentos de rei pelas urnas. Chefões partidários embolsaram bilhões, apostaram no velho voto de cabresto do neocoronelismo e pactuaram pela impunidade geral para se blindarem. Mas, ocupados em só enxergar seus umbigos, deixaram que o PSL, partido de um deputado só, registrasse a candidatura do capitão Jair Bolsonaro para conduzir a massa contra a autossuficiência de Lula, ladrão conforme processo julgado em segunda instância com pena de 12 anos e 1 mês a cumprir. O oficial, esfaqueado e expulso da campanha, teve 10 milhões de votos a mais do que o preboste do preso.

Na cela “de estado-maior” da Polícia Federal em Curitiba, limitado à visão da própria cara hirsuta, este exerceu o culto à personalidade com requintes sadomasoquistas e desprezo pela sorte e dignidade de seus devotos fiéis. Desafiou a Lei da Ficha Limpa, iniciativa popular que ele sancionara, transformou um ex-prefeito da maior cidade do País em capacho, porta-voz, pau-mandado, preposto, poste e, por fim, portador da própria identidade, codinome, como Estela foi de Dilma na guerra suja contra a ditadura. Essa empáfia escravizou a esquerda Rouanet ao absurdo de insultar 57 milhões, 796 mil e 986 brasileiros que haviam decidido livrar-se dele de nazistas, súditos do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, que não se perca pelo nome, da Alemanha de Weimar: a ignorância apregoada pela arrogância.

Com R$ 1,2 milhão, 800 vezes menos do que Palocci disse que Dilma gastara há quatro anos, oito segundos da exposição obrigatória contra 6 minutos e 3 segundos de Alckmin na TV, carregando as fezes na bolsa de colostomia e se ausentando dos debates, Bolsonaro fez da megalomania de Lula sua força, em redes sociais em que falou o que o povo exigia ouvir.  A apoteose triunfal do “mito” que derrotou a “ideia” produziu efeitos colaterais. Inspirou a renovação de 52% da Câmara; elegeu governadores nos três maiores colégios eleitorais; anulou a rasura na Constituição com que Lewandowski, Calheiros e Kátia permitiram a Dilma disputar e perder a eleição; e forçou o intervalo na carreira longeva de coveiros da república podre.

O nostálgico da ditadura, que votou na Vila Militar, tem missões espinhosas a cumprir: debelar a violência, coibir o furto em repartições públicas e estatais, estancar a sangria do erário em privilégios da casta de políticos e marajás e seguir os exemplos impressos nos livros postos à mesa para figurar no primeiro pronunciamento público após a vitória, por live. Ali, repousavam a Constituição e um livro de Churchill, o maior estadista do século 20.

Não lhe será fácil cumprir as promessas de reformas, liberdade e democracia, citadas na manchete do Estado anteontem. Vai enfrentar a oposição irresponsável, impatriótica e egocêntrica do presidiário mais famoso do Brasil, que perdurará até cem anos depois de sua morte. E não poderá fazê-lo com truculência nem terá boa inspiração nos ditadores que ornam a parede do gabinete que ocupou. Sobre Jânio e Collor, dois antecessores que prometeram à cidadania varrer a corrupção e acabar com os marajás, tem a vantagem de aprender com os erros que levaram o primeiro à renúncia e o outro ao impeachment.

Talvez o ajude recorrer a boas cabeças da economia que trabalharam para candidatos rivais, como os autores do Plano Real e a equipe do governo Temer, para travarem o bom combate ocupando o “posto Ipiranga” sob a batuta de Paulo Guedes. Poderá ainda atender à cidadania se nomear bons ministros para o Supremo Tribunal Federal e levar o Congresso a promover uma reforma política que ponha fim a Fundo Partidário, horário obrigatório e outros entulhos da ditadura dos partidos, de que o povo também quer se livrar em favor da sonhada igualdade.


Blog do Augusto Nunes - Veja

domingo, 1 de julho de 2018

Lógica sectária

Há algo de novo no front quando surge uma direita nostálgica do regime militar

O sonho explícito de Ciro Gomes é encarar Bolsonaro no segundo turno. Na avaliação dele, sua marcha ao Planalto seria assegurada pela repulsa majoritária a uma candidatura da direita selvagem.  Mas Ciro não enxerga a hipotética disputa com Bolsonaro sob o prisma exclusivista da oposição esquerda/direita. Seus coreografados movimentos de aproximação com o DEM podem até não dar em nada, mas evidenciam que ele aposta numa abertura rumo ao centro.

Singer é um dos mais destacados “intelectuais orgânicos” do PT. Segundo ele, tudo que aconteceu na política brasileira recente —depressão econômica, impeachment, Lava Jato, desmoralização generalizada dos partidos e dos políticos— tem relevância apenas marginal. São “epifenômenos”, como diria um marxista antiquado.  No fim, a morfologia de nossa paisagem política derivaria de uma implacável “estrutura profunda”, imune às crises conjunturais. Abaixo da poeira, permaneceria decisiva a “lógica polar” esquerda/direita. A disputa PT versus PSDB, marca inconfundível das eleições presidenciais desde 1994, conheceria um novo capítulo, ainda que com nomes trocados.

“Lula (ou quem ele indicar), Ciro, Manuela e Boulos precisarão, de algum modo, se entender”, escreve Singer, exprimindo o desejo de trancar Ciro na jaula da esquerda. Mas o principal está em outro lugar: “Tal como melancias no caminhão, o sacolejo irá arrumando as relações entre Bolsonaro, Alckmin, Meirelles (Temer), Maia e Marina”.  Na lógica sectária de Singer, inexistem divergências fundamentais entre Bolsonaro, de um lado, e os partidos situados na ampla faixa que se estende da centro-direita à centro-esquerda, de outro. A direita antidemocrática representaria apenas uma encarnação circunstancial do PSDB, do PMDB ou da Rede.

Nove décadas atrás, no declínio da Alemanha de Weimar, os comunistas alemães aplicaram a estratégia do “terceiro período”, ditada a partir de Moscou. De acordo com o dogma inventado por Stálin, a revolução proletária aguardava na esquina —e, diante do espectro da insurreição, os social-democratas convertiam-se em aliados objetivos dos nazistas. Consequentemente, os comunistas rejeitaram a ideia de uma aliança com os “social-fascistas”, facilitando a ascensão de Hitler.  No discurso e em certas práticas políticas, o PT parece-se, cada vez mais, com os antigos partidos comunistas. Colocando no saco bolsonarista “melancias” como Alckmin, Marina, Maia ou Meirelles, Singer pouco esclarece sobre a corrida presidencial, mas revela-nos que o PT percorre o túnel escuro do “terceiro período”.

A “lógica polar” de Singer existe realmente, sob a forma da concorrência entre os partidários da economia de mercado e os do capitalismo de Estado. Durante um quarto de século, o dilema expressou-se como disputa binária PSDB/PT.  Mas há algo de novo no front quando, em meio a uma crise multifacética, ergue-se uma direita nostálgica do regime militar. Nessa hora, a questão da democracia torna-se o mais elevado divisor de águas. Se Bolsonaro chegar ao segundo turno, algo que está longe de ser uma certeza, as “melancias” de centro-direita e centro-esquerda desmentirão a profecia de Singer, barrando o caminho ao nostálgico aventureiro.

O equívoco analítico do “intelectual orgânico” não é importante. Ele, como eu, erra e acerta. O relevante, no caso, é sua olímpica indiferença diante da questão da democracia.  Uma possível explicação para ela reside na persistência do apoio do PT ao regime venezuelano. Se o ditador Maduro serve para nós, por que Bolsonaro, um mero candidato, não serviria para nossos rivais de centro-direita e centro-esquerda? A indagação implícita do texto de Singer sugere que há algo de podre na alma do PT.

Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana e especialista em política internacional.