Ele não reconhecia o governo saudita e nem a soberania do rei. Para uma monarquia absoluta, isso foi um desafio inaceitável
O vilarejo
de Awammiya fica a poucos quilômetros da cidade de Qatif, reduto dos
xiitas na Arábia Saudita. Fui lá em janeiro de 2007 com outros
jornalistas para testemunhar a data religiosa de Ashura e para
entrevistar xiitas sauditas, de estudantes a empresários, e até seus
líderes religiosos.
Ficamos agradavelmente surpresos porque as
autoridades sauditas deram permissão aos xiitas para marcarem
publicamente essa data muito importante na sua História: é lembrado, no
décimo dia do mês islâmico de muharram, a morte de Hussein Ibn Ali, neto
do profeta Maomé, na Batalha de Karbala, no ano 61 do calendário
islâmico (680 A.D.).
Essa batalha é considerada o momento em que a
vertente do xiismo nasceu, dividindo os muçulmanos entre os sunitas e
xiitas. Faixas pretas enormes enfeitavam as ruas de Qatif, com
lamentações para Hussein, e os mais fervorosos devotos desfilavam se
batendo e chorando. Os policiais sauditas ficaram observando de longe e
nunca interferiram nos ritos religiosos.
Isso era um avanço para
os xiitas sauditas, que sofriam há anos com as tensões sectárias vindas
de alguns sauditas sunitas, que não aceitam os xiitas como verdadeiros
muçulmanos. Em 1980, uma procissão de xiitas em Qatif foi dispersada
violentamente pelas forças de segurança sauditas, levando à morte de 27
deles. O contraste entre aquela época e o que estávamos vendo em 2007
não podia ser maior. Mas, mesmo naquela época, nós vimos uma
comunidade xiita em Qatif e vilarejos adjacentes rachada por razões
econômicas. De um lado, estava Jafar al-Shayeb, um empresário
bem-sucedido, que foi eleito para o Conselho Municipal de Qatif em 2005.
Ele nos disse que as demandas dos xiitas sauditas eram domésticas,
pedindo mais direitos civis e religiosos, e que não eram ligadas às
tensões regionais causadas pela guerra civil no Iraque e entre os EUA e o
Irã. “Nós queremos poder servir como ministro de Estado, nos inscrever
no serviço militar, representar o reino no exterior como diplomatas,
construir nossas mesquitas e imprimir nossos livros religiosos,”
disse-nos Shayeb. “Nós estamos superando problemas sectários. Há um
entendimento melhor entre os xiitas e o governo.”
Em contraste,
quando fomos entrevistar o xeque Nimr al-Nimr em Awamiyya, o tom era bem
diferente e desafiador. Percebia-se logo que Nimr era pobre e morava
numa área carente. Sem sucesso econômico para abrandar seus sentimentos,
Nimr nos disse que “o governo não vai nos dar nossos direitos, o povo
vai ter que lutar por eles. Se as pessoas lutam pelos seus direitos,
elas têm que esperar pagar o preço por isso, sendo presos e perdendo
seus empregos.”
Xeque Nimr nos disse que não podia promover as
leituras religiosas (chamadas de Husseiniyas) diariamente em salas
grandes durante o Ashura porque não tinha acesso a um prédio com salas
para isso. Em contraste, o xeque Hassan al-Saffar fazia Husseiniyas
diariamente em um prédio novo de três andares em Tarout, que pertencia a
uma família local.
O radicalismo de Nimr seguiu forte, e nos anos
seguintes ele continuou a criticar o governo saudita em discursos e
sermões. Chegou a dizer que não reconhecia o governo saudita e nem a
soberania do rei. Para uma monarquia absoluta, isso foi um desafio
inaceitável. Com o começo da Primavera Árabe, em 2011, jovens
xiitas em Qatif começaram a organizar protestos contra o governo,
exigindo mais direitos. Alguns desses protestos se tornaram violentos
quando forças de segurança usaram gás lacrimogêneo para tentar dispersar
os manifestantes. Um grupo pequeno de jovens xiitas, a maioria
desempregada e desesperada, jogou pedras contra as viaturas da polícia, e
depois coquetéis molotov. Alguns usaram armas de fogo contra policiais,
ferindo uns e matando outros. Com isso, o governo divulgou uma lista
dos 23 mais procurados xiitas, apelando para que eles se entregassem às
autoridades ou seriam caçados e presos. Alguns se entregaram, outros
foram presos e mais outros foram mortos tentando fugir da policia ao
resistir à prisão.
O xeque Nimr foi preso em julho de 2012 e
acusado de “desobediência ao governante,” “incitar a luta sectária” e
“encorajar, liderar e participar de manifestações.” O seu julgamento
começou em 2013, e ele teve mais de 70 sessões em frente ao juiz com seu
advogado. Em todas as sessões, Nimr se recusou a aceitar a legitimidade
do governo saudita. Em outubro de 2014, foi condenado à morte por
“busca de ingerência estrangeira no reino,” por “desobediência aos seus
governantes e por pegar em armas contra as forças de segurança.”
É
nesse último ponto que há divergência de opiniões sobre se o xeque Nimr
usou ou aprovou o uso de violência contra as forças de segurança.
Algumas fontes sauditas dizem que Nimr, antes de ser preso, foi visto em
manifestações com jovens que lançaram objetos incendiários e também num
carro com jovens que atiraram em policiais. Em todo caso, boa parte da
população saudita apoiou a execução dele e de 45 outros membros da
al-Qaeda, todos sunitas, que também foram executados dia 2 de janeiro,
por terem participado de ataques terroristas no país.
Com isso, o
Irã está usando a execução de Nimr para atacar violentamente a Arábia
Saudita e seus dirigentes. O ataque à embaixada saudita em Teerã na
madrugada de 3 de janeiro foi o ato que levou a Arábia Saudita a cortar
relações diplomáticas com o Irã. Eu não acho que uma guerra vá
irromper entre os dois rivais do Golfo. Há coisas demais em jogo e, se
os iranianos atacarem a Arábia Saudita, os EUA seriam forçados a
intervir a favor dos sauditas. Mas é bom saber como e por que a morte de
xeque Nimr está levando o Oriente Médio à beira de uma catástrofe.
Fonte: Rasheed Abou-Alsamh é jornalista