Revista Oeste
O que também está no centro desse debate não é apenas a proteção à vida humana, mas a manutenção do federalismo, um dos pilares mais preciosos da República norte-americana
Um dos casos de extravagante ativismo da Suprema Corte norte-americana continua dominando os noticiários e os veículos de comunicação aqui nos Estados Unidos, depois que um documento sigiloso foi vazado na última semana, fato inédito e criminoso, de que a Corte pode reverter o polêmico caso Roe vs. Wade. Para entendermos as raízes do raro ativismo de uma Corte estritamente constitucional, permitam-me voltar ao caso de 1973.
Em 1969, Norma McCorvey, uma mulher do Texas, na casa dos 20 anos, tentava interromper uma gravidez indesejada. Na época, o aborto era legal no Texas, mas apenas com o propósito de salvar a vida da mãe. McCorvey procurou então duas recém-formadas advogadas da Escola de Direito da Universidade do Texas e, juntas, entraram com uma ação federal contra Henry Wade, promotor público do condado de Dallas, onde McCorvey morava. A ação alegava que a lei do Estado violava os direitos constitucionais da autora, que passou a ter o pseudônimo de “Jane Roe”, para proteger sua identidade.
No cerne da decisão da Corte de 1973 está a 14ª Emenda da Constituição norte-americana, que tem em sua cláusula de devido processo a seguinte declaração: “Nenhum Estado fará ou fará cumprir qualquer lei que restrinja os privilégios ou imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem qualquer Estado privará qualquer pessoa da vida, liberdade ou propriedade, sem o devido processo legal; nem negar a qualquer pessoa dentro de sua jurisdição a proteção igual das leis”.
Pois bem, puxando a Declaração de Direitos e a cláusula do devido processo da 14ª Emenda para esse caso, a Suprema Corte norte-americana criou implicitamente uma “zona de privacidade”. O tribunal decidiu dar aquela distorcida na Constituição, manobra tão familiar aos brasileiros, e decidiu “levantar” um possível “direito fundamental à privacidade” presente na 14ª Emenda que englobaria o direito de a mulher decidir, junto com sua família e seu médico, se deveria ou não continuar uma gravidez. O Tribunal concluiu que a zona era “ampla o suficiente para abranger a decisão de uma mulher de interromper ou não a gravidez”, num dos casos de maior ativismo judicial da história dos Estados Unidos.
Logo após a decisão de Roe vs. Wade ser proferida, o juiz da Corte Harry Blackmun, redigindo a opinião da maioria, determinou que incluíssem na cláusula um direito implícito à privacidade para as mulheres que decidissem interromper a gravidez. Blackmun sustentou que tal direito a partir daquele momento se tornava uma parte indivisível da “liberdade à privacidade” de cada norte-americano, que é especificamente protegida na cláusula de devido processo da 14ª Emenda; e que tal proteção mais do que supera qualquer interesse do Estado em usar estatutos do aborto — como tantos outros Estados têm — para regular a conduta sexual, mesmo que indiretamente. Um feto, acrescentou o juiz, “não é uma pessoa segundo a Constituição e, portanto, não tem direito legal à vida”, uma conclusão à qual incontáveis defensores da vida e contra o aborto se opõem violentamente. Blackmun também foi influenciado pelo fato de que a maioria das proibições ao aborto foi promulgada no século 19, quando o procedimento era mais perigoso do que em 1973. Ele acrescentou que diferentes padrões para diferentes estágios da gravidez são em grande parte um reflexo do progresso médico e que o aborto nos primeiros três meses havia se tornado pelo menos tão seguro quanto o parto.
Com o tempo que o caso demandou sendo levado até a Suprema Corte, Norma McCorvey deu à luz seu terceiro filho e entregou a criança para adoção, mantendo-se discreta após a decisão do tribunal. Embora na década de 1980 ela estivesse ativa no movimento pelo direito ao aborto, em meados da década de 1990, depois de fazer amizade com coordenadores de um grupo pró-vida e se converter ao catolicismo, ela se tornou uma oponente vocal do procedimento abortivo, declarando abertamente que havia sido usada pelos movimentos ativistas. Norma palestrou por todo o país contra as barbáries cometidas nas clínicas abortivas, como a Panned Parenthood, criada pela eugenista Margaret Sanger.
A verdade sobre a Planned ParenthoodSanger abriu a primeira clínica de controle de natalidade nos EUA em 1916 e fundou a American Birth Control League em 1921, instituição que mudou o nome para Planned Parenthood em 1942. O movimento de controle de natalidade de Margaret Sanger e a busca pela pílula anticoncepcional cruzaram com a ascensão do movimento de eugenia na América. Numa época em que o controle de natalidade ainda não era aceito publicamente na sociedade norte-americana, alguns eugenistas acreditavam que esse controle era uma ferramenta útil para conter a procriação entre os “fracos”. A eugenia era um tema dominante em suas conferências sobre controle de natalidade, e, em 1920, Sanger falou publicamente sobre a necessidade de acabar com a procriação por pessoas “inaptas”, declarando abertamente que “o controle da natalidade é nada mais nada menos do que a facilitação do processo de eliminar os inaptos e de prevenir o nascimento de deficientes”.
Após a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto, a barbárie de qualquer ideia ligada à eugenia foi exposta, e o pensamento racista defendido por muitos logo foi esquecido. Mas enquanto Margaret Sanger era elogiada por seu papel na criação da pílula anticoncepcional na década de 1960, muitos na comunidade afro-norte-americana se lembraram de sua associação com a eugenia. Suspeitando de suas intenções, alguns ficaram chocados com seu apoio contínuo ao movimento de controle populacional, e muitos acreditavam que o motivo de Sanger não era ajudar as mulheres negras, mas eliminar futuras gerações negras. Ao promover o desenvolvimento da pílula anticoncepcional na década de 1950, Sanger havia anunciado como a panaceia para a superpopulação mundial, a fome e a pobreza. Sanger escreveu: “Considero que o mundo, e nossa civilização nos próximos 25 anos, vai depender de um anticoncepcional simples, barato, seguro, para ser usado em favelas, selvas e entre as pessoas mais ignorantes”.
A organização pró-vida estima que mais de 63 milhões de abortos ocorreram de 1973 até maio de 2022
Embora as mulheres afro-norte-americanas apreciassem a eficácia e a confiabilidade dos contraceptivos orais e usassem o método em grande número, elas se ressentiam da maneira como as organizações dominadas por brancos pareciam empurrar a pílula nas comunidades negras. Curiosamente, até os dias de hoje, a grande maioria das clínicas abortivas da Planned Parenthood, que se travestem com slogans bondosos sobre “a saúde da mulher”, está em comunidades negras espalhadas pelo país. Vidas negras importam. Mas quais? Não a de bebês negros para muitos da bolha hedonista de Hollywood, para as feministas e para membros do Partido Democrata que juram proteger as minorias.
De volta ao caso Roe vs. WadeDesde 1973, quando a Suprema Corte resolveu emendar a Constituição sem anuência das Casas legislativas (isso soa tão familiar, não é mesmo?), muitos Estados norte-americanos impuseram restrições — através de suas Casas legislativas — que enfraqueceram o ativismo pró-aborto. No entanto, milhões de norte-americanos continuaram divididos sobre o apoio ao direito da mulher de escolher o aborto, até que o novo partido de Joe Biden decidiu empurrar políticas extremas e radicais sobre o assunto. Nesta semana, por exemplo, o atual Partido Democrata foi derrotado no Senado, mesmo detendo maioria na Casa, diante de um projeto de federalização das leis abortivas que implementariam em todo o país a legalização do aborto até o último minuto gestação. Sim, você leu corretamente. Até o último minuto.
O que também está no centro desse debate não é apenas a sagrada proteção à vida humana, defesa importante para um país fundado em preceitos religiosos, mas a manutenção de um dos pilares mais preciosos da República norte-americana: o federalismo e a autonomia dos Estados de passar suas próprias leis, dentro da Constituição, de acordo com o que a população deseja. O que a Suprema Corte fez em 1973 foi tirar do povo o direito de decidir, seja através de seus representantes no Congresso, seja nas legislaturas estaduais. Se na Califórnia, no Texas, em Nova Iorque ou em Kentucky as questões polêmicas têm premissas muito diferentes, cabe ao povo, e somente ele, decidir que rumo tomar para essas decisões. Direito e dever que não pertencem a um bando de togados ativistas que “interpretam” a Constituição de acordo com o que pensam da sociedade.
Comitê Nacional do Direito à VidaMas nem só de documentos e palavras jurídicas vive o caso Roe vs. Wade. O Comitê Nacional do Direito à Vida (National Right to Life Committee — NRLC), a organização pró-vida mais antiga do país, estima que mais de 63 milhões de abortos ocorreram de 1973 até maio de 2022. A estimativa de quantas vidas foram ceifadas nos ventres de suas mães foi coletada por meio de dados de rastreamento dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) e do Instituto Guttmache, que anteriormente serviu como um braço de pesquisa do proeminente provedor de aborto do país, a Planned Parenthood.
Como já explorado por mim em outros artigos aqui em Oeste, a eleição de Donald Trump em 2016 teve um impacto significativo no recente movimento da Corte em revisitar o caso e, possivelmente, revertê-lo, como mostra o documento vazado. Um dos pontos fortes da campanha de Trump em 2016 — e um dos motivos para a sua eleição — foi a possibilidade de indicar, no mínimo, dois nomes para a SCOTUS. Ao sair da Casa Branca, Donald Trump havia colocado centenas de juízes constitucionalistas nas esferas federais e três justices — originalistas e constitucionalistas — na Suprema Corte. E isso com a ajuda de milhões de votos de cristãos que, mesmo não gostando de Trump, votaram no republicano sonhando com a possível reversão de Roe vs. Wade.
A defesa ativista de Roe vs. Wade levou o tribunal a negar o próprio fundamento da Constituição norte-americana e da lei ocidental: os direitos naturais. Em uma passagem de uma decisão da Suprema Corte de 1992, no caso Planned Parenthood vs. Casey, o juiz Anthony Kennedy, nomeado por Ronald Reagan, escrevendo para a maioria, disse: “No coração da liberdade está o direito de definir o próprio conceito de existência, de propósito, de universo e do mistério da vida humana. Crenças sobre esses assuntos não podem definir os atributos da personalidade se fossem formadas sob coação do Estado”.
É claro que derrubar Roe não encerrará a luta para proteger a vida humana no útero, mas é a batalha mais importante nessa guerra, aqui nos Estados Unidos e também pelo que o caso simboliza no mundo. Sob Roe, os norte-americanos foram sitiados em seu próprio território e forçados a tentar várias táticas para contornar as restrições que a Suprema Corte colocou sobre todos os cidadãos. Com a queda de Roe, a política de aborto será definida pelos Estados — e há um argumento sólido de que o aborto é inconstitucional, embora ninguém espera que a Suprema Corte o adote neste caso. Desde que a decisão Roe vs. Wade foi emitida em 1973, o caso continua sendo um dos mais contenciosos na esfera pública, inspirou campanhas e movimentos políticos e gerou debates em todo o país em torno da ética, da religião, da biologia e do direito constitucional.
O simbolismo do fim de Roe vai além da bela e justa proteção à vida: será um triunfo da defesa fiel dos impotentes contra os poderosos, de juízes e niilistas de Washington a Hollywood. No entanto, os defensores da vida não devem ficar complacentes depois de derrubar Roe, pois tal decisão apenas devolverá a política de aborto aos processos norte-americanos comuns de democracia representativa, sagradamente protegidos nas fundações da República. Quando Roe cair, alguns Estados restringirão ou proibirão abortos eletivos, outros continuarão a celebrá-los e subsidiá-los. O movimento pró-vida ainda enfrentará muitas batalhas. No Brasil, o mesmo movimento da Suprema Corte norte-americana de 1973, da legislação do aborto pelas vias judiciárias, tenta ganhar fôlego e ares de normalidade. Para o ativismo a letra fria da lei, mas também podemos mostrar que existe um modo de vida melhor do que aquele incentivado por uma cultura do aborto.
Norma McCorvey faleceu em 2017, e em uma de suas últimas entrevistas ela disse: “Você lerá sobre mim nos livros de história, mas agora posso dizer que passei grande parte da minha vida dedicada a espalhar a verdade sobre a preservação da dignidade de toda vida humana, desde a concepção natural até a morte natural”. Que a luta de McCorvey não seja em vão. Sem Roe vs. Wade, as leis estaduais norte-americanas que protegem a vida humana no útero não serão constantemente bloqueadas pelos tribunais federais, e, assim, muitos Estados aplicarão prontamente as leis que restringem a crueldade e a barbárie contra vidas indefesas e sem voz dentro do ventre de suas mães.
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Ana Paula Henkel, colunista - Revista Oeste