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terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Uma civilização que se perdeu - Percival Puggina

      Há muitos anos, após debater num programa de rádio com importante líder comunista daqui do Rio Grande do Sul, prolongamos nossa conversa fora dos microfones. Subitamente, ele me diz: “Puggina, tenho inveja de vocês cristãos”. 
Diante de minha surpresa, explicou que reconhecia ser muito mais suave obedecer à Lei de Deus do que à lei dos homens. 
Que o Estado e suas leis muitas vezes transbordavam para o arbítrio e para a violência e que a guia moral da religião parecia mais natural para contenção das paixões humanas.  

Ao seu modo, ele estava manifestando uma compreensão daquilo que se denomina Direito Natural, ou intuindo a universalidade da lei moral, ou a influência positiva da moral judaico cristã, ou reconhecendo méritos na civilização ocidental cristã, ou no cristianismo cultural, ou algo de cada um desses fatores.

Pois é... Essa conversa ocorreu há tanto tempo! Mas se há uma constatação que se pode fazer sem medo de errar é que já então a lei de Deus vinha sofrendo acelerado “revogaço” em todo o Ocidente outrora dito cristão. Esse foi o caminho encontrado por aqueles que tinham para a humanidade um projeto de poder que não podia conviver com a prevalência de Deus, da família, do mercado e do sentimento de pátria na cultura dominante. O Estado e apenas ele tinha que se sobrepor de modo absoluto, a tudo e a todos.

Como isso aconteceu? É tão fácil entender! O que se convencionou chamar de cristianismo cultural era um subproduto da prática religiosa cristã. Descrevia aquilo que meu interlocutor referido no início deste artigo, constatava e, ao seu modo, atribuía valor. Decorria da vida em conformidade com a fé. Da oração, dos sacramentos, da vida piedosa e virtuosa, do amor a Deus, ao próximo e a si mesmo. Quando estes elementos essenciais da religião que fundava a cultura ocidental foram perdendo sentido e sendo relativizados, restou uma corruptela do cristianismo e uma corruptela do cristianismo cultural, cujo resultado grita nas estatísticas sociais e nas práticas políticas.

Claro, escrevo como cristão e, neste particular, como conservador. Muitos hão de sustentar que vamos bem e progredimos. Essa divergência está no foco das disputas em curso na vida social, política e econômica da sociedade brasileira.

Percival Puggina (78), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org), colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

A sagração do profano - Percival Puggina

 Quem expulsa o sagrado acaba por consagrar o profano.

Certa feita, após um debate em programa de rádio, ofereci carona ao meu adversário, líder de um partido de esquerda. Rodamos cerca de 20 minutos conversando como gente normal, sem audiência, sem microfone e sem reservas, confirmando ser a existência de um público que torna os debates mais acirrados. Lá pelas tantas ele me disse ter inveja dos cristãos. A fé – afirmou – é muito mais suave e leve do que a lei e a força para conter o mal existente no ser humano.

De fato, na falta do Absoluto, tudo se relativiza e o querer humano se converte na medida de todas as coisas. Há muitos anos, tive o privilégio de conhecer e conversar longamente, aqui em Porto Alegre, com um eminente professor de Filosofia do Direito em Granada, posteriormente eleito para o Congresso dos Deputados e, em 2012, guindado ao Tribunal Constitucional espanhol. Cito trecho de um texto que o Dr. Andrés Ollero me enviou sobre o relativismo:

“Quando se identifica democracia com relativismo, se verá como inimigo quem insinue, mesmo remotamente, que algo possa ser mais verdade que seu contrário. O mais cômico desse assunto é que – desafiando o princípio da não contradição – o relativismo se converterá em valor absoluto, subtraído de toda crítica.”

Alguém dirá, não sem razão, que o Direito Natural absorve, querendo-se ou não, a ideia de um Deus, de uma sabedoria universal, ou algo assim. E isso não seria cabível num Estado laico.  
O problema dessa objeção é que ela, como um “tchick” de faca Tramontina, corta a palavra de quem fala e investe com retroescavadeira sobre imensa biblioteca que, não por acaso, contém séculos de sabedoria humana.

No meu livro Pombas e Gaviões escrevi, sobre a aceitabilidade do argumento religioso:

“Tenho certeza de que ninguém duvida da conveniência de prestar atenção a quem, num debate, traga, para a formação das opiniões, um conteúdo científico adicional. Esse acréscimo de “saber” pode não ser considerado válido ou aplicável, pode não produzir consequências, mas será certamente reprovada por imprópria ao convívio civilizado a atitude de quem recusar ao próximo o direito de expor, com base nele, os fundamentos de sua posição. Não vejo motivo para que um argumento cadastrável como “religioso”, ou “não profano”, seja apartado liminarmente desse mesmo debate”.

Não sei quantos leitores compartilham esse ponto de vista, tal a confusão introduzida em uma sociedade outrora conservadora com a tomada militante dos espaços de formação das consciências e das opiniões.

O que sim sei é que esses novos direitos, a imposição de novos códigos e convenções através do politicamente correto está criando um deus ex-machina, difuso e confuso, a controlar pensamentos, palavras e obras.  
Sem lei que as defina como crime, qualquer pessoa pode ter sua vida devassada e devastada, ser jogado à desgraça por palavra imprópria ou ideia considerada politicamente incorreta. O braço pesado da lei vai ficando mais e mais descontrolado.

É o que estamos vivendo em nosso país com a relativização da Constituição pelo ativismo e narcisismo judicial e com a sacralização do Supremo ante o genuflexo Senado da República.

Percival Puggina (77), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org), colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 


sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

A estudante e a "prova laica" - Percival Puggina

Transformando suas aulas em verdadeiros ritos sacrificiais, certos professores imolam a política, a filosofia e a história com o objetivo final de apequenar as mentes e conquistar os corações dos alunos para “a causa”.
Exagero? Infelizmente não. 
A Educação em geral e as universidades em particular são um cacife político importantíssimo, no Brasil como em Cuba.
Quantos atos de formatura dão prova pública do que afirmo? Estes tempos de covid-19, suspenderam tais solenidades. No entanto, até 2019, como legado dos anos de hegemonia revolucionária, formaturas foram virando comícios políticos. Os convidados, engravatados por respeito ao ato solene, enfrentavam o calor do verão em homenagem a formandos que aproveitavam o público para desabafarem suas animosidades políticas. Era festejado como triunfo o que deveria ser interpretado como confissão de culpa do sistema e expressão ruidosa da obstinada imposição de silêncio à divergência. O pluralismo e a universalidade deixaram de ser inerentes a muito ambiente acadêmico.
         
A dita “defesa da autonomia” deve ser entendida, principalmente, como defesa da hegemonia. Para isso, mobilizam-se as universidades federais com o intuito de impedir que o presidente da República exerça prerrogativa a ele conferida pela lei e escolha, de listas tríplices, os nomes de sua preferência. Preservação da autonomia? Não, mecanismo de autoproteção porque é ali, como bem observou José Dirceu, que se conquistam os corações e as mentes.
***
Apenas portais e sites católicos noticiaram o fato que dá título a este artigo. Uma estudante foi obrigada pela fiscal do ENEM a retirar o escapulário e uma dezena do rosário que trazia ao pulso como condição para poder participar da prova. 
Alegação lacradora: “A prova é laica!”. Li a notícia no excelente Tribuna Diária, acrescida da informação: “A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público acionou o MP/SP para que instaure representação por crime de preconceito religioso, etc.”. 
 
Pois foi exatamente sobre esse tipo de objetivo político/ideológico que escrevi o artigo “Sem virtudes, sem valores e sem vergonha”(1). 
Para arrastar a sociedade de um país essencialmente cristão na direção de um regime totalitário é necessário investir contra o cristianismo presente no espaço público, em nome da laicidade do Estado. Por quê? Porque convence as pessoas de que a fé é inerente ao indivíduo e tem dimensão privada, incompatível com o Estado e os espaços públicos. Na sequência, facilitado por esse “entendimento”, ganham caráter relativo e subjetivo também os princípios e valores correspondentes a essa fé, que perderiam, assim, o direito de se manifestar publica ou politicamente.
        
Como consequência, questões envolvendo princípios e valores morais se tornam prerrogativa do Estado (confiram com as falas de ministros do STF). Tal receita nos leva em marcha batida à perda das liberdades e ao totalitarismo. 
Ele já se expressa, entre nós, na rejeição ao Direito Natural e no silêncio imposto a Aristóteles, Tomas de Aquino, Francisco Suárez e a tantos filósofos conservadores e liberais contemporâneos. A toda divergência, enfim.
É o laicismo assumindo-se como artefato bélico da revolução cultural, cujo objetivo é bem conhecido. 
Publicado originalmente em Conservadores e Liberais, o site de puggina.org
 
Percival Puggina (76), membro da Academia Rio-Grandense de Letras e Cidadão de Porto Alegre, é arquiteto, empresário, escritor e titular do site Conservadores e Liberais (Puggina.org); colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil pelos maus brasileiros. Membro da ADCE. Integrante do grupo Pensar+.