Folha de S. Paulo - O Globo
Câmeras tornaram-se um remédio eficaz para combater os demófobos - Graças aos vídeos, cenas de humilhação do outro custam caro
A cena foi a mesma. Na Barra da Tijuca, um fiscal da Vigilância Sanitária interpelou um
casal num estabelecimento onde não se respeitava o isolamento social. O
marido desafiou-o, dizendo que ele não tinha uma trena para medir os
espaços. O fiscal disse: “Tá, cidadão”. Até aí, seria o jogo jogado, mas
a senhora foi adiante: — Cidadão, não. Engenheiro formado e melhor que você. Salvo os macacos, os bípedes passaram a usar o tratamento de “cidadão”
durante a Revolução Francesa, que derrubou a hierarquia nobiliárquica.
Dias depois a engenheira química Nívea Del Maestro foi demitida da
empresa de transmissão de energia onde trabalhava. Em nota, a Taesa
informou: “A companhia não compactua com qualquer comportamento que
coloque em risco a saúde de outras pessoas ou com atitudes que
desrespeitem o trabalho e a dignidade de profissionais que atuam na
prevenção e no controle da pandemia.”
Com a mesma retórica, em maio passado, o joalheiro Ivan Storel recebeu
um PM que foi à sua casa em Alphaville (SP) atendendo a um chamado que
denunciava violência doméstica: — Você pode ser macho na periferia, mas aqui você é um bosta. Aqui é
Alphaville, mano. (...) Eu ganho R$ 300 mil por mês, você é um merda de
um PM que ganha R$ 1 mil.
Storel viria a desculpar-se, dizendo que estava sob o efeito do álcool e
dos remédios que toma por estar em tratamento psiquiátrico. Dias antes, em Nova York, um cidadão que observava passarinhos no
Central Park, pediu a uma senhora que prendesse a coleira de seu
cachorro. Ela se descontrolou e chamou a polícia, dizendo que “um
afro-americano está ameaçando minha vida”. Ela foi demitida da firma de investimentos onde ganhava US$ 70 mil dólares anuais.
Nos três casos, a arma dos ofendidos foi a câmera de seus celulares.
Postas na rede, as cenas viralizaram. É a mesma arma que registra a
violência policial nas periferias das grandes cidades brasileiras. As câmeras tornaram-se um remédio eficaz para combater os demófobos
prontos para aplicar carteiradas sociais no “outro”, hipoteticamente
inferior. Ao “você sabe com quem está falando”, o progresso contrapôs o
“você sabe que está sendo filmado?”
Mesmo dentro das suas lógicas infames, as duas senhoras estavam
enganadas. O fiscal da cena carioca era doutor em Medicina Veterinária
pela Universidade Federal Rural e o afro-americano do Central Park
formou-se em Harvard. O fiscal do Rio e o PM de São Paulo representavam o
Estado, que, na cabeça dos demófobos, é um ente a serviço do andar de
cima. “A gente paga você, filho. O seu salário sai do meu bolso”,
ensinou a senhora da Barra da Tijuca.
O afro-americano do Central Park lastimou que a vida da mulher tivesse
virado de cabeça para baixo por causa da notoriedade que a cena
viralizada lhe deu, mas recusou-se encontrá-la para um ritual de
pacificação. Em geral, essas cenas de humilhação do “outro” duram poucos segundos e,
sem os vídeos, não teriam consequência. Graças a eles, custam caro. A vida dos brasileiros melhorará quando vídeos semelhantes, mostrando
cenas de violência policial contra jovens do andar de baixo, tiverem
algum efeito. Por enquanto, ele é nulo, até mesmo porque em muitas
cidades os policiais costumam prender quem os filma.