Zeina Latif
A sociedade manda recado de que não aceitará retrocessos democráticos
As atitudes antidemocráticas do presidente Bolsonaro fazem muito mal à
jovem democracia brasileira. Estimulam a intolerância e o radicalismo já
presentes na sociedade, e estressam as instituições democráticas,
aumentando indevidamente seu ativismo. O País desvia-se do caminho do
enfrentamento dos seus problemas e do avanço civilizatório. Um episódio que merece reflexão foi a resposta do STF à infame reunião
ministerial com ataques à instituição. Parte da classe jurídica aponta
excessos na decisão monocrática do ministro Celso de Mello de divulgar
quase na íntegra a reunião, com temas alheios às investigações de
interferência de Bolsonaro na Polícia Federal.
Correta ou não, a divulgação da intimidade de discussões de trabalho
traz consequências indesejáveis, que deveriam ter sido consideradas. No
caso, contribui para uma maior polarização social, acirra a desconfiança
entre os Poderes, prejudica a imagem do País no exterior e retira ainda
mais o foco na superação da crise atual. Poderá também prejudicar
agendas importantes, como a de buscar caminhos para melhorar a ação
estatal no campo, sem ameaçar o meio ambiente.
O presidente com frequência desrespeita e maltrata a imprensa, cuja
reação autodefensiva muitas vezes a faz desviar de sua missão, que é
informar e estimular o debate público – um ingrediente essencial na
construção da agenda dos países. Tem-se discutido pouco as soluções para a área da saúde e as lições das
diferentes experiências de combate à covid-19. Assunto não falta: o caso
sueco de confinamento mais frouxo;
as evidências de que o isolamento
social é pouco efetivo em regiões carentes;
as diferentes situações nos
Estados brasileiros;
as estratégias para o fim do isolamento;
e como
garantir a vacinação em massa no futuro.
Na economia, falta debate qualificado sobre a divisão entre analistas
nas recomendações de políticas públicas. Alguns argumentam que não se
deve pensar em restrições orçamentárias, enquanto se defende o ativismo
do Banco Central no financiamento do déficit público. Outros alertam
para a necessidade de garantir o bom uso dos recursos públicos e que as
políticas emergenciais não extrapolem o período de calamidade pública,
recomendando-se evitar atalhos para aumentar os gastos que poderão
custar caro adiante.
A ausência do bom debate e da busca de consensos poderá contaminar os
trabalhos no Congresso. A reforma da Previdência saiu porque o debate
público amadureceu. Sem isso, a tendência de muitos políticos é defender
medidas de cunho mais populista, evitando também combater os problemas
estruturais. Outro ponto a ponderar são as consequências da instabilidade política na
economia. Considerando apenas a questão econômica, diferentemente de
2016, quando o impeachment de Dilma era visto como a chance de corrigir a
equivocada política econômica, uma ruptura agora poderá penalizar ainda
mais o enfrentamento da crise e alimentar a indisciplina fiscal.
Certamente, a questão econômica precisará ficar em segundo plano em caso
de ameaça à democracia. No entanto, os analistas políticos estão
divididos quanto a gravidade do discurso radical de Bolsonaro. Alguns
apontam como blefe, não havendo um projeto autoritário, enquanto outros
veem com preocupação sua proximidade com grupos armados, incluindo
polícias militares e baixas patentes. A julgar pelas manifestações do alto escalão das Forças Armadas, desde
sempre preocupado com o risco de indisciplina e desordem, haverá
esforços para coibir excessos desses grupos, não havendo risco iminente à
democracia.
Além disso, a sociedade, agora mais participativa, manda recado de que
não aceitará retrocessos democráticos. É improvável que as autoridades
do País ignorem o quadro de inquietação. Convém os adultos voltarem para a sala e praticarem a autocontenção,
para não alimentarem extremismos que possam gerar mais instabilidade. Que as instituições democráticas cumpram seu papel com firmeza e sem
complacência, evitando porém revanchismos e visando ao bem comum.
Zeina Latif, economia - O Estado de S. Paulo