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domingo, 1 de setembro de 2019

Inimigo externo costuma ser útil, mas estimular permanentemente a divisão doméstica cobra um preço quando a ameaça real vem de fora - Alon Feuerwerker

Jair Bolsonaro foi pego no contrapé por Emmanuel Macron. O francês deu o troco à desfeita sofrida aqui pelo chanceler dele, quando o presidente brasileiro preferiu ir ao barbeiro e cancelou a agenda com o ministro. O ocupante do Eliseu vem oferecendo um show de timing e iniciativa no debate global em torno dos incêndios na Amazônia. [felizmente o francês se empolgou demais com a aparente vitória e pisou na bola com a ameaça de internacionalização da Amazônia - isso motivou Merkel a aplicar um cala boca no Macron, que na realidade tentava melhorar sua baixa popularidade na França e resistir aos coletes amarelos que estão voltando.] O inquilino do Alvorada deve ter percebido que curvas de aprendizagem em posições altas de poder costumam ser doloridas.

O problema de Macron é a falta de meios para impor-se a Bolsonaro no terreno, se não tiver o apoio político e operacional de Donald Trump. Como no judô, o francês conseguiu boa pegada no quimono adversário. Mas faltam-lhe músculos para executar o ippon. E chegamos à situação curiosa: a
Doutrina Monroe talvez venha a servir para seu anunciado propósito original, avisar aos europeus que fiquem longe das Américas. [e ainda temos a do 'Big Stick'.]

As coisas estão meio desarrumadas nesse assunto, a ponto de uma bandeira histórica da esquerda, “A Amazônia é nossa”, passear agora pelas mãos da direita, enquanto o progressismo parece acreditar que as potências ditas ocidentais querem salvar o planeta. E o General Eduardo Villas Bôas, referência política maior do Exército, recordou com viés positivo a memória do comunista Ho Chi Minh para dizer o que pensa a respeito dos ímpetos coloniais franceses. [os franceses não são confiáveis;

certamente o ilustre articulista  lembra que na Guerra das Malvinas, os franceses forneciam mísseis 'exocet' para os hermanos e ao mesmo tempo passavam os códigos operacionais para os ingleses, traição que foi fator decisivo na derrota argentina.] 

É sempre bom ter cautela nestas situações, os laços de solidariedade entre os países do chamado mundo livre costumam prevalecer quando se trata de impor a ordem neocolonial. Que o diga Leopoldo Galtieri, miseravelmente abandonado por Ronald Reagan na Guerra das Malvinas. [foi uma ingenuidade pueril o general argentino confiar nos EUA da América em um conflito Argentina x Inglaterra.] Ficar mais inteligente com o infortúnio alheio, no caso um infortúnio argentino, também é sinal de sabedoria. E dói muito menos para quem precisa aprender.   Algumas lições já estão disponíveis do episódio. Uma é a exigência de profissionalismo nas relações com outros países. Outra, e muito mais importante: nas Américas e no dito Ocidente persiste uma contradição potencial entre buscar a soberania nacional e alinhar-se ao ocidentalismo radical, hoje na moda. A contradição não é insolúvel, mas precisa ser administrada com cuidado porque a chance de desandar é permanente.

Para complicar, o mundo anda em guerra, por enquanto comercial e de informação, mas não só. A Europa ambiciona estender sua área de influência contra a Rússia mais e mais a leste, os Estados Unidos estimulam o separatismo entre os chineses e fazem tudo pera evitar que o Império do Meio assuma a liderança da economia mundial, inevitável se os herdeiros de Mao continuarem se beneficiando das khruschevistas coexistência e competição pacíficas.

Haja desarrumação.
Bolsonaro precisa então, simultaneamente, 

1) continuar amigo de Trump confiando que este vai protegê-lo do apetite europeu/francês, 
2) não se afastar tanto assim da China e da Rússia pois ninguém sabe o dia de amanhã, 
3) explorar a contradição entre a França, que resiste a precisar importar mais comida brasileira, e a Alemanha, que quer exportar mais máquinas para o Brasil, e 
4) administrar a opinião pública interna, intoxicada pela narrativa benevolente pró globalização com face humana.

Talvez a tarefa de aprender a pilotar o avião em pleno voo e com fortes turbulências acabe convencendo o presidente de duas coisas. A primeira: ideologia demais atrapalha. A segunda, e um princípio fundamental da política: nunca seja tão amigo de alguém a ponto de não poder romper com ele, nem tão inimigo que você não possa um dia se aliar. Principalmente quando você não é a força dominante no tabuleiro político, ou militar.

Sempre é tempo de aprender e melhorar. Uma dica: a biografia de Getúlio Vargas do Lira Neto. Especialmente o trecho sobre a Segunda Guerra. Outra dica: os livros do Elio Gaspari sobre a ditadura, especialmente o pedaço das relações de Ernesto Geisel com os americanos. Uma terceira dica: um inimigo externo sempre é útil nas crises, mas estimular permanentemente a divisão doméstica cobra um preço quando a ameaça real vem de fora. 


Análise PolíticaAlon Feuerwerker,  jornalista e analista político

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

De Guerreiro@edu para Bolsonaro


Na Venezuela deveremos tirar a meia sem tirar o sapato, o Itamaraty fez isso com a Argentina e no Suriname 

Senhor presidente,
Fui empregado do Itamaraty durante 45 anos, seis dos quais como ministro das Relações Exteriores do general João Figueiredo (1979-1985). Ouvi o que o senhor disse em Davos, esperando que o governo da Venezuela "mude rapidamente". Por cá, tenho ouvido a mesma coisa, pois o presidente Nicolás Maduro arruinou o paísEscrevo-lhe para sugerir que nossa diplomacia trate a crise desse país com quem temos 2.000 quilômetros de fronteira seca tirando as meias sem tirar o sapato. Para as pessoas comuns isso parece impossível, mas no Itamaraty sabemos fazê-lo.

Tenho horror a falar de qualquer coisa, sobretudo de mim. Na Casa corre o chiste segundo o qual eu sou capaz de dormir durante meus próprios discursos. Costumo adormecer os outros, mas, mesmo acordado, falo pouco.  Quando sugiro que tiremos a meia sem tirar o sapato, lembro que a hostilidade verbal de seu governo em relação a Nicolás Maduro já foi explicitada. Nossas precauções devem se relacionar com o dia seguinte a uma eventual queda do bolivarianismo. O que advirá? Isso ninguém sabe. Tomara que não aconteça nada e que os venezuelanos resolvam a própria crise. [oportuno lembrar que na Guerra do Golfo, a do Bush pai, havia todas as condições para Saddam Hussein ser derrubado, só que havia dúvidas e muitas se o caos não se instalaria - apesar do seu governo sinistro, Saddam, era o equilibrio na região.

Óbvio que o filhote de Chavez é menos que nada quando comparado ao Saddam - que não valia nada - mas, sua queda de forma rápida trará problemas gravíssimos para toda a América do Sul, notadamente para o Brasil, cuja fronteira dificulta, melhor dizendo, impede qualquer controle dos venezuelanos que desesperados virão para o Brasil para dividir nossa miséria com a deles - que é maior que a nossa.

O Brasil com mais de 12.000.000 de desempregados não tem a menor condição de receber alguns milhões de venezuelanos famintos e desempregados.

E sempre os europeus que estão a milhares de quilômetros da fronteira Brasil x Venezuela, ou seja do problema,  estarão a pregar, a exigir, que o Brasil seja solidário e some nossas necessidades à miséria dos venezuelanos.

Maduro precisa ser excluído, neutralizado, mas, com uma boa análise (sem demorar demais na análise) de todas as implicações.]

Em 1965, o Brasil apoiou a intervenção militar americana na República Dominicana, mandou tropas para uma força multilateral de paz e chegou a comandá-la. Mesmo assim, veja a frequência com que se fala das nossas missões militares recentes no Haiti e no Congo.  Da República Dominicana, fala-se pouco. O que começou como uma operação destinada a evacuar cidadãos americanos transformou-se numa ocupação, e a tropa brasileira ficou por lá durante 18 meses. Até hoje a diplomacia americana discute o processo de decisão que levou o presidente Lyndon Johnson a invadir o país. De qualquer forma, a Dominicana fica a 2.000 quilômetros das nossas fronteiras.

O Itamaraty tirou a meia sem tirar o sapato em 1982, quando o general argentino Leopoldo Galtieri invadiu as ilhas Malvinas, ocupada pelos ingleses desde 1833. O general achava que os Estados Unidos ficariam neutros e a primeira-ministra inglesa, Margaret Thatcher, absorveria o golpe. Não aconteceu uma coisa nem a outra.
Se o Brasil apoiasse Galtieri seria sócio de uma aventura. Se apoiasse a Inglaterra, alimentaria um ressentimento que duraria gerações. Ficamos no fio da navalha, apoiando o direito argentino à posse da ilha e dissociando-nos da invasão. Lembro-me que o general Figueiredo foi a Washington e disse ao presidente Ronald Reagan que o Brasil não admitiria um ataque ao continente argentino. Ele não ocorreu, até porque não foi necessário.

Um ano depois do caso das Malvinas, pousou em Brasília um avião americano com o diretor da CIA, William Casey. Ele trazia um recado para Figueiredo: os Estados Unidos planejavam uma invasão do Suriname e queriam nosso apoio, inclusive com tropas.
O governo local era esquerdista, tinha ajuda cubana e perseguia a oposição. Conseguimos dissuadi-lo, dizendo-lhe que deixassem o Suriname por nossa conta. Figueiredo fez saber a Reagan que a condição de país limítrofe determinava que quaisquer efeitos negativos repercutiriam em primeiro lugar sobre nossos próprios interesses.

Nunca contei essa história, mas ela foi revelada no diário de Reagan. Outro dia reclamei com ele da indiscrição. Como ensinou o Barão do Rio Branco, diplomata não sai por aí cantando vitórias.  Perdoe-me a impertinência, mas o último presidente que pensou em mover tropas na nossa fronteira norte, para a Guiana Inglesa, foi Jânio Quadros.

Com meu profundo respeito
Ramiro Saraiva Guerreiro

Elio Gaspari - Folha de S. Paulo