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segunda-feira, 20 de junho de 2022

Walt Disney se revira no túmulo - Dagomir Marquezi

 Ilustração: Lézio Júnior

Se você dirigir para o norte de Los Angeles e pegar a San Fernando Road, chegará à cidade de Glendale. Na esquina da San Fernando com a Glendale Boulevard, vai encontrar à direita o Forest Lawn Memorial Park.

Quando os dias estão calmos em Glendale (e geralmente estão), o visitante que entra no parque consegue ouvir o som de algo fazendo um ruído surdo sob a terra. Provavelmente seja o cadáver de Walt Disney se revirando no túmulo ao ver o que estão fazendo com seu reino de fantasia

Um dia esse pessoal woke talvez decida destruir tudo o que Walt Disney produziu desde a década de 1920, por causa de seu conteúdo “machista, homofóbico, racista” e uma longa lista de pecados imperdoáveis aos olhos dessa gente. E todas essas obras “fascistas” serão substituídas por novas versões dos grandes clássicos de papai Walt Disney. 

Aqui vão algumas sugestões de releitura dos inocentes desenhos animados do passado, segundo o ponto de vista desses extremistas da chatice.

Afronegrapreta e os 7 anões LGBTQIA+
Era uma vez, num reino distante, uma rainha muito má e muito, muito branca. A Rainha Má e branca tinha adotado uma menina de extrema beleza conhecida como Afronegrapreta, a quem maltratava e enchia de afazeres domésticos. Mas Afronegrapreta não se importava. Mesmo explorada pela madrasta e vítima da mais-valia, passava o dia trabalhando alegremente. Em seu coração batia a esperança de um mundo mais justo e solidário.

A Rainha às vezes se trancava sozinha em seu quarto, onde guardava em segredo dentro de um armário um Espelho Mágico. — Espelho, Espelho meu — dizia a Rainha Má. — Existe em todo reino alguém mais bela e mais branca do que eu?

E o Espelho sempre dizia que não havia outra mulher mais bela e muito menos mais branca que Sua Majestade. Mas um dia a resposta foi diferente: — Jamais haverá alguém de pele mais alva que a sua, Alteza. Sois a soberana absoluta da brancura. Quanto à sua gloriosa beleza, tenho más notícias. Um Espelho Mágico jamais mente. Eu sou obrigado a revelar que já não és a mais bela desde que adotaste aquela menina como enteada.

A Rainha ficou indignada.

— Mas… aquela criadinha é negra!

Sim, Majestade. Mas um Espelho Mágico como eu não obedece às mesmas regras ditadas pelo racismo estrutural de Sua Alteza.

Com o olhar em chamas, a Rainha bateu a porta do armário na cara do Espelho Mágico e jurou para si mesma que iria dar um jeito nessa situação. Chamou seu Segurança/Instagrammer e ordenou a ele que cancelasse sem dó nem piedade sua enteada/criada Afronegrapreta. 

Passarinhos ouviram a ameaça pela janela real e correram para contar a notícia aos esquilinhos, que por sua vez contaram para os coelhinhos, que avisaram Afronegrapreta do perigo que ela corria. A mais bela do reino apagou todos os seus perfis nas redes sociais e saiu em desabalada carreira pela floresta sem olhar para trás. 

Já exaurida pela fuga, a menina encontrou uma casinha entre as árvores e desmaiou antes de conseguir chegar à porta. Quando despertou, percebeu que estava próxima de um ser de baixa estatura cujo tamanho não deve ser percebido como um fator de exclusão ou preconceito.  — Onde estou? — perguntou Afronegrapreta, espantada — Quem é você?

— Sou um dos anões da floresta — respondeu o estranho.

Já ouvi falar de vocês! — disse a garota, com um sorriso. Atchim, Espirro, Zangado, Soneca, Dunga, Feliz e Dengoso!

Não mais — disse o ser humano verticalmente limitado — Esses anões velhos foram embora, ainda que a palavra “velho” seja aqui usada sem intenção de ofender os idosos, já que não somos adeptos do etarismo. Agora estamos nós, os mais jovens, todos parecidos em sua diversidade, mas com características identitárias distintas. Eu sou Kink. Quero lhe apresentar meus amigues, cada um/uma/ume com sua própria característica de comportamento sexual.

E então os amigxs Anõx de Kink foram saindo um/uma/ume a um/uma/ume da casinha, alegres e vestidos de acordo com sua própria identidade. Kink os apresentou. — Esta é Florisbela, e ela é lésbica. Ronilson é gay. Jãomaria é bissexual. Guilhermine é transgênero. Fred é queer. Marcianita é um questionando. Bibiane é intersexual. Somos um coletivo LGBTQIA+ consciente e ativo na luta contra a bifobia, homofobia, lesbofobia e transfobia. 

                                   Ilustração: Lézio Júnior

Afronegrapreta ficou encantada com toda aquela diversidade e resolveu morar na comunidade LGBTQIA+. Passava seus dias lavando louça e preparando as refeições para seus amiguinhes. Um dia, a Rainha Má descobriu que sua enteada vivia feliz na floresta. Demitiu o Instagrammer/Segurança por justa causa e resolveu cuidar pessoalmente do assunto.

Usando de uma poção mágica, a Rainha Má se transformou em uma senhora de idade avançada (sem perder sua brancura característica) e foi até a casa dos anões LGBTQIA+. Aproveitando um momento em que Afronegrapreta estava só, a falsa velhinha ofereceu à garota uma maçã. Que a garota inocentemente aceitou.

Anos se passaram até que um dia surgiu um Príncipe hétero, branco e louro, que se apaixonou perdidamente pela mais bela do reino

Assim que mordeu o fruto, Afronegrapreta caiu ao chão. Antes de desmaiar (de novo), observou a velha senhora se transformar em sua odiosa madrasta.  — Ha-ha-ha gargalhou a Rainha Má e Racista — Você é muito ingênua mesmo, menina! Mordeu sem pensar a maçã que eu lhe dei, sem imaginar que ela foi criada a partir de sementes transgênicas e envenenada com agrotóxicos! Hahahaha! Agora você vai dormir. E só despertará com o beijo de puro amor de algum Príncipe encantado, desde que seja hétero, branco, louro e de olhos azuis! Hahahaha! Tolinha!

E, enquanto a Rainha se afastava com sua risada de vilã, Afronegrapreta caiu num sono profundo. Foi cuidada pelos anões identitários enquanto permaneceu desfalecida.  Anos se passaram até que um dia surgiu um Príncipe hétero, branco e louro, que se apaixonou perdidamente pela mais bela do reino. Gentilmente o príncipe encantado se ajoelhou ao lado de Afronegrapreta e beijou com doçura, delicadeza e afeto os lábios adormecidos da linda garota.

A magia funcionou, conforme havia previsto a Rainha Má. O beijo de puro amor despertou Afronegrapreta, que olhou espantada para os olhos azuis do Príncipe apaixonado na sua frente. Ele sorriu e se preparou para carregar a moça desperta em seus braços direto para o altar. 

Mas o que o Príncipe ganhou foi uma bofetada no rosto e a fúria de Afronegrapreta. — O que você está pensando, seu cafajeste?! Aproveitou-se da minha condição para abusar de mim! Eu estava adormecida, como poderia me defender? Quem te deu autorização para me beijar? Isso foi um estupro! Meu corpo, meus direitos! Não é não!

O príncipe foi imediatamente preso e sumariamente cancelado nas redes sociais. Já vendeu três castelos para poder pagar os advogados.

Pinóquio
Vivia numa cidadezinha da Itália um carpinteiro chamado Gepeto. Ele queria muito ter um filho. Um dia, montou um boneco, a quem chamou de Pinóquio. Por ser um homem bom e honesto (e não utilizar na sua oficina mão de obra escrava de refugiados muçulmanos vítimas do sionismo), a Fada Arco-Íris deu vida ao boneco Pinóquio. E entregou a ele uma Libélula Falante, que serviria como sua consciência, pronta a lacrar a qualquer deslize verbal do menino.

Gepeto ficou muito feliz com a transformação. Mas logo enfrentou problemas. Pinóquio se envolveu com desajustados, todos vítimas da desigualdade social e da exploração capitalista.

Além disso, o boneco que virou menino dizia muitas mentiras. O que quase levou Gepeto a ter de depor na Comissão de Inquérito das Fake News, instalada no Supremo Tribunal Federal da Itália. Pior: quando mentia, o nariz de Pinóquio crescia. A Libélula Falante disse que aquilo era inaceitável, pois lembrava um estado de ereção típico de machistas agressivos e assediadores.

A Libélula Falante percebeu que ia ter muito trabalho com Pinóquio. Convenceu Gepeto a deixar pra lá essa história de filho. Gepeto então desmontou Pinóquio e o usou no fogão a lenha para esquentar seu fetuuccine al pomodoro.

A Rainha Leoa
Nos confins da África vivia o Rei Mufasa com a Rainha Sarabi.
Todos os animais obedeciam ao rei, que ditava as regras de cima de uma grande pedra. Mufasa tinha um irmão chamado Scar, que invejava seu poder.

A floresta se encheu de alegria quando nasceu o pequeno Simba, filho de Mufasa com Sarabi. E todos passaram a saber que o trono teria um herdeiro. 

Mas o malévolo tio Scar provocou a morte do irmão Mufasa e ainda fez a culpa recair sobre o pequeno Simba. Quando Scar se preparava para tomar o poder, a Rainha Sarabi revelou que estava por trás do plano. Ela costumava assistir à série O Conto da Aia no serviço de streaming por satélite da selva e havia se tornado uma feminista ultrarradical.

Sarabi se amaldiçoou por não ter dado cria a uma fêmea. Cercada por leoas militantes, inspirou todas as fêmeas do reino, que expulsaram seus respectivos machos. Foi declarada então a Rainha Leoa. O pequeno Simba foi entregue a humanos para ser exposto num zoológico. Scar foi atirado de um penhasco.

Sem machos, as fêmeas de todas as espécies pararam de procriar, causando uma extinção em massa na floresta. A culpa pela catástrofe ecológica africana foi atribuída pela grande imprensa ao presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. 

Leia também “Óvnis invadem o Senado”

Dagomir Marquezi, colunista - Revista Oeste


quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Branca de Neve e a caixa de Pandora da lacração - VOZES

Vozes - Luciano Trigo

Hollywood resolveu filmar uma nova versão, live action (com atores), da história da Branca de Neve e dos Sete Anões, imortalizada na animação de Walt Disney de 1937 (por sua vez inspirada em um conto dos Irmãos Grimm de 1812).

Pois bem, para o papel principal foi escalada uma atriz “latina”, Rachel Zegler. “Latina”, no miscigenado Brasil, não quer dizer muita coisa, mas nos Estados Unidos é considerada uma etnia à parte. Imagino que, ao escalarem uma atriz de origem colombiana para o papel de Branca de Neve, os produtores devem ter imaginado que iam ganhar o Oscar da lacração: “Vejam como somos ousados, virtuosos e politicamente corretos! Escalamos uma atriz latina – latina! – para interpretar a Branca de Neve! Esse filme vai bombar!”

Mas eles esqueceram um pequeno detalhe: os anões.

Uma vez aberta, a caixa de Pandora da lacração identitária liberta forças que rapidamente saem do controle. O problema é que, inevitavelmente, essas forças entram em rota de colisão umas com as outras, porque cada grupo identitário que se vê com direitos diferenciados olha para os demais como inimigos em potencial. Em um mundo dividido em grupos que competem por privilégios e se ofendem facilmente, jamais será possível agradar a todos.

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Quem com lacre lacra com lacre será lacrado. A Branca de Neve latina foi concebida para agradar e dar representatividade à comunidade latina nos Estados Unidos, mas a própria ideia de refilmar o conto de fadas pareceu inconcebível para a comunidade dos anões – ou, ao menos, para um anão muito representativo, o ator Peter Dinklage, que ficou famoso como o Tyrion Lannister da série “Game of Thrones”.

Em uma entrevista, nesta semana, Dinklage se mostrou chocado com o projeto da refilmagem da Branca de Neve:  “Literalmente sem querer ofender ninguém, mas fiquei um pouco surpreso: eles ficaram muito orgulhosos de escalar uma atriz latina como Branca de Neve – mas ainda estão contando a história de Branca de Neve e dos Sete Anões… Não faz sentido para mim. Querem ser progressistas, mas ainda filmam aquela história retrógrada sobre sete anões vivendo juntos em uma caverna?”

Pois é, coisas que pareceriam impensáveis ou simplesmente ridículas 10 anos atrás hoje são rotineiras – e ai de quem estranhar: será imediatamente julgado, condenado e esfolado nos tribunais de justiça sumária das redes sociais. Uma dessas coisas é um ator anão, que ficou famoso interpretando um personagem anão, achar ruim refilmarem a história da Branca de neve e dos sete anões.

Aliás, Tyrion Lannister era um personagem cínico, misógino, machista, preconceituoso e politicamente incorreto ao extremo – muito pior como ser humano que qualquer um dos Sete Anões. Tyrion era um personagem de ficção. Atchim, Dengoso, Dunga, Feliz, Mestre, Soneca e Zangado também são personagens de ficção, que já encantaram crianças de muitas gerações. Mas, por ser anão, Peter Dinklage julga ter autoridade moral para censurar e proibir a refilmagem de um conto de fadas.

O problema não acaba aí. A Disney julgou necessário responder às críticas de Dinklage mas respondeu de uma forma que deve ter feito seu fundador, Walt, se revirar no túmulo. Pagando pedágio para a lacração, a gigante do entretenimento se apressou a divulgar que a nova versão dos Sete Anões “fugirá dos estereótipos da animação original” (oi?) e que terá consultoria de “membros da comunidade do nanismo”. Já se fala que os anões serão substituídos por um grupo de “criaturas mágicas”...

Que estereótipos seriam esses? A Disney não explicou. O que fica claro é que a nova versão da Branca de Neve representará mais um passo no perigoso projeto de reeditar o passado que parece mover o fascismo identitário – projeto que conta com o apoio incondicional da academia e da grande mídia, principais patrocinadores da cultura do cancelamento.

Mas, superado o problema com os anões, nada impede que o filme seja cancelado por outros grupos. Por exemplo, que história é essa de uma mulher depender do beijo de um príncipe encantado para acordar do feitiço? Trata-se claramente de um estereótipo heteronormativo e machocêntrico e tem tudo para desagradar às feministas. Talvez a Disney resolva também excluir o príncipe e o beijo da história.

Luciano Trigo, colunista - Gazeta do Povo - VOZES