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terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

É chegada a hora de despertar - Ana Paula Henkel

Protesto de caminhoneiros no Canadá contra a obrigatoriedade de vacinação | Foto: Darryl Barton
Protesto de caminhoneiros no Canadá contra a obrigatoriedade de vacinação -  Foto: Darryl Barton 

O evento ficou mundialmente famoso devido ao filme Groundhog Day, de 1993, lançado no Brasil com o nome de Feitiço do Tempo. O roteiro apresenta o meteorologista Phil Connors, interpretado por Bill Murray, que reluta em viajar para Punxsutawney, na Pensilvânia, para cobrir as celebrações do Dia da Marmota da pequena cidade, por considerar a cobertura do tradicional evento uma perda de tempo. Já hospedado em um hotel local, ele acorda no dia seguinte e se vê preso em um looping temporal, sendo forçado a viver o feriado repetidamente. Todas as manhãs, em sua cama no Cherry Tree Inn, ele desperta com a música I Got You, Babe, de Sonny e Cher, tocando no rádio-relógio:

“They say we’re young and we don’t know / We won’t find out until we grow / Well I don’t know if all that’s true / ‘Cause you got me, and baby, I got you…”

“Dizem que somos jovens e não sabemos / Não vamos descobrir até crescermos / Bem, eu não sei se tudo isso é verdade / Porque você me tem, e baby, eu tenho você…”

Mas o filme de 1993, considerado uma das maiores comédias de todos os tempos, dirigido por Harold Ramis e produzido por Ramis e Trevor Albert, pode, no entanto, ser em alguns aspectos um ensaio sobre uma perspectiva mais atual que nunca. Em um bar local, Connor desabafa com um homem: “Eu acordo todos os dias, bem aqui em Punxsutawney, e é sempre 2 de fevereiro. E não há nada que eu possa fazer sobre isso. O que você faria se estivesse preso em um lugar, e todos os dias fossem exatamente iguais, e nada do que você fizesse importasse?”

Os dias continuam a se repetir e, sem esperança, Connors decide se comportar da pior maneira possível, já que “nada muda”. E este é o dispositivo quase escondido no filme, que acaba se tornando atemporal, como um perfeito atalho para os dias atuais, no melhor sentido de “a mesma coisa de sempre em um dia diferente”. Connors passa um número desconhecido de dias repetindo exatamente o mesmo dia várias vezes. Todas as outras pessoas vivenciam aquele dia pela “primeira” vez, enquanto Connors tem de encarar sua rotina como Sísifo, personagem da mitologia grega condenado a empurrar eternamente uma enorme pedra morro acima que, ao atingir o seu topo, cai novamente, fazendo esse processo ser repetido por toda a eternidade.

Há exatos dois anos, escrevemos sobre liberdade, sobre autonomia, sobre direitos, sobre a verdade, sobre uma pandemia que devorou o intelecto humano

O que poderia ser apenas um filme de comédia, muitas vezes tachado de tolo, na verdade mostra algumas pistas de um possível mistério central que nos aproxima de um arco moralmente mais denso e poderoso para o personagem principal. 
Quando Connors percebe que não é louco e que pode, na verdade, viver para sempre sem consequências (se não há amanhã, como ser punido?), ele se entrega ao seu “eu adolescente”. Fuma dezenas de cigarros sem medo de julgamentos ou doenças, dirige embriagado, usa um leque de mentiras para levar muitas mulheres para a cama, rouba dinheiro e se perverte de uma maneira descontrolada. Depois de mais uma noite de orgias e bebedeira, ele declara: “Não vou mais jogar pelas regras deles!”.

Algum tempo depois de abusar de uma liberdade que acreditava ter, Connors é tomado por um vazio inexplicável e se torna suicida, percebendo que toda a gratificação material e sexual do mundo não se sustenta espiritualmente. De qualquer forma, ele culpa a marmota e, em um pacto de assassinato-suicídio, mata o roedor. Mas nem isso faz com que Connors acorde de seu pesadelo. Depois de inúmeras tentativas de tirar sua própria vida, ele continua acordando no dia seguinte, sem ser o dia seguinte. No fim, exausto e sem expectativas de sair daquela maldição, resolve dar uma guinada. Começa a tocar piano, ler poesia, decide ajudar os moradores locais em assuntos grandes e pequenos, incluindo pegar um menino que cai de uma árvore todos os dias, mas que nunca lhe agradece, apaixona-se pela pessoa que jamais imaginaria se apaixonar; e começa a prestar atenção no amor em várias camadas e vertentes.

Ele, então, descobre que há algumas coisas que não pode mudar, mesmo repetindo-as todos os dias. E, em sua dedicação pelo seu presente, finalmente acorda em 3 de fevereiro, destravando o ciclo interminável do Dia da Marmota. A maldição é suspensa quando Phil Connors agradece pelo dia em que acabou de viver, deixando o melhor que podia no presente, mesmo sabendo que teria de repetir tudo mais uma vez no dia seguinte. Connors lentamente percebe que o que faz a vida valer a pena não é o que você obtém dela, mas o que você coloca nela.

Uma das ideias centrais de Friedrich Nietzsche, filósofo alemão cuja obra exerceu uma influência profunda na história intelectual moderna, é imaginar a vida como uma repetição sem fim dos mesmos eventos que repetimos. 
Como isso moldaria suas ações? 
O que você escolheria para viver por toda a eternidade? 
Mas esse existencialismo não explica o apelo mais amplo de um filme aparentemente bobo que conversa com nossa atual realidade e sociedade. É na ressonância religiosa, que tanto tentam expurgar de nossa vida cotidiana (vide as eternas ordens de lockdowns para igrejas e templos, a tentativa da diminuição da importância da fé), que o filme chamou minha atenção na última vez a que o assisti. Connors vai para sua própria versão do inferno, do qual ele é libertado ao abandonar seu egoísmo e se comprometer com atos de amor da vida real de quem está à sua volta.

Peças inesperadas no tabuleiro
Desde 2020, quando sento semanalmente para pensar no assunto que abordarei em meu artigo semanal, às vezes tenho a sensação de que estamos vivendo no filme de 1993, no Dia da Marmota
O que você faria se estivesse preso em um lugar, e todos os dias fossem exatamente iguais? 
Há exatos dois anos, escrevemos sobre liberdade, sobre autonomia, sobre direitos, sobre a verdade, sobre uma pandemia que devorou o intelecto humano e sobre personagens que continuam desafiando as novas leis do silêncio impostas ao mundo. Martin Kulldorff, Jonathan Isaac, Robert Malone, Joe Rogan, Eric Clapton, Novak Djokovic, Aaron Rodgers, Nicki Minaj, quantos nomes temos trazido para demonstrar a bravura de homens e mulheres que continuam, com declarações firmes, expondo os covardes. 
Nomes que decidiram não aceitar mais as guilhotinas virtuais e a imposição de que todos nós temos de sentar no sofá quente dos lobbies. Mas, mesmo depois de tantos excepcionais exemplos, o que mudou? Estamos vivendo um eterno Dia da Marmota? Aonde vamos chegar? Estamos, realmente, fazendo tudo o que podemos fazer para estancar essa insanidade? 
O que você fez, aí mesmo, perto de você, para quebrar esse ciclo medonho?

Em toda revolução importante, e acredito que estamos dentro de uma, peças inesperadas podem surgir. A última movimentação nesse tabuleiro, crucial para a sobrevivência da liberdade como a conhecemos no mundo, foi brilhantemente feita pelos canadenses, mais especificamente os caminhoneiros canadenses. O que começou como um protesto local, ignorado pela mídia, agora se transformou em uma manifestação mundial contra o fascismo da covid. Após as medidas do governo canadense de impor vacinas para caminhoneiros que cruzam a fronteira EUA–Canadá, os motoristas lançaram um movimento de protesto apelidado de “Freedom Convoy”, que começou na Província da Colúmbia Britânica, no início da semana passada, e chegou à capital canadense, Ottawa, na última sexta-feira.

(...)

O primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, saiu às pressas da capital para um destino não informado e disse essa semana que os manifestantes que estavam em Ottawa eram uma “pequena minoria de marginais” que mantêm “visões inaceitáveis que não representam as opiniões dos canadenses que pensam nos outros”. Tamara Lich, uma das principais organizadoras do grupo Freedom Convoy 2022, disse, em um vídeo postado na conta do Facebook do grupo — perfil que foi derrubado pela plataforma: “Este é um evento familiar, seremos pacíficos e não instigaremos nada. Estamos todos preparados para ficar aqui o tempo que for preciso. Estamos juntos para recuperar nossas liberdades”.

(...) 

Na Holanda, motoristas realizaram seu próprio protesto de comboio, “tudo e todos sobre rodas” são bem-vindos. Aqui nos EUA, caminhoneiros planejam o início de um grande comboio, que deverá sair da Califórnia nas próximas semanas e atravessar o país até a capital, Washington, DC, para protestar contra a tirania do inútil passaporte vacinal, que não bloqueia a transmissão do vírus.
Achatar a curva, lockdown, vacina, tranca tudo e não questiona nada, transmissões em alta, nova cepa, passaporte vacinal, agora vamos achatar a curva, lockdown, vacina, tranca tudo e não questiona nada, transmissões em alta, passaporte vacinal…  
E o rádio-relógio continua tocando a mesma música. E a vida segue imitando a arte. E se o amanhã que deixaremos para os nossos filhos for o mesmo de hoje? 
Um conto draconiano que sufoca qualquer palavra contra os tiranos? 
Uma repetição sem inspiração, sem propósito e sem esperança?
 
(...)

Não dá mais para procrastinarmos o encontro com a realidade, que vai requerer um esforço de todos nós. Cada dia que vivemos não é tão diferente do anterior. No entanto, as mudanças existem e estão nos detalhes que precisam da nossa coragem para ser exaltados e para seguir seu caminho da transformação. Às vezes, só estamos entediados e repetindo nossos maus hábitos porque estamos no piloto automático, dentro no nosso próprio feitiço do tempo. E nos acomodamos, ouvindo a música de Sonny e Cher, esperando que o feitiço se quebre sozinho… “Dizem que somos jovens e não sabemos / Não vamos descobrir até crescermos…”.

Nessa tragicomédia que estamos vivendo, o que fazemos, de fato, como os caminhoneiros canadenses, para quebrar o feitiço que tentam nos impor nos últimos dois anos? 
Os tempos são assustadores, mas a inspiração está por toda parte. Não interessa mais se tudo não passa de um sonho ruim ou um pesadelo. É chegada a hora de despertar.

Leia também “É assim que as coisas mudam”

MATÉRIA COMPLETA - Ana Paula Henkel, colunista - Revista Oeste


terça-feira, 12 de outubro de 2021

Cadê o fogo que estava aqui? Revista Oeste

Evaristo de Miranda

 In God, we trust.
All others must bring data.
(Em Deus nós acreditamos.
Todo o resto deve apresentar dados.)
Edward Deming

 Foto: Valter Campanato/Agência Brasil
 
Foto: Valter Campanato/Agência Brasil
 
Chegou a primavera e, com ela, as chuvas. O relógio do clima tropical é preciso. Passado o equinócio de setembro, aos poucos se encerra o ciclo sazonal de queimadas e incêndios no Brasil. 
Como em outros temas, as queimadas têm sido objeto de uma preocupação seletiva da mídia. 
Nesta estação seca, as redações não se incendiaram com denúncias e acusações sobre queimadas e incêndios no Brasil. Nem aqui, nem no exterior. Poucos tocaram no assunto. Comportamento muito diferente do de 2020. A razão seria a redução do fogo no Pantanal e na Amazônia durante a estação seca de 2021. Contra fatos…
 
De junho a setembro deste ano, a redução de incêndios e queimadas foi de 13% no Brasil. O país registrou 124.995 focos de fogo, valor idêntico ao de 2019 (125.821). 
Em mais de 30 anos, entre 1988 e 2021, a média foi de 135.000 no período seco. 
Em 2020, foram 143.000 focos, valor acima da média. Variações interanuais podem ser grandes: já se registrou um mínimo de 57.000 queimadas no ano 2000 e um máximo de 265.000 em 2007.

Os dados são do monitoramento das queimadas por satélite, realizado pela Nasa. Há décadas, a ocorrência de qualquer fogo de alguma magnitude é detectada várias vezes por dia, por diversos satélites, em sua maioria norte-americanos. O sistema atual de referência internacional para monitorar queimadas e incêndios usa os dados do satélite Aqua M-T, da Nasa. A detecção dos pontos de calor ou fogos ativos pelo satélite é disponibilizada, em tempo quase real, num site conhecido como Firms (Fire Information for Resource Management System). E, no Brasil, esses dados são oferecidos pelo Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (Inpe) no Programa Queimadas.

No Pantanal, a redução foi de 69% em relação a 2020. Situação parecida na Amazônia: uma redução de 26%, contrastando com o aumento de 2020. Quem divulgou os dados sobre a redução das queimadas e incêndios nesses dois biomas? 
Ou tentou entender as razões? 
Quem comparou a dinâmica do fogo nos seis biomas brasileiros e alhures? 
Cadê os interessados?

Como na parlenda Cadê o toucinho que estava aqui?, é a água que apaga o fogo. O peso climático sobre a ocorrência maior ou menor, adiantada ou atrasada, das queimadas é enorme. São flutuações em escala continental. Na América do Sul, a redução dos fogos detectados neste período de 2021 foi até superior à registrada no Brasil: menos 18%. 
Segundo dados do Inpe, tratados pela Embrapa Territorial, do total registrado na América do Sul (200.194), mais da metade ocorreu no Brasil (62%), seguido por Bolívia, Argentina (ambos com 11%) e Paraguai (9%). São valores relacionados à dimensão territorial dos países
Com números ponderados pela área, o Paraguai é o campeão de queimadas: 44 a cada 1.000 quilômetros quadrados; seguido por Bolívia, com 21; Brasil, com 15; e Argentina, com oito queimadas a cada 1.000 quilômetros quadrados.

O Ano da Graça de 2021 passará à história como um exemplo de redução nesse fenômeno indesejado? Alguém explicará as causas dessa variação? Provavelmente, não. O Poder Executivo, acusado pelo aumento das queimadas na Amazônia ou no Pantanal em 2020, será responsabilizado pela redução do fenômeno? Dificilmente. Nem no Dia da Amazônia, em setembro, as catilinárias e as diatribes sobre as ações humanas nesse bioma não saudaram a redução no número das queimadas.

Em agosto passado, artigo na Revista Oeste destacou quanto a distinção entre queimadas e incêndios é necessária para a adoção de políticas públicas e privadas adequadas à redução do uso do fogo no mundo rural. A solução é ampliar o emprego de novas tecnologias agropecuárias para substituir o uso do fogo em diversos sistemas de produção. A queimada é uma tecnologia agrícola. Não se trata de prevenir queimadas, como no caso dos incêndios, mas de substitui-las por tecnologias modernas.

Agricultores não queimam por malvadeza. Essa prática do neolítico foi herdada essencialmente dos índios (coivara). Povoadores europeus a adotaram, aqui e na América Latina. 
Ela é tradicionalíssima na África, onde também é utilizada como técnica de caça. 
É sobretudo o produtor não tecnicizado, descapitalizado e marginalizado do mercado quem emprega o fogo ocasionalmente para renovar pastagens, combater carrapatos, eliminar resíduos vegetais acumulados, limpar áreas de pouso etc. 
 
E eles são minoria: menos de 2%. Do total registrado de queimadas, mais de 15% ocorrem em terras indígenas, áreas urbanas e periurbanas, beira de estradas etc. Fora das fazendas. São 6 milhões de produtores e cerca de 110.000 queimadas rurais no Brasil. Mais de 98% dos produtores não empregam o fogo em seus sistemas de produção. Não se trata de uma prática generalizada. A única prática generalizada é acusar toda a agropecuária brasileira. Há como reduzir o uso do fogo a menos de 1% dos produtores e tentar eliminá-lo por completo. Alternativas técnicas à prática das queimadas existem.

O apagão midiático parece resultar de uma verdade inconveniente: a redução das queimadas não interessa

Já com os incêndios é diferente. Esse fogo indesejável ocorre fora de hora e lugar. Destrói patrimônio público e privado. Reduz a biodiversidade. Mata pessoas. Sua prevenção é fundamental. Uma vez iniciados, eles são difíceis de controlar. Muitas fazendas, usinas de cana-de-açúcar e grupos de reflorestamento mantêm brigadas anti-incêndios treinadas e equipadas para atuar, com o Corpo de Bombeiros e a Defesa Civil. Mesmo assim, neste ano, particularmente na região nordeste do Estado de São Paulo, ocorreram incêndios em canaviais provocados criminosamente ou por atos irresponsáveis. Na época da colheita, a palha seca da cana-de-açúcar é altamente comburente e queima como papel.

Em 2020, incêndios e queimadas mobilizaram a mídia nacional e internacional, com acusações ao Brasil por parte de organizações não governamentais, do presidente francês, de outros chefes de governos e até com fotos de girafas e cangurus queimados. Neste ano, alguns até tentaram uns sinais de fumaça, mas faltou lenha ou fogo. O apagão midiático parece resultar de uma verdade inconveniente: a redução das queimadas não interessa. Apenas seu aumento. Os desafios colocados pelo uso do fogo na agricultura também não interessam. Levar tecnologias, financiamentos e conhecimentos para os pequenos agricultores reduzirem o uso do fogo também não. Só interessaria o incremento para acusar e culpar A ou B, como no ano passado? Aqui e no exterior? Em 2021, ainda não houve uma reportagem para atribuir o mérito da redução das queimadas a A ou B. Nem aqui, nem no exterior. Cadê o crítico? O gato comeu. C´est la vie.

Leia também “Agricultura lidera a preservação ambiental”

Evaristo de Miranda - Coluna na Revista Oeste - MATÉRIA COMPLETA