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terça-feira, 4 de outubro de 2022

Abraço de afogado - Augusto Nunes

Revista Oeste

Márcio França juntou Haddad e Alckmin no mesmo jazigo onde também vai descansar

 Candidato ao governo de São Paulo Fernando Haddad (PT),  Márcio França e  Geraldo Alckmin | Foto: André Ribeiro/Futura Press/Estadão Conteúdo

Candidato ao governo de São Paulo Fernando Haddad (PT), Márcio França e Geraldo Alckmin | Foto: André Ribeiro/Futura Press/Estadão Conteúdo 

Vereador e duas vezes prefeito de São Vicente, deputado federal, vice-governador de São Paulo, governador interino por mais de um ano, morubixaba do PSB paulista, Márcio França teve em setembro de 2021 uma ideia que lhe pareceu luminosa: transformar o tucano amuado Geraldo Alckmin, a quem substituíra no comando do mais poderoso Estado da federação, em companheiro de chapa de Lula.  
Para tanto, deveria começar pela remoção dos ressentimentos recíprocos, adubados por trocas de insultos e acusações que começaram na eleição de 2006, cresceram nos anos seguintes e chegaram ao clímax na temporada eleitoral de 2018.
 
Os velhos desafetos reagiram com animação à proposta de Márcio. Praticamente aposentado, isolado no PSDB pela afoiteza do ingrato afilhado João Doria, Alckmin teve de conter o entusiasmo diante da chance de vingar-se do verdugo que apadrinhara
Ele aprendeu que fatores biológicos podem encurtar o caminho que leva ao paraíso do poder. 
Em 2001, por exemplo, o câncer que matou Mário Covas acabou instalando no cargo o obscuro deputado federal que o PSDB escolhera para completar a chapa como vice-governador. 
A dobradinha com alguém sete anos mais velho pode desbastar uma trilha que desemboca na Presidência da República.

Lula também gostou do que ouviu. Desde 1994, quando assumiram o governo de São Paulo, os tucanos espancam o PT nas urnas a cada quatro anos. A tarefa sempre foi facilitada pelas figuras todas perturbadoras, algumas apavorantes escolhidas para representar a estrela vermelha

O cortejo transformou em certeza a suspeita dividida por milhões de eleitores: em São Paulo, o PT não lança candidatos; lança ameaças. Os paulistas achavam que qualquer outro seria menos perigoso que gente como Lula, Eduardo Suplicy, Aloizio Mercadante, José Dirceu, José Genoíno, Luiz Marinho e outros perigos fantasiados de homens públicos.

Eduardo Suplicy e Aloizio Mercadante
Eduardo Suplicy e Aloizio Mercadante, em julho de 2022 - 
Foto: Reprodução
Com a ajuda do companheiro Alckmin, acreditou o chefão, seria bem menos complicado chegar ao Palácio dos Bandeirantes, e logo começaram os encontros furtivos. 
Consumado o noivado, Márcio convenceu o carola de carteirinha, capaz de rezar a segunda metade do Credo de trás para a frente, de que deveria filiar-se ao Partido Socialista Brasileiro. 
Alckmin sentiu-se de tal forma em casa que, poucos dias depois, já se desmanchava em mesuras a cada encontro com um homem que, três anos antes, acusava de querer voltar à Presidência por sonhar com o regresso à cena do crime.

A partir de agora, ele é o companheiro Alckmin”, decretou Lula durante outra missa negra da seita. O mais recente amigo de infância retribuiu com afagos ousados. Numa noitada, cobriu a cabeça destelhada com um boné do MST. Noutra, caprichou na cantoria da Internacional Socialista. Logo seria visto puxando palavras de ordem em louvor do companheiro que vivia chamando de “ladrão. “É uma mudança impressionante”, constatou um amigo que convive há décadas com Alckmin. “Ele diz que só agora conheceu o Lula de verdade.”

Márcio esperou a hora certa para reivindicar o dote devido ao seu talento casamenteiro: queria ser senador. E detalhou a barganha. 
Para anabolizar a candidatura a governador do petista Fernando Haddad, o PSB não teria candidato próprio em São Paulo. 
Em contrapartida, o PT desistiria de lançar algum candidato ao Senado filiado à sigla, para que Márcio fosse o único pretendente à vaga. 
Como Lula topou de imediato a troca de favores, Márcio dobrou a aposta: exigiu que sua mulher, a educadora Lúcia França, figurasse como vice na chapa encabeçada por Haddad. Emplacou mais essa.

Está provado que o patrimônio eleitoral de Geraldo Alckmin, se é que algum dia chegou a existir, evaporou-se de vez

Tudo acertado, o idealizador do acerto atravessou a campanha com a pose de quem, numa vida passada no Império Romano, foi senador vitalício. Neste 1° de outubro, foi dormir embalado pelos números da derradeira pesquisa Datafolha. 
Com 45% dos votos válidos, Márcio França liderava a disputa muitas léguas à frente de Marcos Pontes, ex-ministro do governo Bolsonaro, emperrado em 31%. 
Acordou no domingo ansioso por correr para o abraço. Descobriu pouco depois do início da apuração que deveria ter lido e assimilado a frase de Tancredo Neves: “A esperteza, quando é muita, fica grande e come o dono”. Terminada a contagem dos votos, descobriu que lojinhas de porcentagens iludem fregueses de todos os tipos, e são especialmente cruéis com oportunistas deslumbrados.
 
As urnas reduziram para pouco mais de 36% os 45% que lhe haviam embalado o sono e fizeram Pontes saltar de 31% para quase 50%. Nocauteado, o articulador de botequim terá de levantar sem demora para tentar reduzir as dimensões da segunda derrota reservada a Fernando Haddad e Lúcia França, outra dupla eleita pelo Datafolha e castigada pelo mundo real. Na véspera do dia da votação, os fabricantes de índices homenagearam a chapa com 39% dos votos válidos. 
Sobraram 31% para Tarcísio de Freitas, candidato de Jair Bolsonaro, e 20% para o governador Rodrigo Garcia, candidato à reeleição pelo PSDB. De novo, os eleitores de São Paulo puniram a fantasia estatística. Tarcísio venceu com mais de 42% dos votos válidos. Haddad baixou para 35% e manteve o PT longe do governo paulista.  
 
Com 18,5%, Rodrigo Garcia encerrou a longa hegemonia do PSDB.
Lula afirmou na noite de domingo que vai vencer Bolsonaro porque “o segundo turno é apenas uma prorrogação”. Se é assim, tem de admitir que houve, visto de perto, um empate
A declaração também proíbe Haddad de argumentar que a próxima etapa será o recomeço do jogo. 
Como o candidato a presidente pelo PT também foi vencido em território paulista, está provado que o patrimônio eleitoral de Geraldo Alckmin, se é que algum dia chegou a existir, evaporou-se de vez. 
Os estragos provocados pela colisão com a maior e mais sólida fortaleza conservadora do Brasil liberam o ex-prefeito de Pindamonhangaba e o ex-prefeito de São Vicente para o cultivo da bonita amizade simulada durante a campanha do primeiro turno. Nasceram um para o outro.

Leia também “Um líder sem povo”

Augusto Nunes, colunista - Revista Oeste


sábado, 19 de fevereiro de 2022

A cura da velhice - Dagomir Marquezi

Revista Oeste 

Paul McCartney, num show em Nova Iorque | Foto: Debby Wong/Shutterstock
Paul McCartney, num show em Nova Iorque | Foto: Debby Wong/Shutterstock

“Eu poderia ser útil, consertando um fusível / Quando suas luzes apagarem / Você pode tricotar um suéter ao lado da lareira / As manhãs de domingo são reservadas para um passeio / Cuidando do jardim, arrancando as ervas daninhas / Quem poderia pedir por mais?”

Dia 18 de junho, Paul vai completar 80 anos. E ele não para: compõe, grava discos, protagoniza clipes, produz um filme de animação para a Netflix e prepara novas versões de seus discos Flaming Pie e McCartney. E agora vai voltar à rotina maluca de shows pelo mundo com o tour Got Back, que começa nos Estados Unidos em abril. 

O ex-Beatle é o símbolo do novo “velho”; 80 anos não é mais obrigatoriamente a idade para se mudar para uma casa de repouso. Tem gente, claro, que junta dinheiro para se aposentar aos 60 e passar o resto de seus dias sem fazer nada. Mas essa não é mais a regra. Já não existe mais um limite para a produtividade do ser humano. 

Ter 100 anos já não é tão raro. Kane Tanaka, a pessoa mais velha do mundo, chegou aos 119. Ela quer comemorar seus 120 (em 2 de janeiro de 2023). Credita sua longevidade a alguns fatores: “fé em Deus, família, sono, esperança, boa comida e à prática da matemática”. Imagine que no Império Romano e na Idade Média as pessoas morriam de velhas entre 20 e 30 anos.

Kane Tanaka, a pessoa mais velha do mundo | Foto: Reprodução
O copo cheio
Estamos nos movendo para viver cada vez mais. E até mesmo viver para sempre. Poderá chegar o momento em que a velhice seja considerada uma doença. E, como as outras doenças, se tornar evitável e reversível. Podemos chegar a um ponto em que as pessoas não morram mais. Mas isso ainda é uma ideia distante. E eticamente discutível.

O objetivo por enquanto não é a vida eterna. É a chamada healthspan”. Ou seja: o número de anos que as pessoas podem viver bem, sem doenças. Pesquisas estão buscando esse aumento de tempo em que o ser humano não envelheça, ou envelheça o mínimo possível. 

A revista britânica Science Focus, da BBC, dedicou uma capa a essa possibilidade com a chamada “Por que não temos mais que envelhecer”. Segundo a reportagem da BBC, 80% da população mundial acima dos 65 anos de idade possui algum tipo de doença crônica; 68% dessa população possui duas ou mais doenças crônicas. 

Nos próximos 30 anos, calcula-se que o número de pessoas acima de 65 anos vai duplicar e chegar a 1,5 bilhão. Ou seja: pelas atuais condições, 1,2 bilhão de pessoas vão ter uma doença crônica. Pouco mais de 1 bilhão terá duas ou mais. Podemos ver esses números do jeito “copo meio vazio”: vamos precisar de muito dinheiro para aposentadorias e serviços médicos especializados para idosos. 

Ou, como Jim Mellon, presidente da empresa Juvenescence, enxergar o “copo meio cheio”: “Se nós tivermos uma droga que some mais um ou dois anos à duração da vida, teremos trilhões de dólares a mais na economia mundial, porque as pessoas serão produtivas por mais tempo e não teriam todas essas morbidades que custam tanto aos nossos sistemas de saúde”.

Os nove passos para o envelhecimento
O envelhecimento é o maior fator de risco para o câncer e para doenças cardiovasculares e neurodegenerativas. A reportagem da Science Focus lista nove passos que fazem a velhice se tornar um gatilho para doenças:
  1. o DNA se torna instável, possibilitando a ocorrência de mutações;
  2. as células têm mais dificuldade para se comunicar umas com as outras;
  3. as pontas dos cromossomos, conhecidas como telômeros, começam a se desfazer;
  4. células velhas e desgastadas se acumulam e causam danos;
  5. pequenas “baterias” celulares, chamadas mitocôndrias, tornam-se defeituosas;
  6. células-tronco, que podem ajudar a reparar o tecido, ficam esgotadas;
  7. ocorrem mudanças epigenéticas — alterações químicas que não afetam a sequência de DNA, mas afetam a atividade do gene;
  8. as células se tornam menos capazes de produzir e manter proteínas-chave;
  9. a detecção de nutrientes torna-se falha.

A teoria em desenvolvimento parte de um princípio simples: se você corrigir esses nove problemas, poderá prevenir ou adiar muitas das doenças associadas com a velhice. Pesquisadores estão procurando o caminho para essa nova era.

Ressacas e telefonemas de gente chata
A Universidade de Connecticut tem um Centro de Estudos sobre Envelhecimento. Células envelhecidas foram transplantadas para ratos — e a saúde deles decaiu. Em seguida, os pesquisadores usaram nas cobaias um coquetel de duas drogas senolíticas: quercitin e desatinib. As células “rebeldes” foram destruídas. Os ratos se tornaram mais robustos. Desenvolveram músculos mais fortes, tornaram-se mais ativos e viveram mais.

Esses ratos receberam as drogas com dois anos de idade. Em termos de idade humana, segundo o doutor Ming Xu, da Universidade de Connecticut, “é o equivalente a uma pessoa iniciar seu tratamento com 70 ou 80 anos e ter sua vida estendida por cinco ou seis anos”. Segundo a Science Focus, os medicamentos usados na experiência são baseados em pigmentos achados em plantas e vegetais e perfeitamente seguros para humanos. Quercitin já é usado como suplemento dietético e o desatinib, como remédio para leucemia.

Outros estudos mostram que drogas senolíticas podem “adiar, prevenir ou amenizar” mais de 40 doenças, incluindo câncer e várias moléstias do coração, fígado, rim, pulmão, olhos e cérebro. Outras consequências positivas estão sob estudos em casos de diabetes, artrite e doença de Alzheimer. Drogas senolíticas, por definição, retardam o envelhecimento das células.

O maior problema de desenvolver esse projeto com rapidez é o fato óbvio de que o envelhecimento humano é lento. E os estudos devem seguir o ritmo desse envelhecimento para chegar a conclusões seguras. Uma saída encontrada para acelerar esses estudos é o Dog Aging Project (Projeto Envelhecimento de Cães), que está sendo desenvolvido nos EUA. Cães envelhecem sete vezes mais rápido que os humanos, o que pode acelerar os resultados. 

O Dog Aging Project acompanha 500 cães em suas casas tomando um remédio chamado rapamycin, que pode esticar suas vidas, com qualidade, por quatro anos “humanos” — que equivalem a 28 anos “caninos”. A experiência, além dos possíveis resultados, inova pelo método: os animais são estudados com maior precisão em seus lares, longe da crueldade e do artificialismo dos laboratórios.

O paradigma médico hoje, segundo a reportagem da Science Focus, é que o envelhecimento ainda é visto como uma inevitabilidade desagradável da vida, “como ressacas e telefonemas de gente chata”. Para que a indústria farmacêutica gere novos medicamentos e tratamentos, é preciso mudar esse paradigma. 

Um grão de sal
Enquanto esse reconhecimento não vem, o jeito é pegar um atalho. O doutor Nur Barzilai, do Instituto de Envelhecimento do Albert Einstein College of Medicine, em New Iorque, deu um jeito de avançar nas pesquisas sem quebrar o velho paradigma. Ele está explorando um remédio para diabéticos chamado metformin. Barzilai se apoia num estudo britânico de 2014 que mostra que, entre 150 mil pessoas estudadas, os diabéticos que tomavam metformin viviam mais tempo que os não diabéticos que não o tomavam.

Barzilai hoje faz parte de um projeto chamado Tame, que quer dizer Targeting Aging with Metformin (algo como “Atirando no Envelhecimento com Metformin”). Durante quatro anos, 3 mil adultos entre 65 e 80 anos que não possuem diabetes vão receber metformin. O objetivo é observar a capacidade da droga em adiar doenças relacionadas com a velhice. Ou seja, conferir se a metformin é capaz de prolongar nossas vidas. Os usuários de Viagra sabem que essa não seria a primeira vez que um remédio para uma causa acaba resolvendo outro problema.

Teremos mais chances de realizar nossos sonhos levando uma vida saudável e produtiva

Não são apenas drogas genéricas como o metformin que poderão nos fazer viver mais e melhor. A medicina está numa fase de profunda revolução tecnológica que tende a mudar radicalmente as regras do jogo. Veja o exemplo da câmera do tamanho de um grão de sal criada por pesquisadores da Universidade Princeton e da Universidade de Washington. Sua qualidade de imagem equivale a câmeras 500 mil vezes maiores. 

Sua primeira perspectiva de uso era tornar a endoscopia mais simples e menos invasiva. Basta engolir o “grão de sal”. Mas continuando nesse ritmo podemos pensar numa câmera capaz de entrar na nossa corrente sanguínea e registrar o estado de nossas veias e artérias nos mínimos detalhes, como nos filmes Viagem Fantástica e Viagem Insólita.

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Leia também “A morte lenta da noite”

Dagomir Marquezi, colunista - Revista Oeste