Cenário para reforma é favorável, mas não é possível errar
O mundo político tende a aguardar o restabelecimento pleno do
presidente Jair Bolsonaro para dar início à batalha pela reforma da
Previdência. Não há possibilidade de delegar responsabilidades neste
momento dada a baixíssima tolerância ao erro que existe em relação a
este tema no Congresso e no mercado.
Bolsonaro governa nas circunstâncias históricas mais propícias nos
tempos recentes para realizar uma reforma da Previdência substantiva. É
uma constatação mesmo de fontes que não têm motivos para apoiar o
ajuste. A pista livre e seca, contudo, não impede que o condutor lance o
carro no barranco. Ninguém pode arbitrar a negociação a não ser o
presidente da República, que precisa curar-se de uma pneumonia antes de
decidir sobre a idade mínima.
Um atraso de alguns dias na alta de Bolsonaro, por si só, não tem
muito efeito na reforma. Como alerta o cientista político Cristiano
Noronha, vice-presidente da consultoria Arko Advice,
antes da instalação
da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, a emenda da
Previdência não tem como tramitar. Ressalvada a possibilidade do quadro
de saúde do presidente se deteriorar, o que parece causar algum ruído
entretanto são possíveis erros de comunicação sobre a recuperação
presidencial da cirurgia de reversão da colostomia. Quem já passou pelo
procedimento considerou exageradamente otimista as previsões iniciais de
que a cirurgia duraria apenas três horas, e de fato ela durou mais, bem
como avaliou que a previsão inicial de alta em apenas uma semana pouco
conservadora. Talvez fosse mais prudente não ter alimentado este tipo de
expectativa. Mas quem defende uma reforma profunda tem motivos para
estar razoavelmente otimista.
Bolsonaro retoma a meada que Temer interrompeu depois do vendaval da
JBS, com a legitimidade do voto e o mérito de ter tratado do tema
durante a campanha. Não prometeu manter direitos
“nem que a vaca tussa”
como a sua antecessora Dilma. O agravamento da crise fiscal empurra
governadores e prefeitos para se envolverem na reforma da Previdência,
de um modo que não se observou no governo de Lula. A mudança nas regras
atuais conta com apoio quase consensual da mídia e o ministro da
Economia, Paulo Guedes, conta com um grau de credibilidade que compensa
fartamente a sua inexperiência na máquina pública.
Por último, Bolsonaro tem contra si uma
oposição no meio sindical,
enfraquecida, não apenas pela reforma trabalhista de 2016, mas também
pela derrocada petista, o que não era o caso de Fernando Henrique
Cardoso nos anos 90
. “O governo tem todas as condições para aprovar a
reforma”, resumiu o cientista político
Antonio Queiroz, do Departamento
Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). Está portanto nas mãos
do presidente a aprovação da proposta.
Cabe a Bolsonaro não errar. Nada menos que 23 dos novos deputados
atendem pela alcunha de capitão, sargento, major, cabo, delegado ou
general. Destes, 14 são do PSL, ou quase um quarto da bancada da sigla.
Os deputados com patente, um deles inclusive com o hábito de andar
fardado pelo Congresso, representam pouco mais de um terço dos 61
integrantes da
“bancada da bala”, segundo cálculo do Diap. Bolsonaro não
conseguirá fazer uma reforma da Previdência ampla sem pactuar com
cuidado a situação de policiais e militares.
Reduzida a 77 deputados, de acordo com o Diap, a bancada ruralista
tende a pressionar por condições diferenciadas para o trabalhador rural.
Esta também deve ser uma demanda da bancada nordestina, de forma um
pouco generalizada. São representantes de Estados em que o eleitorado
rural ainda representa um contingente importante. Por outro lado, a
proposta de capitalização da previdência tende a mobilizar os deputados
de alguma forma vinculados ao sistema financeiro.
Definidas as linhas gerais do texto e azeitada a articulação,
Bolsonaro precisa calibrar o calendário. Uma reforma da Previdência
ambiciosa, por meio de uma emenda constitucional nova, não se aprova em
poucas semanas, como quer fazer crer o presidente da Câmara, Rodrigo
Maia. Há que se pensar, com muito otimismo, em aprovação na Câmara em
julho e no Senado entre setembro ou outubro, se tudo der certo, na
avaliação de Queiroz. Ele lembra que a reforma mais rápida foi aprovada
por Lula em 2003, e tramitou por nove meses no Congresso. Ainda assim,
foi votada depois de um acordo para que o Senado sugerisse alterações em
uma PEC paralela.
Reforma trabalhista
O fenômeno não é brasileiro, é global: a automação da indústria, que
começa a se estender para o setor de serviços, destrói empregos e induz a
um movimento de redução de custos do trabalho. A liberalização do
comércio mundial, e, em alguns casos, da imigração reforçam a tendência
de desvalorização da mão de obra local.
Se a realidade por si só é amarga, a mistificação não precisaria ser
feita. Soa cínico o discurso oficial de que o trabalhador jovem poderá
optar no futuro entre ter uma
carteira de trabalho azul, a porta da
esquerda, com todos os direitos e poucas ofertas, ou outra
verde-amarela, porta da direita, produto da livre negociação entre
empregado e empregador.
Jovem que entra no mercado de trabalho não tem outro ativo para
oferecer a não ser a disposição para topar qualquer empreitada. Não está
na posição de escolher coisa alguma. Está claro que quem terá a opção é
o empregador, a quem caberá estabelecer todas as cláusulas contratuais.
A relação é obviamente assimétrica. Na construção do discurso antitrabalhista oficial ganha destaque a
identificação da CLT com a Carta del Lavoro, de Mussolini. Confundem,
deliberadamente, ideologia com história. É fato que Getúlio inspirou-se
no ditador italiano, mas Mussolini não era um demiurgo. Os
acontecimentos históricos nas primeiras décadas do século 20, em
especial a Revolução Russa e a catástrofe de 1929, levaram ao poder
governos que procuraram intervir nas relações sociais para mantê-las sob
controle.
Foram criadas válvulas de escape, na Itália fascista, nos
Estados Unidos de Roosevelt, no Reino Unido durante os governos
trabalhistas, na Argentina de Perón, no México de Cárdenas. É por um
imperativo histórico, e não ideológico, que no mundo inteiro estes
mecanismos de proteção estão sob ameaça ou sendo revertidos.
Valor Econômico