Atividades físicas se firmam como indicação médica por diminuir o trabalho
do coração
Eis um novo remédio com
o poder de tratar a doença que é a principal causa de internação e morte por
males cardiovasculares no Brasil.
Revolucionário ao ponto de derrubar paradigmas da medicina. Assim é o exercício, que se firma como
uma forma de tratamento importante para a insuficiência cardíaca.
A atividade física está na
essência da Humanidade, mas só agora começa a ter seu valor e mecanismos de ação reconhecidos.
Nesta primeira reportagem da série “Cura
pelo exercício”, sua força como
tratamento da insuficiência cardíaca é apresentada como emblemática, se for levado em conta o fato de que intolerância ao esforço é justamente uma das principais características
da síndrome, na qual o coração enfraquecido não bombeia sangue suficiente.
Até há pouco tempo se achava que esses pacientes deveriam se manter em repouso.
Agora, a indicação é se mexer.
Trabalhos pioneiros sobre a compreensão da ação
terapêutica da atividade física na insuficiência cardíaca têm sido realizados pelo
programa liderado
por Carlos Eduardo Negrão, diretor da Unidade de Reabilitação
Cardiovascular e Fisiologia do Exercício do Instituto do Coração do Hospital
das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP). Ele está à frente de cinco
grupos multidisciplinares que reúnem médicos, educadores físicos, biólogos
moleculares e psicólogos e acompanhou 140 pacientes.
Mês
passado, Negrão atraiu uma multidão de pesquisadores, educadores físicos,
médicos e estudantes para um auditório na Faculdade de Medicina da USP. Todos
queriam assistir a sua conferência intitulada “Novos paradigmas do exercício físico no tratamento da doença
cardiovascular: conhecimentos do laboratório aplicados ao paciente”, um dos
destaques da reunião anual da Federação das Sociedades de Biologia Experimental
(Fesbe), um dos maiores eventos de ciência no Brasil.
MENOS
TRABALHO PARA O CORAÇÃO
Há cerca
de 20 anos Negrão busca compreender como a atividade física atua sobre o ser
humano, da célula ao indivíduo. Suas investigações oferecem muitas dessas
respostas, com mais de cem estudos em algumas das principais revistas
científicas internacionais. — O exercício modula a ação de proteínas
musculares ligadas à regulação da atividade nervosa simpática no sistema
nervoso central e do estreitamento dos vasos sanguíneos. Com isso, diminui o
trabalho do coração — explica
Negrão, um corredor e fã de atividade física.
O efeito
é tão intenso, que mesmo pacientes graves respondem à simples estimulação
elétrica dos músculos. — Melhorar o
estado de um paciente com insuficiência cardíaca é fantástico. O exercício
melhora a qualidade e possivelmente a expectativa de vida de uma pessoa —
destaca o professor.
A
pesquisadora Ligia Antunes Correa, do grupo de Negrão, já viu muitos pacientes
mudarem de vida para melhor depois de um programa de treinamento. — O exercício é mais que bem-estar. É um
remédio — afirma ela.
O
fisiologista Igor Lucas Gomes-Santos, do mesmo grupo, estuda o que acontece
dentro das células. Ele explica que os
exercícios reduzem muito a ação de uma proteína chamada angiotensina II e do
sistema nervoso simpático, ambos ligados à
insuficiência cardíaca. Também consegue reduzir a caquexia, a perda de
massa muscular frequente nesses pacientes e que pode levar à morte. —
Observamos alterações positivas nas vias moleculares desses pacientes. O mesmo
acontece com a normalização da atividade nervosa simpática, ligada ao controle
da pressão. Após a primeira sessão de treinamento, já vemos melhora na
circulação — frisa Gomes-Santos.
O
professor de cardiologia da UFF e médico do Pró-Cardíaco Evandro Tinoco, um dos
maiores especialistas do país em insuficiência cardíaca, diz que um programa de exercícios pode ajudar a tirar
pacientes da fila do transplante: —
Não há dúvida de que o exercício é um dos remédios mais importantes e um dos
menos usados contra a insuficiência cardíaca. É uma revolução.
Segundo
Tinoco, o
exercício só não é mais prescrito pelos médicos porque o conhecimento sólido sobre sua ação terapêutica é
relativamente recente e pouco divulgado. Outro fator é o custo alto e
não coberto pelos planos de saúde. Mas ele acredita que esse cenário
rapidamente mudará.
O caso da insuficiência cardíaca
é apenas um no numeroso rol de doenças que podem ter o exercício prescrito como
tratamento. A lista inclui de diabetes
à hipertensão e passa por disfunção
erétil, aneurisma, acidente vascular cerebral, complicações renais e preparação para grandes cirurgias,
destaca o diretor científico da Sociedade de Medicina do Exercício e do Esporte
do Rio de Janeiro e fundador da clínica especializada Clinimex, Claudio Gil Araújo, ele próprio um corredor
dedicado e que assina editorial ainda inédito que enumera dezenas de
doenças que podem ser tratadas com exercícios.
SEM
EFEITOS COLATERAIS
Na família ninguém é cardíaco, tampouco ele sentia
qualquer sinal que lhe parecesse indicar problemas no coração. Nunca fumou. Por isso, o protético Gerd Werner, de 57 anos, jamais esperou
sofrer um infarto severo, como o que lhe acometeu há dois anos e mudou sua
vida de forma radical. Werner teve como sequela uma insuficiência cardíaca.
Hoje, ele é um dos pacientes que se tratam com Claudio Gil Araujo, numa clínica
que mais parece uma academia, em Copacabana.
— Não fazia atividade física
regular. Mas desde 2014 ela se tornou parte da minha vida. Venho três vezes por
semana. No início, era como um remédio. Agora virou hábito. E por toda a vida
— conta.
Numa esteira próxima a Werner, a
médica Angela Verri conversa animada com amigos, brinca com todo mundo. De segunda a
sexta-feira, ela vai todo fim de tarde da Tijuca para Copacabana. Não está ali como médica, mas paciente.
Angela se orgulha de não aparentar os 63 anos de idade
e mais ainda da ausência de sinais dos problemas que a levaram a se transformar
de sedentária praticante — “era do
tipo que pega o carro para ir à padaria” — em atleta amadora militante:
— Corro e me divirto muito. E
ainda tomo o meu vinho — afirma ela.
Uma
sucessão de problemas graves a fizeram mudar de vida. Em março de 2012 sofreu um infarto, que a obrigou a colocar um stent. Logo
em seguida, descobriu que tinha câncer
de intestino. Teve que operar. E a isso se somaram
um cateterismo e mais seis stents.
— Eu precisaria fazer uma
cirurgia de revascularização, mas não queria me operar de novo. Aí soube que
poderia tentar uma reabilitação com exercício. No início não levei a menor fé,
achei que ia virar rato de laboratório. Estava errada. Cheguei péssima e agora
estou ótima. Levo uma vida saudável. É como um remédio sem efeitos colaterais
que tenho que tomar todos os dias — diz.
A mesma
animação de Angela demonstra a desembargadora e professora Salete Maria Polita
Maccaloz, de 67 anos. Ela começou há pouco a segunda
fase de uma quimioterapia para um câncer de pulmão com metástase óssea e já
iniciou um programa de exercícios. Sua
meta é reverter a perda de massa muscular e poder voltar a jogar golfe. — Já me sinto melhor. A quimio é muito desgastante, mas estou
confiante que com os exercícios vou melhorar mais depressa — conta.
Fonte: O Globo