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sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

A trajetória trágica de Nimr al-Nimr

Ele não reconhecia o governo saudita e nem a soberania do rei. Para uma monarquia absoluta, isso foi um desafio inaceitável

O vilarejo de Awammiya fica a poucos quilômetros da cidade de Qatif, reduto dos xiitas na Arábia Saudita. Fui lá em janeiro de 2007 com outros jornalistas para testemunhar a data religiosa de Ashura e para entrevistar xiitas sauditas, de estudantes a empresários, e até seus líderes religiosos.

Ficamos agradavelmente surpresos porque as autoridades sauditas deram permissão aos xiitas para marcarem publicamente essa data muito importante na sua História: é lembrado, no décimo dia do mês islâmico de muharram, a morte de Hussein Ibn Ali, neto do profeta Maomé, na Batalha de Karbala, no ano 61 do calendário islâmico (680 A.D.). 

Essa batalha é considerada o momento em que a vertente do xiismo nasceu, dividindo os muçulmanos entre os sunitas e xiitas. Faixas pretas enormes enfeitavam as ruas de Qatif, com lamentações para Hussein, e os mais fervorosos devotos desfilavam se batendo e chorando. Os policiais sauditas ficaram observando de longe e nunca interferiram nos ritos religiosos.

Isso era um avanço para os xiitas sauditas, que sofriam há anos com as tensões sectárias vindas de alguns sauditas sunitas, que não aceitam os xiitas como verdadeiros muçulmanos. Em 1980, uma procissão de xiitas em Qatif foi dispersada violentamente pelas forças de segurança sauditas, levando à morte de 27 deles. O contraste entre aquela época e o que estávamos vendo em 2007 não podia ser maior. Mas, mesmo naquela época, nós vimos uma comunidade xiita em Qatif e vilarejos adjacentes rachada por razões econômicas. De um lado, estava Jafar al-Shayeb, um empresário bem-sucedido, que foi eleito para o Conselho Municipal de Qatif em 2005. Ele nos disse que as demandas dos xiitas sauditas eram domésticas, pedindo mais direitos civis e religiosos, e que não eram ligadas às tensões regionais causadas pela guerra civil no Iraque e entre os EUA e o Irã. “Nós queremos poder servir como ministro de Estado, nos inscrever no serviço militar, representar o reino no exterior como diplomatas, construir nossas mesquitas e imprimir nossos livros religiosos,” disse-nos Shayeb. “Nós estamos superando problemas sectários. Há um entendimento melhor entre os xiitas e o governo.”

Em contraste, quando fomos entrevistar o xeque Nimr al-Nimr em Awamiyya, o tom era bem diferente e desafiador. Percebia-se logo que Nimr era pobre e morava numa área carente. Sem sucesso econômico para abrandar seus sentimentos, Nimr nos disse que “o governo não vai nos dar nossos direitos, o povo vai ter que lutar por eles. Se as pessoas lutam pelos seus direitos, elas têm que esperar pagar o preço por isso, sendo presos e perdendo seus empregos.”

Xeque Nimr nos disse que não podia promover as leituras religiosas (chamadas de Husseiniyas) diariamente em salas grandes durante o Ashura porque não tinha acesso a um prédio com salas para isso. Em contraste, o xeque Hassan al-Saffar fazia Husseiniyas diariamente em um prédio novo de três andares em Tarout, que pertencia a uma família local.

O radicalismo de Nimr seguiu forte, e nos anos seguintes ele continuou a criticar o governo saudita em discursos e sermões. Chegou a dizer que não reconhecia o governo saudita e nem a soberania do rei. Para uma monarquia absoluta, isso foi um desafio inaceitável. Com o começo da Primavera Árabe, em 2011, jovens xiitas em Qatif começaram a organizar protestos contra o governo, exigindo mais direitos. Alguns desses protestos se tornaram violentos quando forças de segurança usaram gás lacrimogêneo para tentar dispersar os manifestantes. Um grupo pequeno de jovens xiitas, a maioria desempregada e desesperada, jogou pedras contra as viaturas da polícia, e depois coquetéis molotov. Alguns usaram armas de fogo contra policiais, ferindo uns e matando outros. Com isso, o governo divulgou uma lista dos 23 mais procurados xiitas, apelando para que eles se entregassem às autoridades ou seriam caçados e presos. Alguns se entregaram, outros foram presos e mais outros foram mortos tentando fugir da policia ao resistir à prisão.

O xeque Nimr foi preso em julho de 2012 e acusado de “desobediência ao governante,” “incitar a luta sectária” e “encorajar, liderar e participar de manifestações.” O seu julgamento começou em 2013, e ele teve mais de 70 sessões em frente ao juiz com seu advogado. Em todas as sessões, Nimr se recusou a aceitar a legitimidade do governo saudita. Em outubro de 2014, foi condenado à morte por “busca de ingerência estrangeira no reino,” por “desobediência aos seus governantes e por pegar em armas contra as forças de segurança.”

É nesse último ponto que há divergência de opiniões sobre se o xeque Nimr usou ou aprovou o uso de violência contra as forças de segurança. Algumas fontes sauditas dizem que Nimr, antes de ser preso, foi visto em manifestações com jovens que lançaram objetos incendiários e também num carro com jovens que atiraram em policiais. Em todo caso, boa parte da população saudita apoiou a execução dele e de 45 outros membros da al-Qaeda, todos sunitas, que também foram executados dia 2 de janeiro, por terem participado de ataques terroristas no país.

Com isso, o Irã está usando a execução de Nimr para atacar violentamente a Arábia Saudita e seus dirigentes. O ataque à embaixada saudita em Teerã na madrugada de 3 de janeiro foi o ato que levou a Arábia Saudita a cortar relações diplomáticas com o Irã. Eu não acho que uma guerra vá irromper entre os dois rivais do Golfo. Há coisas demais em jogo e, se os iranianos atacarem a Arábia Saudita, os EUA seriam forçados a intervir a favor dos sauditas. Mas é bom saber como e por que a morte de xeque Nimr está levando o Oriente Médio à beira de uma catástrofe.

Fonte: Rasheed Abou-Alsamh é jornalista

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Estado Islâmico se aproveita do caos

Há alguns sauditas que ainda acham que os xiitas não são verdadeiros muçulmanos, e querem acabar com eles

A explosão de um jovem saudita na semana passada dentro de uma mesquita xiita na província de Qatif, no Leste da Arábia Saudita, além de matar 21 fieis que estavam acabando de rezar as preces semanais da sexta-feira e ferir cem pessoas, era uma mensagem do grupo Estado Islâmico (EI). 

Fotos postadas no Twitter mostraram o que restou do jovem homem-bomba: sua cabeça intacta, com barba e tudo, e um pouco dos seus ombros. Parecia uma cena de filme de terror. Dava para ver que era bem jovem, não passava dos 20 anos. E por que alguém tão jovem ia se matar de um jeito tão violento entre seus próprios compatriotas num lugar religioso e de reflexão espiritual?

O EI disse que o atentado foi para acabar com o que eles chamaram de os “politeístas xiitas”, e que eles não iam parar de matá-los até acabar com a sua presença na Península Arábica. Essa ação sangrenta e preconceituosa deixou muitos dos inimigos do reino felizes porque, na sua mente, os sauditas estavam finalmente provando do próprio veneno. Depois da intervenção militar da Arábia Saudita no Bahrein em 2011 para pôr fim ao levante predominantemente xiita da Primavera Árabe, e agora o bombardeio diário no Iêmen para tentar conter o avanço dos rebeldes houthis — mesmo sendo estes de uma vertente xiita que não tem muito em comum com os xiitas do Irã —, esses inimigos veem o atentado em Qatif como o resultado quase esperado do sectarismo saudita. É claro que os iranianos são igualmente culpados por defender seus interesses sectários em países árabes como o Iraque, a Síria, o Líbano e, de certa forma, até no Iêmen.

A reação do governo saudita foi imediata, prometendo capturar os demais terroristas responsáveis pelo atentado. Em poucos dias, seis suspeitos foram presos, e o príncipe herdeiro Muhammad bin Nayef visitou os feridos pelo atentado nos hospitais de Qatif e deu seus pêsames às famílias dos falecidos. Isso foi muito importante num país onde, infelizmente, ainda há líderes religiosos sunitas extremistas que pregam ódio contra os xiitas, que são uma minoria no país. Mas o rei Salman bin Abdul Aziz tem frisado que todos os sauditas, sejam de qualquer cor, origem étnica, ou seita, são iguais e gozam dos mesmos direitos e responsabilidades como cidadãos sauditas.

“Os autores destes atos homicidas são movidos por uma ideologia insana disseminada por clérigos e reformadores autonomeados. Por muito tempo, temos nos mantido quietos enquanto eles usaram as mesquitas, mídia e todas as outras formas de comunicação para espalhar a sua filosofia do mal. Não podemos permitir que esse ódio se espalhe mais. Não podemos ficar de braços cruzados enquanto esses homens do mal continuam com seus atos destrutivos. (...) Não vamos permitir que os extremistas entre nós nos dividam”, desabafou o veterano jornalista saudita Khaled al-Maeena no diário “Saudi Gazette”.

A triste verdade é que há alguns sauditas que ainda acham que os xiitas não são verdadeiros muçulmanos, e querem acabar com eles. Essa divisão teológica entre sunitas e xiitas existe há séculos, mas, no fim das contas, todos são muçulmanos. É como as diferenças doutrinais entre os católicos e protestantes. No fim, todos eles acreditam em Jesus Cristo. Mesmo assim, ainda há aqueles que insistem no ódio e no preconceito. Depois do atentado em Qatif houve um apelo para a doação de sangue para ajudar os feridos que precisavam de transfusões. Alguns sauditas antixiitas disseram no Twitter que não iam doar sangue de jeito nenhum para eles.

Ao mesmo tempo, o EI estava fazendo mais avanços no Iraque e na Síria, invadindo e tomando controle das cidades de Ramadi e Palmira. Na antiga cidade síria de Palmira, os comentaristas pareciam mais preocupados com o que os zelotes do EI podiam fazer com as famosas ruínas romanas da região do que com os milhares de refugiados que fugiam da cidade a pé. Em Ramadi, há relatos de que uma força de apenas 150 combatentes do EI conseguiu derrotar 600 soldados do Exército iraquiano, que, depois de serem atacados por dias com tanques cheios de explosivos e ficar sem munição, foram obrigados a recuar. 

Isso provocou uma enxurrada de críticas de políticos iraquianos e americanos. O vice-primeiro-ministro iraquiano, Saleh al-Mutlaq, se queixou para a CNN, dizendo que a prontidão com que o Exército iraquiano deixou Ramadi cair nas mãos do EI “surpreendeu todos nós”. “Esse não é o Exército que queremos ver e não foi o que esperávamos ver”, acrescentou. Por sua vez, o secretário de Defesa americano, Ashton Carter, disse que as tropas iraquianas em Ramadi não estavam em menor número e que, de fato, excederam amplamente em quantidade os combatentes do EI. “E mesmo assim, eles não lutaram, eles se retiraram do lugar,” disse Carter.

Mutlaq, que é sunita, culpou a falta de vontade de lutar contra o Estado Islâmico de muitos iraquianos sunitas sem esperança de ver um bom futuro para eles no Iraque depois de derrotar o EI. “Se não veem um futuro para eles no Iraque, eu não acho que vão lutar contra Daesh, do jeito que queremos,” disse ele à CNN. “O povo sunita não está com o EI, disso tenho certeza. Eles não têm certeza do que vem depois do EI. Será que eles vão morar numa área que vai ser reconstruída? Vai haver reconciliação? Eles vão ser incluídos no governo? Sem respostas para essas perguntas, vai ser muito difícil ver o fim do EI”, disse Mutlaq.

Na Síria, os sunitas rebeldes querem ver o fim do governo de Bashar al-Assad, mas o apoio da Rússia e do Irã o deixou até hoje no poder, mesmo num território bem menor do que antes. Há relatos de que Bashar pediu uma nova linha de credito de US$ 1 bilhão ao Irã, e é com a ajuda do grupo xiita Hezbollah e de combatentes xiitas vindos de Iraque, Irã, Paquistão e Afeganistão que Assad tem conseguido se manter vivo e mandando até agora.

De qualquer jeito, o EI tem inimigos de sobra para poder sobreviver por muito tempo. O problema é que tudo é muito complicado e misturado. Na Síria, os países do Golfo e a Turquia querem o fim de Assad; este quer o fim do EI e dos rebeldes sírios, que ele chama de “terroristas”. Os EUA querem o fim de Assad, mas o presidente Barack Obama e o povo americano, em geral, não desejam botar mais tropas no Oriente Médio; então, a coisa fica difícil. No Iraque, o Irã está ajudando os iraquianos a combater o EI, mas aí acirra as tensões sectárias. E para fazer a situação ainda mais estranha, há o acordo nuclear pendente entre o Irã e os EUA, que deixou os países do Golfo em pé de guerra, assustados por serem deixados de lado em uma possível reaproximação entre os americanos e iranianos

E, com tudo isso, o EI se aproveita e se expande.

Por: Rasheed Abou-Alsamh é jornalista