A reeleição de um líder político deve, normalmente, ser examinada sob o
registro da continuidade. A regra não se aplica ao triunfo de Binyamin
Netanyahu nas eleições gerais israelenses. Na campanha, o
primeiro-ministro prometeu anexar as colônias israelenses na Cisjordânia
e declarou que "Israel não é um Estado de todos os seus cidadãos". À luz do "Deus de Trump" (apud Ernesto Araújo), Netanyahu avançou os
sinais vermelhos sempre respeitados pela corrente principal do sionismo.
Nesse passo, ameaça levantar a âncora que prende Israel à rocha da
democracia.
A maior vitória militar de Israel trouxe com ela um desafio de natureza
existencial. Depois da Guerra dos Seis Dias (1967), o Estado judeu
converteu-se em potência ocupante dos territórios palestinos (Jerusalém
Oriental, Cisjordânia, faixa de Gaza). O rápido crescimento demográfico palestino descortinou a perspectiva de
configuração de uma maioria populacional árabe no conjunto geopolítico
Israel/Palestina. O exercício da soberania sobre uma maioria destituída
de direitos políticos terminaria por corroer os fundamentos democráticos
de Israel. O Estado judeu teria que escolher entre a democracia e a
ocupação.
Os Acordos de Oslo (1993) surgiram como solução para o dilema. A paz
pela partilha da Terra Santa em dois Estados não só atenderia à demanda
nacional palestina como protegeria o caráter judeu e democrático de
Israel. O fracasso dos acordos de paz recolocou o dilema. Netanyahu
oferece, agora, sua própria solução: a ocupação permanente, a renúncia à
democracia, a refundação de Israel como Estado baseado na discriminação
étnica oficial. A falência dos Acordos de Oslo foi obra conjunta dos fundamentalistas
palestinos do Hamas e da direita israelense polarizada pelo Likud. Mas
Ariel Sharon, o "falcão" do Likud, conservou a porta aberta para a
solução dos dois Estados ao promover a retirada israelense da faixa de
Gaza (2005).
Sharon reconhecia, por meio do desengajamento, que só um Estado, uma
nacionalidade e uma cidadania para os palestinos assegurariam a
sobrevivência do Israel democrático fundado em 1948. Netanyahu rompe, hoje, com o consenso sionista que se estendia da
esquerda à direita. Depois de anos de sabotagem tácita da retomada de
negociações de paz, a prometida anexação de extensas áreas da
Cisjordânia equivale a uma sentença de morte para a solução dos dois
Estados. Sob o amparo de Trump, que acaba de reconhecer a soberania israelense
sobre o território sírio das colinas de Golã, o chefe de governo de
Israel ameaça inviabilizar um futuro Estado palestino.
Israel não é um, mas dois. Historicamente, é o Estado-nação do povo
judeu. Legalmente, é um Estado de todos os seus cidadãos. A alma
histórica expressa-se na Lei do Retorno: a concessão de cidadania a
qualquer judeu que imigrar para Israel. A alma legal exprime-se na Corte
Suprema, que não distingue os direitos de cidadãos judeus dos direitos
de cidadãos não judeus. As duas almas convivem em perene tensão,
formando as faces paradoxais do Estado judeu. Netanyahu almeja eliminar a
tensão pela supressão do princípio da igualdade perante a lei.
O conceito de que "Israel não é um Estado de todos os seus cidadãos"
abre a fresta por onde podem passar iniciativas já em curso legislativo
como a remoção da cidadania de não judeus "desleais" ao Estado. No limite, a ruptura do princípio da igualdade legal propiciaria a
retirada em massa da cidadania dos árabes israelenses, uma violação
flagrante dos direitos humanos. A ideia escandalosa circula entre
correntes supremacistas judaicas, como o Otzma Yehudit (Poder Judaico),
que transitam dos subterrâneos para as cercanias do governo israelense.
Netanyahu é um refundador pós-sionista. O Israel que ele pretende
reinventar renega os valores básicos do Estado proclamado por Ben Gurion
em 1948.
Por: Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de diversas obras e doutor pela USP - Folha de S. Paulo