Interessante a analogia feita por um dileto amigo, Arlindo Fernandes,
entre a viagem do presidente Jair Bolsonaro a Davos, acompanhado do
ministro da Economia, Paulo Guedes, e do chanceler Ernesto Araujo, e o
famoso romance do escritor alemão Thomas Mann que empresta o título à
coluna, cuja história se passa exatamente naquela cidade dos Alpes, na
Suíça. Segundo ele, a luta instalada dentro do governo, assunto sobre o
qual conversávamos, se parece muito com a disputa entre dois personagens
do romance, o humanista e enciclopedista Lodovico Settembrini e o
jesuíta totalitário Leo Naphta, que protagonizam um choque entre ideias
liberais e conservadoras junto ao jovem engenheiro naval alemão Hans
Castorp.
Mann começou a escrever A montanha mágica em 1912, quando sua mulher
Katharina Mann (Katia) foi internada num sanatório de Davos, para se
curar de uma tuberculose. Três anos depois, indeciso sobre os rumos do
romance, interrompeu a obra. Havia apoiado a Primeira Guerra Mundial,
porque seria “a guerra para terminar todas as guerras”, e estava em
conflito com o próprio irmão Heinrich, também escritor, em relação ao
papel da Alemanha e à própria guerra. Thomas defendia uma Alemanha
unificada, poderosa e zelosa de sua cultura; o irmão desprezava o
provincianismo autoritário e acrítico dos alemães à época. Após a
guerra, Thomas Mann termina de escrever seu romance, já com uma visão
mais crítica sobre tudo o que havia ocorrido; mais tarde, se
posicionaria contra a II Guerra Mundial e a própria Alemanha. O romance
também reflete esse embate de ideias com o irmão.
O Sanatório Internacional de Berghof é um estabelecimento fictício,
vizinho à antiga e luxuosa casa de Repouso Schatzalp, que inspirou o
escritor alemão e, por isso, costuma receber levas de leitores-turistas
fascinados com o livro. Virou hotel em 1954, como o Waldhotel, o antigo
Waldsanatorium, onde Katia Mann, mulher de Thomas Mann, se internou em
1912. A visita que o romancista fez à esposa por três meses o inspirou a
escrever. Personagem principal do romance, Hans Castorp é um jovem
alemão com os seus 20 anos, prestes a ter uma carreira naval em
Hamburgo, sua cidade natal, que viaja para visitar seu primo tuberculoso
Joachim Ziemssen, num sanatório em Davos.
Durante sua longa permanência, conhece personagens que representam um
microcosmo do pensamento do pré-guerra na Europa. Além de Setembrini e
Naphta, a hedonista Mynher Peerperkorn e Madame Chauchat, por quem se
apaixona. Após sete anos, antes de ir para a guerra para morrer como um
soldado anônimo, Castorp descobre a arte, a cultura, a política, a
fragilidade humana e o amor; o tempo, a música, o nacionalismo, as
questões sociais e as mudanças. Todas as ideias do século XX estão
presentes no romance, que é considerado uma “obra de formação”.de está Onde a analogia? O italiano Lodovico Settembrini representa o
humanismo e o iluminismo, atribui o progresso humano à ciência, defende a
democracia liberal e acredita no livre-arbítrio. Leo Naphta, cristão
novo, interrompeu os estudos teológicos na Companhia de Jesus por causa
da tuberculose, mas vê a fé como o sentido da vida e das ações. Defende
os atos sangrentos cometidos pela Igreja ao longo da história, vê na
ciência e nas explicações racionais os horrores das rebeliões liberais,
como a Revolução Francesa.
De certa forma, essas duas tendências estão representadas no governo
Bolsonaro, por alguns de seus integrantes: a primeira, pelos ministros
Paulo Guedes (Economia), Sérgio Moro (Justiça), Osmar Terra (Cidadania),
Teresa Cristina (Agricultura), principalmente; a segunda, por Ernesto
Araujo (Relações Exteriores), Ricardo Velez-Rodriguez (Educação) e
Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos), sobretudo. O
predomínio de uma ou outra no governo dependerá muito do papel dos
militares e da cabeça de Bolsonaro, no exercício da Presidência da
República.
A viagem a Davos pode fazer bem a Bolsonaro, pois lá serão debatidas
ideias novas para uma situação de crise da ordem de liberal, num mundo
que passa por grandes transformações tecnológicas e um enorme desajuste
econômico e social entre as nações mais avançadas, as emergentes e as
que foram deixadas para trás. O grande sanatório geral descrito por
Thomas Mann em seu romance parece estar de volta à política mundial, com
sinais trocados.
A partir de quarta-feira, 2.340 pessoas de 89 países, que compõem a
elite econômica e política mundial, estarão confinadas num centro de
conferências, cercadas de neve e seguranças por todos os lados, durante
cinco dias, até o dia 29. A guinada ultraliberal do Brasil na economia
desperta interesse, o antiglobalismo da nova política externa, um grande
espanto. As estrelas do encontro serão a Índia, cujo avanço econômico
retira da miséria milhões de cidadãos por ano; e a China, que assumiu a
linha de frente da globalização. O presidente norte-americano Donald
Trump, com a crista baixa por causa da crise com o Congresso
norte-americano, não vai a Davos nem mandará representantes; a
primeira-ministra do Reino Unido, Theresa May, balançando no cargo por
causa do Brexit, também cancelou a participação.
Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo - CB