Assessor de Trump evoca Doutrina Monroe contra presença de Cuba e Rússia na Venezuela
Em entrevista ao programa State of The Union, da rede CNN, o
conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, John Bolton,
citou ontem a Doutrina Monroe, uma política do século XIX que tinha como
objetivo anular a influência e a intervenção de países europeus nas
novas repúblicas do continente americano, para justificar a política dos
EUA para a Venezuela.
Questionado por que o governo de Donald Trump decidiu combater o governo
de Nicolás Maduro de maneira agressiva, enquanto tem uma política mais
branda em relação a outros regimes autoritários, como os da Arábia
Saudita e do Egito, Bolton destacou que a Casa Branca está dando
prioridade a esforços para se envolver nas questões de seu continente. — Neste governo não temos medo de usar a expressão “Doutrina Monroe”.
Trata-se de um país no nosso hemisfério. Manter um hemisfério
completamente democrático sempre foi o objetivo de presidentes
americanos desde Ronald Reagan — afirmou Bolton. — Eu disse, no fim do
ano passado, que estávamos buscando o fim da "troica da tirania",
incluindo Cuba, Nicarágua e também Maduro. Parte do problema na
Venezuela é a ampla presença de cubanos. São entre 20 mil e 25 mil
agentes de segurança segundo os relatórios publicados. E esse é o tipo
da coisa que consideramos inaceitável.
Apesar de ter citado a Doutrina Monroe, pela qual originalmente
Washington interveio sozinha em países vizinhos, Bolton disse que os EUA
estão formando “a mais ampla coalizão possível” para derrubar o
presidente venezuelano.
ZONAS DE INFLUÊNCIA
A alusão de Bolton à Doutrina Monroe foi criticada por acadêmicos: “O
autodestrutivo e perigoso John Bolton: ‘Neste governo não temos medo de
usar a expressão Doutrina Monroe’. Ele diz isso logo depois de afirmar
que quer uma ampla coalizão para derrubar Maduro. Ressuscitar a Doutrina
Monroe não fará isso”, escreveu no Twitter Ryan Goodman, professor de
Direito na Universidade de Nova York e ex-conselheiro do Departamento de
Defesa dos EUA. “Ao invocar a Doutrina Monroe, Bolton justifica um mundo multipolar
caótico, no qual cada potência tem zonas de influência. Os EUA
reivindicam decisões sobre a Venezuela, a Rússia faz o mesmo em relação à
Ucrânia, a China sobre o mar territorial de seus vizinhos, a França
sobre o Saara etc”, escreveu o sociólogo peruano Eduardo González, que
participou da Comissão Verdade e Reconciliação criada em seu país após
20 anos de conflito com o grupo maoista Sendero Luminoso. “Bolton sabe
que o mundo unipolar dos EUA está desaparecendo, e acredita que a
alternativa é o equilíbrio multipolar de potências com zonas de
influência... como em 1914.”
Bolton não foi o único em Washington a usar esse tipo de linguagem ao
descrever a situação na Venezuela. O presidente da Comissão de Serviços
Armados do Senado, o republicano Jim Inhofe, afirmou no mês passado que
os EUA poderiam se ver obrigados a invadir a Venezuela caso a Rússia
instalasse uma base militar no país “ou em qualquer lugar no nosso
hemisfério”. A Rússia é a principal aliada de Maduro, ao lado da China. A
ampliação da presença econômica chinesa na América Latina tem sido alvo
de críticas do governo Trump.
Apresentada em 1823 pelo então presidente americano James Monroe sob o
lema “a América para os americanos”, a Doutrina Monroe outorgou ao
governo dos EUA o direito de intervenção em todo o hemisfério para
conter a influência europeia. Em 1904, o presidente Theodore Roosevelt
articulou o chamado “corolário Roosevelt” da doutrina, pelo qual os EUA
também poderiam intervir em países vizinhos para a cobrança de dívidas.
Ted Roosevelt ficou conhecido pela frase “Fale manso e carregue um
grande porrete”, para definir sua política para o então chamado “quintal
dos EUA”.
KENNEDY E REAGAN
Depois da Segunda Guerra Mundial, governos americanos continuaram
intervindo na América Latina, diretamente ou indiretamente, no quadro da
Guerra Fria. O republicano Dwight Eisenhower, o democrata John Kennedy e
o republicano Ronald Reagan evocaram a Doutrina Monroe para intervir
respectivamente na Guatemala, nos anos 1950; em Cuba, nos anos 1960; e
contra guerrilhas de esquerda na América Central, nos anos 1980. As
ações eram justificadas como uma reação à real ou alegada ingerência da
antiga União Soviética nesses países.
Com o fim da Guerra Fria e a democratização da maioria dos países da
região, a Doutrina Monroe deixou de frequentar a retórica de líderes
americanos. A Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovou em 2001
sua Carta Democrática, um instrumento para ações conjuntas dos 35
países-membros em casos de derivas autoritárias, mas ela não prevê nem
autoriza intervenções unilaterais.
No sábado, em telefonema ao secretário de Estado americano, Mike Pompeo,
o chanceler russo Sergei Lavrov havia condenado a “ingerência
flagrante” dos EUA na Venezuela. "A provocação e a influência exterior
destrutivas, incluindo o pretexto hipócrita da ajuda humanitária, não
têm nada a ver com o processo democrático”, declarou Lavrov, segundo
comunicado do Ministério das Relações Exteriores russo. Em declarações
que replicam as críticas feitas a Moscou pelas ações contra o governo
próEUA da Ucrânia, Lavrov condenou “as ameaças americanas contra o
governo legítimo, uma flagrante ingerência nos assuntos internos de um
Estado soberano e uma vergonhosa violação do direito internacional”.
O Globo