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segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Juiz das garantias: avanço necessário! - Consultor Jurídico

Ney Bello

[o direito dos leitores concede aos que estão equivocados o direito de apresentar seus argumentos.]

Nas vésperas cristãs, o país viu publicarem diversas modificações nos seus diplomas penal e processual penal. As alterações legislativas, após vetos e sanções presidenciais, mergulharam todos -—na viragem da década — na discussão acerca da correção ou inviabilidade do juiz das garantias. Mas do que se trata? 
Qual o erro ou onde reside o acerto da partição da competência funcional do magistrado criminal entre juízo de atuação no processo cautelar e juízo de instrução e julgamento? 
Quais as motivações da criação e da crítica ao seu surgimento?

Duas observações preliminares: em primeiro lugar, é preciso verificar que a criação do juiz das garantias não é uma jabuticaba ou invenção tupiniquim! Nesse tema, nós não estamos sós no mundo do direito! Com algumas modificações referentes às peculiaridades locais, o modelo se repete em Portugal, na Itália e na Alemanha. [o diabo mora nos detalhes e as adaptações às peculiaridaddes regionais são os detalhes no caso brasileiro.
No Brasil quanto mais se detalha, mais se abre espaço para recursos absurdos e que buscam 'esclarecimentos']

Em segundo lugar, é preciso esclarecer exatamente o que a medida significa. A criação basicamente estabelece que o juiz que atua no processo emergencial cautelar, que defere quebras de sigilo, busca e apreensão, prisão preventiva ou temporária, homologa delação premiada e atua na revoada original de coleta de provas antes da formalização da acusação não será o juiz que instruirá o processo, que analisará os argumentos maduros da acusação e da defesa, e nem será o magistrado que julgará a causa, para absolver ou condenar.

As novas redações dos artigos 3°A e 3°B do Código de Processo Penal estabelecem a proibição de que o juiz produza provas, não podendo determiná-las de ofício, e também criam uma diferenciação funcional. O juiz atuante na fase do inquérito terá de ser distinto do magistrado que processa o caso. Que equívoco dogmático há nisso? A modificação legal — em consonância com o que se faz no mundo ocidental — tem o condão de proteger a imparcialidade do magistrado que instrui e decide o processo, separando definitivamente quem acusa de quem julga, restabelecendo o equilíbrio entre defesa e acusação no processo criminal.


Isso é salutar na medida em que o envolvimento do magistrado com a parte proponente e com as justificativas para medidas invasivas e cautelares, deferindo produção antecipada de provas, decretando prisão e homologando acordos de colaboração premiada, ineludivelmente compromete a isenção, porque o próprio deferimento de medidas dessa natureza implica o comprometimento, ainda que parcial, com a tese de acusação, aluindo a raiz do exercício da magistratura, que é a imparcialidade! Um juiz defere medidas cautelares e produz provas antes da formalização da acusação. Outro juiz analisa tudo sob o enfoque da argumentação jurídica sobre normas e fatos produzidos pelo Ministério Público e pelo réu... e sentencia!
Este o modelo moderno!
E por qual razão tamanha reação?


Noves fora a conta das compreensões e satisfações pessoais, que não produzem boa dogmática, a razão da grita está na paixão da magistratura por um modelo de concentração de poder. Também está no temor que parte dela possui da perda de importância da função do magistrado criminal punitivista.

Explico.

Quando um só magistrado recebe o tombo do inquérito e controla a investigação, é ele quem observa viabilidade no que a polícia propõe, concorda com o Ministério Público e vê necessidade da prisão preventiva e das quebras de sigilo. Assim, ele controla a investigação. Quando esse mesmo magistrado recebe a denúncia e defere ou indefere provas, analisa argumentos que já conhece desde o começo e ao final condena, ele tem total controle sobre o processo penal, e exerce sobre o mesmo uma tutela de poder que se confunde com a acusação!

O juiz combatente, uma falácia da pós modernidade, nada mais é do que o general do exército inimigo julgando as fileiras dos adversários! Terá ele isenção e imparcialidade? O moto condutor da crítica vincula-se mais à perda desse poder de fato — de cariz punitivista — do que a qualquer déficit de coerência dogmática do sistema. Mas há outras justificativas aparentes para a negação da medida. Há quem sustente que isso oneraria o orçamento do Poder Judiciário.


Não parece ser um bom argumento.O eventual gasto com reaparelhamento do Judiciário para implementação da medida é bem mais justificável do que gastos com Auxílio Moradia, Gratificação de Acúmulo de Jurisdição e outros equívocos.
 De igual lanço, não parece ser procedente argumentar no sentido da inviabilidade material da implementação da medida quando há um só juiz na comarca ou subseção judiciária. O PJE existe, e já foram investidas cifras imensas com seu desenvolvimento. Um processo judicial eletrônico permitirá facilmente que o juízo de outra comarca ou subseção atue na diferenciação funcional — e vice-versa — em lugares de um só magistrado. A modernidade da Justiça Criminal passa por um processo eletrônico capaz de contribuir para a afirmação de direitos fundamentais. Demais disso, não parece razoável impor ao cidadão um déficit de suas garantias pela só razão de os Tribunais optarem por orçamentos com outras prioridades. Não são ponderáveis direitos individuais e gastos instrumentais. Dessa maneira, esse problema específico resolve-se com tecnologia e com melhores escolhas orçamentárias.


Há também um argumento contrário que vê no juiz de garantias uma quebra do princípio do juiz natural. Equívoco dogmático, com permissão dos que assim veem.
Juiz natural no processo penal é o juiz com competência prévia e jurisdição definida. Ora, se a própria lei assim o estabelece, de onde a quebra do princípio? Se a norma produzida, sancionada e publicada afirma que o juiz das medidas cautelares é diferente do juiz da instrução e da sentença, o juiz natural é exatamente aquele a quem a lei atribui a competência para tanto! Não há direito adquirido do juiz a julgar todos os incidentes de eventuais processos futuros! A jurisdição e a competência só existem em razão da lei, o que implica a constitucionalidade óbvia de qualquer modificação de competência funcional!

Mas há algo no ethos de boa parte dos magistrados — e ex-magistrados — que explica a compreensão equivocada de que o juiz de garantias é um mal. Parece que uma afirmação pode descalvar a essência dessa crítica: triste a sociedade que necessita de heróis! Esse o ponto! É a perda de impacto do juiz Marvel — do nosso Capitão América de toga — que permite reações exageradas contra a medida dogmaticamente acertada e procedimentalmente correta.

Com a repartição funcional, o juiz que brilha nos noticiários junto às megaoperações e lê a si mesmo como herói perde importância e capilaridade. Isso ocorre na medida em que deixa de se confundir com a própria acusação e com o combate ao crime. É o juiz combatente que passa a ser — se a distorção permanecer — somente um combatente, deixando de ser juiz, e é o juiz do processo que se mantém sem lado no combate, preservando a imparcialidade da sua função. O exercício da magistratura criminal não se confunde com Santa Inquisição e nem com a parceria entre juiz e acusação nos processos criminais! Com acerto, o Congresso Nacional, quando criou a medida do juiz de garantias, alinhou o Brasil com o que há de mais avançado nos países modernos.

Com acerto, o Presidente da República que sancionou tão importante medida processual penal!

Ney Bello, desembargador TRF 1ª Região -Consultor Jurídico


segunda-feira, 5 de junho de 2017

Juízes se julgam deuses, procuradores santos e advogados, a ética pura

A política é um circo. Quanto menos você tiver esperança política, menos você se iludirá sobre a realidade política. O ceticismo em filosofia sempre aconselhou uma postura mais conservadora e cuidadosa quanto às promessas políticas. Desde que a política se tornou objeto de fé, passamos a ter expectativas salvacionistas através da política. E a política não passa da conquista, gestão, manutenção e distribuição do poder.

Não há nenhuma dimensão "ética" na política, nem nunca houve. O que há são sociedades mais ricas em que seus políticos destruíram outras sociedades no mundo para garantir o aspecto de santos nas suas próprias (e a população goza dessa santidade na mesma medida).  Eu, pessoalmente, espero o mínimo da política. Que não nos atrapalhe em demasia, por isso, que seja mínima.

O erro crasso de quem espera uma redenção política é não prestar atenção na política mais próxima dele. É comum grandes canalhas cotidianos agirem de modo politicamente canalha nas instituições em que trabalham, mas sustentarem um discurso "ético" na "grande política" (esse mito de gabinete). Por exemplo, mentir, manipular o cotidiano institucional, usurpar ganhos alheios, destruir carreiras de colegas em universidades, igrejas, sindicatos de classe, grupos artísticos, corporações de todos os tipos, enfim, fazer política real. Mas quando se trata de falar da "grande política", enche os olhos de lágrimas em nome da justiça social.

A redenção do mundo via política virou um mercado para canalhas específicos. Pense bem e verá que há um perto de você. O mundo não é perfeito, claro. Mas o Brasil parece, nos últimos tempos, trabalhar duro para destruir nosso cotidiano. O homem é um animal frágil moralmente, sempre foi e sempre será. Mas vivemos agora, de fato, a ruína moral dos Poderes no país.  Em matéria de Poderes da República no Brasil, o Executivo sempre teve vocação getulista, ou seja, a vocação de ser o "pai ou mãe dos pobres". A miséria no país sempre foi um importante capital para correntes coronelistas-populistas como a do PT.
O Legislativo é a representação perfeita do fisiologismo corrupto. Trabalha para si mesmo. Basta ver a corrida dos insetos em busca das misérias pós-Temer. Dane-se a estabilidade econômica. Querem a miserável Presidência por alguns meses.  A economia é a única coisa que importa nisso tudo, mas, infelizmente, semiletrados de todos os tipos pensam que, quando se diz que é a economia que importa, estamos a defender "O Capital". Chega a ser ridícula a força desse mito ("Das Kapital") no pensamento.

Não, "economia" aqui significa que você perde o emprego, deixa de comprar coisas, e os outros perdem o emprego porque você deixou de comprar coisas. Estágios são fechados, lojas também. Tudo para de circular. Mas você, que acredita em Papai Noel, ainda não entendeu que é a economia que sustenta tudo, inclusive coisas fofas, como os direitos humanos. E o dinheiro nunca foi produzido pela Chapeuzinho Vermelho.

E o Poder Judiciário? Esse mesmo que até pouco tempo muita gente pensava ser um produto real da Marvel. Uma mistura de Batman, Super-Homem, Capitão América, Homem de Ferro e Thor. Não. O Poder Judiciário não é um monólito de pureza. Se o Executivo tem vocação ao populismo, e o Legislativo à corrupção pedestre, o pecado do Judiciário é a arrogância e a onipotência. Juízes se julgam deuses, procuradores santos, advogados representantes da ética nacional. Risadas?

Para ingênuos talvez, mas não para quem já leu mais do que dois livros na vida. O Poder Judiciário, inclusive, ou principalmente o STF, é também um poder "político" na medida em que sofre a mesma pressão para articular, privilegiar, perseguir, em nome dos interesses materiais ou ideológicos de seus membros.  E em meio a isso tudo, vem a moçada das diretas já, como num surto de gozo dos anos 1980. Como se a maioria desses (afora os ingênuos) não fossem os fanáticos da soberania popular "pura" ou não fossem os coronelistas do PT apostando na ressurreição do seu Drácula de bolso.


Fonte: Folha de S. Paulo - Luiz Felipe Pondé