Relembramos o cinismo, a desfaçatez a pouca vergonha de duas ONGs internacionais que apresentaram relatórios destacando que a polícia brasileira é violenta, que as prisões estão em péssimas condições, mas em nenhum momento falaram sobre os 134 policiais militares assassinados em 2017 ou os quase vinte já assassinados este ano.]
Eis
aí uma maneira muito eficaz de esconder quem são os verdadeiros
responsáveis pelo massacre em câmera lenta que os moradores mais pobres
do Rio de Janeiro estão sofrendo há anos. Se eles são assassinados pela
bala perdida, então ninguém é culpado, certo? Afinal de contas, não dá
para dizer que a PM mata todo mundo; também ficaria chato dizer que há
quadrilhas em guerra, pois isso poderia “criminalizar a pobreza” e
reforçar “preconceitos” contra as “comunidades” que cobrem os morros
cariocas. Assim, quando os bandidos trocam tiros de AK-47, que podem
acertar uma pessoa a 1,5 quilômetro de distância, e acabam matando
alguém que não conseguiu se esconder, como é comum acontecer com bebês e
crianças pequenas, o assassino é a bala perdida. Pronto — problema
resolvido. Todo mundo já pode voltar ao palanque para continuar pregando
que o inimigo do pobre é a polícia, agora também o Exército e, se
bobear, o juiz Sergio Moro e os desembargadores do TRF4, de Porto
Alegre. Pensar desse jeito parece loucura — e é mesmo loucura. Mas,
quando se veem as coisas com um pouco mais de atenção, dá para perceber
muito bem que existe um método nessa loucura.
A “bala perdida”
vem da mesma matriz onde se fabrica a linguagem politicamente correta,
no Brasil de hoje, para tratar da questão do crime. Tome cuidado:
utilizar um vocabulário diferente pode fazer de você um “fascista”,
“direitista”, “golpista”, a favor da “ditadura militar” e sabe-se lá
quantos pecados mais. Nessa linguagem o criminoso é sempre descrito como
“suspeito”, mesmo que seja pego em flagrante assaltando alguém no meio
da rua. Quando a polícia atira contra aqueles que estão de arma na mão
em público, ou atirando contra ela, os delinquentes nunca são chamados
de bandidos — são “rapazes”, “moradores” ou “pessoas”. Por exemplo: “A
PM atirou ontem contra um grupo de rapazes no Complexo da Maré”. Nunca
acontecem tiroteios entre quadrilhas de marginais; são “disputas entre
facções”. Estão em vigor, também, regras bem claras para estabelecer
diferenças morais entre militares e criminosos quando ambos praticam um
mesmo ato; basicamente, para quem não quer correr o risco de parecer um
extremista de direita, o mais seguro é dizer que a conduta dos militares
é do mal e a dos bandidos é do bem, ou neutra.
Quando
delinquentes armados invadem uma casa da favela, obrigando seus
moradores a escondê-los da polícia durante tanto tempo quanto quiserem,
os defensores dos direitos da “comunidade” não abrem a boca. Também não
dizem nada quando cidadãos inocentes são forçados a ocultar armas ou
drogas em sua residência. Quando o Exército faz uma revista domiciliar, a
coisa muda: aí é uma violência contra a privacidade da população. Há
grande preocupação da Ordem dos Advogados etc. com o fato de que os
militares pedem e fotografam documentos de identidade, na tentativa de
localizar foragidos da Justiça. Os bandidos sabem mais sobre os
moradores dos morros do que o Exército, a polícia e a Justiça jamais
saberão; sabem seus nomes e sobrenomes, endereço, ocupação, família,
quanto dinheiro têm, quando devem pagar pela eletricidade, gás ou
televisão a cabo, e mais tudo o que queiram saber. Não há lembrança de
que isso tenha causado algum dia qualquer protesto por parte dos seus
protetores nas classes intelectuais.
É “assim mesmo”, dizem eles — como a bala perdida.
J. R. Guzzo - Revista VEJA