O sermão de
São Gregório Nazianzeno começa numa espécie de jubilosa exclamação:
«Páscoa, Páscoa, Páscoa, três vezes Páscoa, direi em honra da Santíssima
Trindade. Esta é para nós a festa das festas, a solenidade das
solenidades. Como o fulgor do sol apaga as estrelas, assim esta
festividade excede a todas as outras, não só as humanas mas as do
próprio Cristo e que por causa dele se celebra».
Lembremos a instituição
da Páscoa no Antigo Testamento, quando Deus encarregou Moisés de
ensinar os israelitas que sofriam servidão no Egito:
«No décimo-quarto
dia desse mês, os filhos de Israel tomarão em cada família um cordeiro
de um ano, sem mancha, o imolarão, e com o seu sangue marcarão os
umbrais de suas portas, e nessa mesma noite comerão a carne do cordeiro
com pão sem fermento e ervas amargas... E comerão com os cintos atados,
as sandálias de viagem nos pés, e com o bastão na mão; porque é a
Páscoa, isto é, a Passagem do Senhor»
E agora nesta Páscoa do Novo
Testamento, em que o próprio filho de Deus é imolado, procuremos
compreender bem em toda a profundidade, o mistério desta solenidade três
vezes bendita.
Páscoa,
para nós quer dizer Passagem e faz-nos lembrar que somos peregrinos, que
estamos em caminho da pátria como os israelitas estavam a caminho de
Canaã, onde abundava o leite e o mel. Por isso, a nossa maior festa
ainda é celebrada em marcha, às pressas, com o cinto apertado e a
sandália de viajante nos pés. Ainda não chegamos, e por isso, à carne do
cordeiro que comemos se misturam ervas amargas. Estamos no meio do Mar
Vermelho. Em direção à Pátria, mas ainda no mundo. Estamos no deserto,
vivendo da palavra de Deus.
Páscoa,
para nós, quer dizer também Discriminação. É a festa da nitidez. Ou
temos os umbrais de nossa alma marcados com o sangue do Cordeiro, ou
pereceremos na Passagem do Anjo exterminador. Esta característica pascal
parece contrária à anterior pois lá se falava de transição e aqui se
fala de nitidez e essas duas idéias têm ressonâncias opostas. Convém
portanto precisar melhor: A transição se refere à nossa condição
exterior de peregrinos; a discriminação se refere à marca interior do
Sangue de Cristo em nós. Estamos em trânsito, passando por estações
intermediárias, vivendo dia a dia as gradações do mundo, mas nossa alma,
por cima do mundo, está ancorada; e em contraste com o cinzento dos
dias está nitidamente marcada com o rubro Sangue do Cordeiro.
A cruz que
é para os gentios sinal de escândalo e de loucura, é para nós sinal de
nitidez e de absoluta discriminação. Onde ela se planta desaparecem os
meios-termos, os compromissos, as concordatas, e toda essa indecisão que
fazia muitos israelitas no deserto suspirarem com saudades da servidão
do Egito, porque lá, ao menos, tinham garantida a gamela de carne com
cebolas. Para nós, a Cruz deve ser o sinal de um franco contraste. Ou
somos marcados, ou não somos. Ou estamos com Cristo ou contra ele. Ou
avançamos ou regredimos. Não há meio-termo à luz do círio pascal.
Apliquemos
em nós, cada dia, cada hora, esse espírito discriminador da Páscoa, e
saibamos imprimir em cada um de nossos atos o sinal da cruz. A tentativa
mais insensata que fazemos é a de procurar um meio-termo entre Deus e o
Mundo. Dizemo-nos católicos com uma terrível tranqüilidade e com uma
impressionante inconseqüência.
Dizemo-nos católicos e continuamos a
viver as mesma infidelidades e a saborear as mesmas carnes e cebolas do
faraó.
Dizemo-nos cristãos, mas a marca do Sangue mais parece uma rosada
aguadilha, mais parece um sinal de maquilagem do que uma infusão de
incondicional amor.
Sejamos pascais, sejamos nítidos; ou não seremos Cristãos.
Páscoa,
para nós, também quer dizer salvação. Se estamos em marcha, e se
nitidamente optamos, já estamos salvos, salvos em Esperança. O mesmo
Sangue que discrimina já tem a virtude salvífica, já opera o que
significa e já nos dá direito de falarmos a Deus com a
liberdade de filhos.
Terminemos com a leitura de São Gregório Nazianzeno:
«Hoje é o dia em que fugimos do poder egípcio, das mãos do odioso faraó e de seus cruéis ministros; dia em que nos libertamos da argila e das olarias. A festa do Êxodo já ninguém há que proíba celebrá-la com o Senhor nosso
Deus, e não mais com o velho fermento da malícia e da corrupção, mas com
os ázimos da sinceridade e da verdade, nada trazendo conosco do ímpio
fermento egípcio. Ontem angustiava-me com o Cristo na Cruz, hoje sou
também glorificado. Ontem com Ele morria, hoje com Ele sou vivificado.
Ontem sepultava-me com Ele, hoje com Ele ressuscito».
Reproduzido de Permanência