O Estado de S.Paulo
Nova CPMF seria para financiar o Renda Brasil e aumentar a chance de reeleição de Bolsonaro
O assim chamado projeto de reforma tributária do governo federal é assaz
estranho. Tardou 18 meses para ser apresentado, pois, da forma que foi
feito, poderia ter sido entregue na segunda semana do mandato, em
fevereiro de 2019. Com um pouco de preguiça, na quarta! Foi enviada à
Câmara dos Deputados, com pompa e entrega pessoal, uma simples
unificação do PIS e da Cofins, quando nessa Casa e no Senado tramitam
duas PECs que, além de contemplarem esses pontos, são muito mais
completas e abrangentes. Já há toda uma discussão em curso, comissão
mista, relator, conversas avançadas com os secretários estaduais da
Fazenda para incluir no projeto o ICMS, e assim por diante. Não faz o
menor sentido o governo entrar em cena somente agora, salvo se a razão
for política, e não econômica.
Tendo perdido protagonismo, ele tenta resgatá-lo. Seu risco consistia e
consiste em ser deixado de lado, tornando-se mero ator coadjuvante, sem
maior relevância. Foi ressentida uma necessidade de exposição política,
veiculando a seguinte mensagem: também faço parte do jogo! Entrando como
novo ator, criou toda uma encenação relativa a fatiamento, tentando
embaralhar o debate. As falhas negociais são gritantes, porque a primeira etapa pressupõe as
demais, com a alegação de que algo não contemplado neste momento o será
depois, sem que se saiba se haverá depois ou, caso exista, qual será sua
proposta. Não dá para confiar. Os diferentes agentes econômicos e
sociais ficam literalmente pisando em falso, alguns com medo de ter seus
interesses contrariados se disserem algo antes do tempo, sem que se
vislumbre, porém, o próprio tempo! Em vez de entrar numa discussão
séria, aproveitando os projetos existentes, o governo optou pela
desorientação.
Houve um antecedente esclarecedor, que já prenunciava o que estava por
vir. Quando da negociação do Fundeb, na última hora o governo tentou
emplacar a transferência de parte dos recursos, voltados para a educação
básica, para o Renda Brasil. Dessa maneira traria para si uma bandeira,
preparando o caminho para seu próprio projeto político, dando-lhe
visibilidade e apresentando uma justificativa social. No fatiamento, ficaram por enquanto de fora o aumento do Imposto de
Renda da Pessoa Física, incidindo sobre os rendimentos mais elevados,
tributação de heranças e dividendos, renúncias com o intuito de maior
justiça social, questões essas, aliás, já presentes nas PECs em
tramitação. [o presidente Bolsonaro deve uma promessa de atualizar a tabela do IRPF - só que más línguas murmuram que pretende também reduzir deduções - atualiza tabela = aparente redução de imposto - retira deduções = real aumento de imposto. Tudo igual a seis por meia dúzia.]
Em seu lugar reaparece uma ideia que mais parece obsessão: a
recriação da CPMF. Parece que apenas isso importa. Tenta-se criar um
clima favorável que possa eventualmente reverter a indisposição relativa
a esse novo tributo. Por que tal afinco, quando parlamentares enviaram
várias mensagens sobre a dificuldade de sua aprovação, para além de uma
opinião pública avessa a essa proposta?
O objetivo é claro: recriar a CPMF para financiar o Renda Brasil que,
por sua vez, serviria de instrumento para a reeleição do presidente
Bolsonaro. Nessas condições suas chances seriam elevadas, repetindo a
experiência lulista/petista. Não há nada de reformismo, liberalismo ou algo que o valha nessa
proposta. Com o presidente Bolsonaro entrando no modo calmaria,
negociação, suas chances de conclusão do mandato se potencializam,
afastando o espantalho do impeachment. Tendo se dado conta de que sua
aprovação popular não apenas se estabilizou, mas aumentou, optou por
sair do modo sobrevivência para entrar no modo reeleição, sem se
preocupar com o modo governabilidade, que implicaria projetos, ideias e
negociações para tirar o País da imensa crise em que está imerso.
De liberalismo não há nada aí. De lulismo/petismo, sim! De populismo
também. Estão cada vez mais parecidos, apesar de um vociferar contra o
outro. Devem se amar secretamente. Lula teve a brilhante ideia de
unificar os diferentes projetos sociais do governo FHC, dando-lhes novo
nome, aumentando sua abrangência e seu financiamento. Nascia o Bolsa
Família, criando uma clientela política cativa sob a roupagem do
benefício social, assegurando sua reeleição e a eleição de sua
sucessora. O presidente Bolsonaro pretende fazer o mesmo: renomear o
Bolsa Família como Renda Brasil, aumentar o número das famílias
beneficiadas e duplicar ou triplicar o seu financiamento. Sua reeleição
estaria praticamente assegurada.
E como poderia fazê-lo? Recriando a CPMF. Não deixa de ser esquisito que
um governo que se diz liberal na área econômica pretenda criar um novo
imposto, chamado de digital ou seja o que for, onerando todos os
contribuintes, isso depois de todo um discurso contra as políticas
econômicas tucana e petista. A CPMF foi criada como IPMF no governo
Itamar, perdurou até o governo petista e só foi derrubada por uma ampla
concertação da oposição na época, com o ex-presidente Lula esbravejando a
respeito. Também nisso o atual governo está sendo um discípulo de
governos tão criticados.
Onde fica o liberalismo? E a coerência?
Denis Lerrer Rosenfield, professor de filosofia - O Estado de S. Paulo