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sexta-feira, 4 de agosto de 2023

Ministério e Supremo - Lula anda cheio de ironias - Gazeta do Povo

Alexandre Garcia - VOZES 

 
Eu não sei se é ironia do presidente, mas ele disse que “não tem pressa” em mudar o ministério – e vai mudar na semana que vem.
Isso significa pressa, não? 
Na quinta-feira, durante a posse do novo ministro do Turismo, Celso Sabino, todo mundo notou a ausência do vice-presidente da República, Geraldo Alckmin, que também é ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. 
Ele está no meio de um burburinho de perda da pasta, porque ele não precisaria de ministério, já é vice-presidente
Só que, como vice-presidente, ele não tem nada para fazer a não ser esperar que substitua Lula numa eventualidade. [lembrando que o passado de  Alckmin mostra que ele tem experiência em transformar substituição eventual em definitiva.]  Chegaram a falar do nome dele para o Ministério da Defesa, mas não sei se Lula ponderou que Alckmin ficaria com poder maior sobre os militares.
 
O presidente Lula teve uma reunião com o PT para explicar que ele vai ter de tomar lugares do partido. A ministra Ana Moser, do Esporte, que está lá pelo PT, voltou correndo da Austrália depois daquele 0 a 0 da seleção feminina com a Jamaica. 
 Aliás, os americanos me dizem não saber como é que gostamos de um esporte que termina sem ninguém fazer ponto
Foram os ingleses que inventaram, não nós.
 
A outra ironia de Lula veio na posse do seu advogado, Cristiano Zanin, como ministro do Supremo. O presidente disse que “esse pragmatismo vai continuar na escolha do procurador-geral da República”. Como assim, “pragmatismo”? 
Não sei se Lula pensa que pragmatismo é sinônimo de compadrio ou algo assim. 
Ou talvez seja mesmo pragmatismo, de assumir que não é trouxa, que não vai posar de justo, nem de imparcial, nem de ético, e por isso escolheria mesmo o seu advogado. Afinal, ele já escolheu o advogado do PT, Dias Toffoli, que ainda está lá; foi o Supremo que descondenou Lula e, depois, os ministros do Supremo que estão no Tribunal Superior Eleitoral também deixaram a Lei da Ficha Limpa de lado.
 
Agora o Supremo volta a ter 11, porque estava com 10 após a saída de Lewandowski, e podia dar empate. 
Em outubro sai a ministra Rosa Weber, que é presidente, mas vai interromper o mandato antes do fim porque vai chegar à idade limite e terá de sair. Aí, Lula escolhe mais um ministro – com pragmatismo, certamente.
Roberto Campos Neto, tão criticado por Lula, desempatou reunião do Copom para redução maior da Selic
 
 
Por falar em empate e pragmatismo, vejam como se portou o presidente do Banco Central, que foi tão criticado pelo governo, por Fernando Haddad e por Lula, o neto de Roberto Campos.  
Ele inclusive estava em uma homenagem ao avô, durante a qual eu falei na tribuna da Câmara, e saiu às pressas porque ele preside a reunião do Copom, que estava empatada entre os que queriam diminuir a Selic em apenas 0,25 ponto porcentual e os que queriam diminuir o dobro disso, meio ponto porcentual. E prevaleceu o voto de minerva de Roberto Campos Neto, que optou pela redução maior, de meio ponto
Agora temos uma taxa básica de juros um pouquinho menor.

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Interferência do Supremo no caso da maconha é tão grande que até Rodrigo Pacheco reclamou
Rodrigo Pacheco fez algo inusitado: criticou o Supremo, dizendo que é inadmissível o que o STF está fazendo. 
De acordo com as palavras dele, está havendo uma “invasão de competência do Legislativo” para tratar de uma lei que passou pelo Congresso duas vezes, em 2006 e 2019, quando fizeram alterações. Mas os parlamentares confirmaram o artigo 28 da Lei de Drogas, que o Supremo quer simplesmente banir, porque a Defensoria Pública de São Paulo – que não está defendendo público nenhum, já que está propondo que não se puna o porte de droga para uso pessoal – tomou as dores de um preso que estava com maconha na cela e foi ao STF para derrubar essa parte da Lei de Drogas.

Devíamos ouvir as pessoas que estudam o tema, como Valentim Gentil Filho, por exemplo, que é doutor em Psicofarmacologia Clínica pela Universidade de Londres; ele diz que, se tivesse de escolher uma droga para ser banida, escolheria a maconha, porque é uma fábrica de esquizofrênicos, altera funções cerebrais levando a psicoses. Ainda na quinta-feira, um técnico de enfermagem me dizia que todos os seus contemporâneos, seus amigos da juventude, que fumavam maconha ficaram meio bobos com o passar do tempo.

O Supremo parece que suspendeu o julgamento, mas está 4 a 0. Daqui a pouco alguém dá o sexto voto e derruba um artigo que só deveria ser mexido ou discutido pelo Congresso Nacional. Não estão pensando nos efeitos nocivos, nas escolas, nas famílias, enfim, no Brasil. Parece que é para enfraquecer os brasileiros.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

Alexandre Garcia
,  colunista - Gazeta do Povo - VOZES


segunda-feira, 15 de maio de 2023

O caminho da servidão - Sílvio Lopes

         Vivemos tempos, rigorosamente desafiadores para o exercício do jornalismo. 
Do jornalismo sério e responsável, ao que me refiro. Habituado a sempre melhor informar o público leitor, desde meu primeiro emprego, no jornal O Globo, começo dos anos 70 (no Rio, depois aqui, na sucursal, como correspondente), hoje constato que além disso, nós jornalistas somos obrigados a combater a (deliberada) desinformação (as verdadeiras fake news). Do próprio veículo, diga-se. Esquizofrênico, para denunciar o mínimo.
 
É o caso da insistência da extrema esquerda brasileira, de acusar de fascista quem se identifica de conservador, de direita ou simpático ao catecismo econômico, político e democrático do bolsonarismo. Nada mais longe da verdade. Tudo o que acusam ser obra do fascismo, foi, sim, legado da doutrina socialista (progressista).

No livro " O caminho da servidão", o prêmio Nobel de Economia de 1974, Friedrich A. Hayek, pondera o seguinte: "Não foram os fascistas, mas os socialistas que começaram a arregimentar as crianças desde a mais tenra idade em organizações políticas, para terem a certeza de que elas cresceriam como boas proletárias; não foram os fascistas, mas os socialistas, os primeiros a organizar esportes e jogos, o futebol e o pedestrianismo, em clubes de partidos onde os membros não pudessem ser contagiados por outras ideias. Foram os socialistas os primeiros a exigir que o membro do partido deveria distinguir-se dos outros pela maneira de saudar e até formas de tratamento. Foram os socialistas que, com sua organização de "células" e dispositivos destinados à fiscalização permanente da vida privada, criaram o protótipo do partido totalitário. "Balilla" e Juventude Hitlerista", " Dopolavoro" e "Força pela Alegria", uniformes políticos e formações militares dos partidos, pouco mais são do que imitações de instituições socialistas (progressistas), mais antigas".

Hayek conhecia profundamente a história das ideias políticas e as da economia, e tinha o poder analítico insuperável de captar as idiossincrasias e relações dialéticas entre elas. Dessa maneira, constatamos, uma vez mais, a face cínica e hipócrita que carrega a extrema esquerda (os auto- proclamados progressistas) de acusar os outros daquilo que verdadeiramente eles são e fazem. Eles, realmente, são um caso perdido.

O autor, Sílvio Lopes é jornalista, economista e palestrante sobre Economia Comportamental.

Site Percival Puggina - Transcrito pelo Blog Prontidão Total

 

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Os ‘liberais’ de Lula - Revista Oeste

Pedro Henrique Alves

O esquizofrênico caso dos defensores da diminuição do Estado que votam em um tradicional estatista para subjugar o presidente que mais diminuiu a máquina pública nas últimas décadas 

Um dos pontos bons de ser um editor é poder participar de certos círculos intelectuais e jantares com pessoas importantes que naturalmente estariam fechados a mim se não fossem minha função e meus deveres de livreiro. Nesses jantares, regados a vinhos caros que vêm de algum superlugar de alguma supersafra, pautados por costumes degustativos que minha origem de classe média definitivamente não me preparou para abarcar, os debates políticos correm à solta na mesma velocidade com que os garçons passam para atender os engravatados. Depois da segunda taça, até mesmo o mais ermitão dos empresários tem opiniões políticas urgentes a serem expressas, acredite.  
A principal tribuna de um bom liberal quieto é uma garrafa de vinho. 
Em alguns desses jantares, parecia existir uma dúvida realmente recorrente entre alguns empreendedores sobre se Bolsonaro seria de fato o melhor candidato para um liberal votar no segundo turno.
 Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock
Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock

Dividindo espaço na mesa com salmões e saladas tão caros que eu sinceramente me perguntava de que terra sagrada vinham aqueles alfaces e repolhos, os argumentos e as críticas ao governo vocalizados por aqueles senhores realmente me assustavam, não pelas críticas em si, mas porque geralmente giravam em torno dos subsídios de Bolsonaro aos caminhoneiros e suas caneladas morais e políticas no percurso de seu governo. Não sei se em decorrência da já terceira ou quarta taça de vinho, a amnésia política daqueles autodenominados liberais era evidente e agravante, ao ponto de esquecerem-se que Lula deu subsídios até para a Nicarágua e Cuba via BNDES sem nenhuma expectativa de retorno desse dinheiro, que a política monetária do governo petista partia, literalmente, dos cofres da União, e não de qualquer estratégia para o mercado, que favores a empreiteiras, conluios com bancos e caixas suspeitos foram a ortodoxia em seus anos áureos.

Até mesmo na Faria Lima, ao que tudo indica, o STF conseguiu extirpar das mentes populares as corrupções do ex-presidente petista, pois, ali, naquela mesa, falávamos de Lula tal como se estivéssemos falando de qualquer outro político sem nenhum histórico podre de corrupção, como se o petista fosse amigo dos empresários e do livre mercado. Ou, pior, como se já não o tivéssemos testado no poder e não soubéssemos no que deu.

É quase grotesco existirem dúvidas reais sobre se Bolsonaro seria ou não uma melhor opção que Lula, segundo os valores e os princípios liberais

Talvez por ser o único plenamente lúcido naquela mesa tomei Coca zero, em decorrência da minha nona tentativa de regime neste ano —, pude constatar com um espanto comedido que aqueles liberais realmente estavam em dúvida se, ante seus sempre imponentes valores e princípios, Bolsonaro de fato era mais liberal que o sindicalista de São Bernardo. E, vejam, não havia nenhum banqueiro na mesa, isto é, não se tratava dos já conhecidos “burgueses do Kremlin”. Falávamos com empreendedores e investidores comuns. Fato é que, excetuando o valor da minha parmegiana de frango, nada mais me assustou naquela noite do que aquele debate.

Ora, eu sei. Realmente seria muito iludido se chamasse Bolsonaro de “liberal” pura e simplesmente. Com quase toda certeza, Bolsonaro nunca leu nenhum clássico do liberalismo — aliás, se este texto chegar a ele, leia A Lei, de Bastiat —, sua labuta pró-mercado me parece ser mais uma crença baseada nas convicções daqueles que ele admira, como Paulo Guedes e sua equipe. 
No entanto, independentemente de onde uma arqueologia das ideias liberais de Bolsonaro nos levará, parece-me um tanto quanto indiscutível que seu governo talvez tenha sido o mais liberal e pró-mercado das últimas décadas neste país. O mercado, o melhor analista político de qualquer governo, nos mostra isso. E, caso sejamos inteligentes o suficiente para não acreditarmos que a mão invisível seja bolsonarista, temos de concordar que existe algum casamento de princípios entre o claudicante liberalismo do governo Bolsonaro e os princípios do livre mercado.

Em ritmo de “despiora”
Só para ilustrar um pouco este artigo: o agronegócio brasileiro cresceu como nunca nos últimos quatro anos, fazendo a OMC (Organização Mundial do Comércio) pedir encarecidamente que o país sustentasse e expandisse seus plantios como uma forma de humanismo em tempos de desabastecimentos alimentícios
Já somos o quarto maior país na produção de arroz, milho e cevada e o primeiro em exportação de café e soja; somente em 2021, exportamos mais de 80 milhões de toneladas em grãos de soja, e, no segundo semestre, foi o agronegócio que liderou a alta do PIB brasileiro
Em paralelo, a exportação de proteína animal jamais esteve tão grande, e, segundo a Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), os produtores ainda guardam fortes expectativas de abertura de novos mercados de carne suína com o Japão, a China e a Coreia do Sul. 
 
Ou seja, os dados de exportação de proteína animal da segunda metade deste ano podem melhorar ainda mais. Por sua vez, a construção civil, que puxou a derrocada brasileira em 2020 e 2021, vem aumentando suas expectativas de crescimento em 2022. Em fevereiro, a projeção girava em 2%, agora está no patamar de 3,5%, com possibilidade para novas revisões para cima. 
Até o mercado de biscoito, nos últimos seis meses, cresceu 40% em exportações. O desemprego vem caindo de forma acentuada e, somente em maio, o Brasil gerou mais de 280 mil vagas diretas de emprego. Em abril, foram 200 mil vagas. O FMI, em relatório divulgado na terça-feira 26 de julho, revisou o crescimento do Brasil de 0,8% para 1,7%, mostrando que o país está em ritmo de crescimento realmente forte e seguro.

Vejam, esses são apenas alguns dados expostos nos últimos 60 dias. Escolhi coletá-los só para ilustrar que, economicamente, apesar dos resquícios da pandemia, da guerra na Ucrânia, da inflação mundial, dos populismos recorrentes de certos setores governamentais, da torcida contrária da velha mídia e dos entraves da oposição, o país parece estar de fato sob uma agenda liberal de crescimento sustentável ou, como essa imprensa gosta de dizer, em forte ritmo de “despiora”. 

Mas ainda há aquela velha questão da liberdade para além dos termos econométricos e das tabelas de Excel, falo da liberdade enquanto respiro social. E por ser demasiado óbvio — até mesmo para os mais ingênuos — não me demorarei nesse aspecto, apenas reafirmarei que é inconcebível, desde os tempos estranhos dos protoliberais John Locke e Adam Smith, que algum dito liberal apoie alguém que abertamente defendesse a regulamentação da mídia, o financiamento de ditaduras e outras mil pautas parecidas. Sabe como chamamos um “liberal” que apoia tudo isso? Socialista.

Por fim, filosófica e economicamente falando, é quase grotesco existirem dúvidas reais sobre se Bolsonaro seria ou não uma melhor opção que Lula segundo os valores e os princípios liberais, mas, acredite, há aqueles que querem inventar uma isenção sofisticada a fim de votar em um candidato socialista e em sua bizarra agenda quase soviética. Por exemplo, segundo o dito “liberal” Pedro Menezes, é melhor votar no Chávez brasileiro do que em Bolsonaro, a fim de evitar um golpe. Olho para a atual Venezuela miserável e só consigo imaginar que, em outros tempos, liberais como Menezes facilmente encontrariam em Stálin bons motivos humanistas para defendê-lo ante os seus opositores

O esquizofrênico caso do defensor da diminuição do Estado que vota em um tradicional estatista para subjugar o presidente que mais diminuiu a máquina pública e promoveu a liberdade individual nas últimas décadas. 

Somente nós, brasileiros, conseguimos produzir espécimes liberais como essa, justificando-a sob um retalhado véu argumentativo de isenção e imparcialidade.

Eu mesmo não votei em Bolsonaro no primeiro turno de 2018, e como liberal tenho um baú lotado de críticas e “poréns” ao seu governo, mas a hipocrisia de coçar a nuca e fingir dúvida entre Bolsonaro e Lula, sinceramente essa desfaçatez não consigo ter. Não vou caçoar da racionalidade e do bom senso social para defender um ex-presidente que representa quase tudo aquilo que política e economicamente eu rechaço. É claro que não estou falando que empresários e demais liberais devam fazer campanha para Bolsonaro, poucas coisas são tão bregas atualmente quanto qualquer adoração política.

O que Russell Kirk realmente ensinou em seu livro A Política da Prudência foi isso: quando só temos nabos para o jantar, dormir sonhando com picanhas é burrice, por isso acordem, liberais de Lula, desçam, nem que seja por um instante, das suas nuvens ideárias e de seus castelos contratualistas a fim de observar o que temos para agora entre as opções que se apresentam. Percebam, meus caros, que os EUA não se tornaram o maior país capitalista do mundo somente debatendo no Salão Oval as curvas e as linhas de um calhamaço filosófico de Mises ou Friedman, mas, sim, optando pela melhor via que existia naquele instante. O famoso pragmatismo do Tio Sam fez daquele país a maior expressão de democracia e liberdade do Ocidente, e fez isso com fatos, e não com marshmallows de ideias.

Leia também “A seita da urna eletrônica”

Pedro Henrique Alves, colunista - Revista Oeste

 

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Quem é o “fura-fila” - Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

José de Souza Martins

O “fura-fila”, crônica figura do elenco dos protagonistas de maus costumes brasileiros, não é apenas a figura isolada do transgressor egoísta dos direitos de todos. Ele faz parte de um gênero das anomalias encravadas em nosso caráter nacional.  O “fura-fila” voltou à cena nas ocorrências de furadores da fila para vacinação contra a covid-19. Definiu-os o vice-presidente da República como gente sem caráter nem solidariedade. Como se trata de um gênero de mau-caratismo, abrange os que estimulam e apoiam os que furam a fila da vida alheia na desobediência às regras de segurança sanitária de todos.

Anomalias e defeitos do caráter nacional têm raízes históricas profundas. Não por acaso, em diferentes formas e manifestações, podem elas ser encontradas até mesmo em obras referenciais da literatura brasileira, como em “O Alienista”, de Machado de Assis, na loucura de Simão Bacamarte.

Para compreender o egoísmo antissocial e as invisibilidades do sistema de anomalias de conduta desse gênero, que se expressam na falta de caráter do “fura-fila”, recorro a obras de quatro de meus confrades da Academia Paulista de Letras. É quase natural que identifiquemos em suas personagens alguém que conhecemos e de cujos tormentos temos consciência.

As deformações de caráter e as anomalias de conduta nelas personificadas estão distribuídas na sociedade inteira. Manifestam-se em personalidades débeis. São aquilo que a sociologia define como anomia, ausência de normas que torna socialmente desviante o comportamento ou o põe em risco de discrepar do moralmente esperado e necessário.

Em “Antes do Baile Verde”, Lygia Fagundes Telles nos apresenta aos dilemas de Tatisa, preocupada com os afazeres de preparação da roupa para o baile de Carnaval, cujo tema será a cor verde. Não obstante, em outro aposento, seu pai, muito doente, esteja morrendo. Ante a estranheza de Lu, sua empregada, Tatisa desenvolve argumentos para isentar-se de responsabilidade e de culpa. A culpa é dos outros, do médico, da própria empregada. É o “fiz a minha parte” de uma fala recente do atual presidente.

Tatisa personifica a alienação que decorre das prioridades invertidas da sociedade de consumo e do espetáculo. É característica da classe média a falta de consciência de alternativas para os dilemas e impasses da vida. Culpar o outro ou a vítima é a saída autoindulgente.  Anna Maria Martins, nos contos de seu denso livro “Trilogia do Emparedado”, desenvolve narrativas que ilustram e desvendam os emparedamentos desta sociedade. Mesmo o emparedamento dos que emparedam os outros para sobreviver numa sociedade assim. E se emparedam a si mesmos, sujeitos que são de uma sociedade que, ao coisificar as pessoas, se torna vazia e povoada de seres vazios.

O conto “Plataforma 3”, cujo cenário é a estação da Luz, expõe o interior de um homem que deixa a mulher, sai de casa e resolve partir. À medida que se defronta com a afetividade de pessoas que estão juntas, no vai e vem de passageiros na plataforma, vai tomando consciência de sua pobreza de alteridade e de sua alienação no egoísta que é, vazio de afetividade em relação à mulher que deixara. Volta para casa, abre a porta, entra, chama. A casa está vazia, como se ali não tivesse havido ninguém desde há muito.

Maria Adelaide Amaral, em “Luísa”, narra a história da personagem que dá nome ao livro, que é apenas expressão imaginária do que dela acha um grupo de amigos intermitentes. Luísa é um resíduo da condição humana, o intersticial de uma sociedade de restos, de fragmentos de humanidade e de pessoa. Luísa é um perambular indeciso da visão que dela têm os outros. Ela é um outro, que não se realiza como pessoa tangível de sentimentos e decisões. Neste grande livro de Maria Adelaide, os encontros são desencontros de humanos provisórios e inacabados.

O “fura-fila” e o transgressor egoísta e prepotente das normas de saúde coletiva, na situação adversa da pandemia, pensam que o todo se resume neles. Estão sozinhos no mundo. Eles são o nada de um verde-amarelo que desbotou, de uma pátria que agoniza, afogada nos pressupostos neofascistas de uma grandeza falsa e minúscula.

Em obra desafiadora, “Um Estudo em Branco e Preto”, de Mafra Carbonieri, a obsessão de sua personagem é assassinar a esposa. A cada tentativa comete o assassinato que não ocorre, que pensa ter praticado, mas não aconteceu, na mulher que retorna sempre ao seu cotidiano caseiro e repetitivo. Ele é o duplo da alienação pós-moderna, desencontrado consigo mesmo, esquizofrênico. Sua loucura, no entanto, faz revelações filosóficas que só os loucos propiciam.

Na literatura está nossa consciência de que vivemos num país socialmente enfermo.

José deSouza Martins, sociólogo - Valor Econômico / Eu & Fim de Semana .