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domingo, 20 de fevereiro de 2022

A hipocrisia da cultura do cancelamento - Revista Oeste

Ana Paula Henkel

Há um esforço global para derrubar espaços exclusivamente femininos e acomodar uma agenda radical de gênero que promova ideologias anticientíficas como verdade

A cantora Adele, também vítima da cultura do cancelamento | Foto: Reprodução/Instagram
 A cantora Adele, também vítima da cultura do cancelamento | Foto: Reprodução/Instagram 
 
A demoníaca cultura do cancelamento fez — ou pelo menos tentou fazer — outra vítima. Desta vez foi com Adele, a cantora britânica mundialmente reconhecida. A vencedora de mais de uma dúzia de Grammys cometeu o crime hediondo de defender o sexo feminino na premiação anual de música da British Phonographic Industry

Os organizadores do BRIT Awards anunciaram pela primeira vez que sua premiação seria “sem gênero”. A mudança, alegaram, pretendia mostrar o “compromisso da organização em evoluir para ser a mais inclusiva e relevante possível”. Em vez disso, enterrou as realizações de artistas conceituadas como Adele, que veem sua feminilidade como um ativo no mercado. Ao receber o prêmio de melhor artista do ano, Adele resolveu dizer o óbvio: que as mulheres não querem e não devem ser apagadas em nome de uma suposta “inclusão”. “Entendo por que o nome deste prêmio mudou, mas eu amo ser mulher e ser uma artista feminina — eu amo, eu amo!”

Boom. Os comentários de Adele receberam mais atenção do que a excepcional qualidade de sua música e de seu trabalho. No dia seguinte, muitos meios de comunicação destacaram vários tuítes de “influencers” da comunidade LGBT difamando a “Artista do Ano” como uma “feminista radical trans-excludente”, ou “TERF”, nome pejorativo dado a mulheres que, supostamente, não apoiam as causas trans. Os intolerantes do bem do teclado criticaram Adele por ela receber o prêmio e pasmem! não usar a baboseira da tal linguagem neutra em seu discurso. Mas não há nada de errado no comentário pró-mulher da cantora; muito pelo contrário, a verdade é que as mulheres podem — e devem — falar quando espaços dedicados a nós são arrancados em nome de uma suposta “inclusão”.

Há um esforço global para derrubar espaços exclusivamente femininos e acomodar uma agenda radical de gênero que promova ideologias anticientíficas como verdade. E isso está acontecendo em escolas, prisões, esportes e no mundo do entretenimento. Crianças e adolescentes com idades entre 4 e 18 anos estão aprendendo em muitas escolas públicas dos Estados Unidos que podem trocar seus pronomes, a aparência e até suas partes íntimas, dependendo de como se sentem. Essas mesmas escolas, financiadas com o dinheiro dos pagadores de impostos, justificam permitir que meninos do ensino médio que se identificam como meninas entrem nos banheiros femininos, o que abriu a porta para agressões sexuais. Homens, alguns acusados de crimes sexuais contra mulheres, estão sendo transferidos para prisões femininas aqui na Califórnia e em outros Estados democratas simplesmente porque afirmam que são mulheres. Mesmo esportes universitários exclusivos para mulheres, que deveriam ser protegidos pelo Título IX (lei de 1972 que previne a discriminação de gênero no sistema educacional atlético dos EUA, dando a cada gênero direitos iguais a programas educacionais, atividades e assistência financeira federal), são ameaçados por homens biológicos que “se sentem como mulheres”, como a nadadora da Universidade da Pensilvânia Lia Thomas, e aliados radicais das políticas de gênero na NCAA (Liga Universitária Americana).

Identidade de gênero como ideologia
Adele não é a primeira celebridade feminina a ser cancelada pela turba que jura por tudo que é mais sagrado proteger as minorias e as mulheres. Em 2019, J.K. Rowling, autora da série Harry Potter, saiu em defesa de uma mulher britânica que foi demitida de seu emprego por postar em suas redes sociais que “homens não podem se transformar em mulheres”, uma visão que muitos chamam de transfóbica.  
Como resultado, fãs furiosos tacharam a autora de TERF, queimaram seus livros e até enviaram ameaças de morte. Rowling saiu em defesa de Maya Forstater, que apenas disse o óbvio: que existem somente dois sexos biológicos. A bilionária do mundo literário também acrescentou em uma entrevista que “muitas mulheres estão preocupadas com os desafios aos seus direitos fundamentais que estão sendo colocados em xeque por certos aspectos da ideologia de identidade de gênero”. Logo após o episódio, Rowling se envolveu em uma outra “polêmica”, depois de criticar um artigo que usava o termo “pessoas que menstruam” em vez de “mulheres”.
 
Não entre em pânico

Não, não somos os únicos com a sensação de que o mundo está de cabeça para baixo. Estamos em tempos de tiranias governamentais e culturais. É fato que cada geração teve de lidar com suas próprias manifestações de bullying e vergonha pública. A década de 1950 viu o macarthismo, a perseguição política que expliquei em detalhes num artigo publicado aqui em Oeste e que voltou com tudo nesses tempos atuais de extrema polarização política. Na década de 1690, em Salem, no Estado de Massachusetts, a história testemunhou a caçada e os julgamentos de bruxas. Agora, estamos sofrendo com a digital perversa de nossa geração, que ficará marcada nos livros como a “cultura do cancelamento”. A vergonha pública do século 21, no entanto, não atinge milhares, mas dezenas de milhões e é capaz de fazer isso de maneira instantânea na internet e nas mídias sociais — com muita frequência, sob o manto do anonimato dos mascarados do Twitter, a cracolândia da internet.

A ruína de nossa geração é uma hidra de muitas cabeças, como o doxing (prática de descobrir informações pessoais sigilosas de uma pessoa e divulgá-las on-line), a exposição pessoal, a vingança e o cancelamento das carreiras de figuras públicas. As “manchas” são baseadas na suposição de que os alvos entrarão em pânico; eles se desculparão e buscarão penitência, reduzindo-se a ídolos tímidos e bajuladores da turba demoníaca. O objetivo é a trotskização eletrônica: fazer essa gente que ousa questionar a vil e segregacionista agenda identitária pedindo desculpas ou não — desaparecer das telas dos computadores como se nunca tivesse existido.

Adele é uma mulher adulta que canta sobre suas experiências como mulher. Por que ela deveria se desarmar ou negar o que, essencialmente, é seu “superpoder”? Apesar de todo o lixo encontrado no Twitter, outras pessoas saíram em sua defesa — um sinal de que possivelmente estamos começando a emergir de um estado catatônico excessivo. Onjali Rauf, outra autora britânica de sucesso e fundadora da ONG Making Herstory, uma organização de direitos da mulher que combate o abuso e o tráfico de mulheres e meninas no Reino Unido, foi até a cracolândia da internet e disse: “Obrigado, Adele! Obrigado por falar duas palavras que estão sendo difamadas. Mulher. Feminino”. Um editorial da educadora Debbi Hayton, publicado pela revista Spectator, foi igualmente efusivo, agradecendo a Adele por se arriscar a ter o mesmo destino de J.K. Rowling e outras mulheres que “foram perseguidas, e perseguidas sem piedade, simplesmente por defender seu sexo. A mensagem de Adele para mulheres e meninas foi inspiradora”, disse Hayton. 

Trinta anos atrás, Kurt Cobain abriu a década de 1990 usando vestidos. Quem pensaria que o discurso de Adele, abraçando e afirmando sua feminilidade, seria considerado tão transgressor hoje em dia?        Dizer em voz alta que você tem orgulho de ser mulher agora é ofensivo. Estamos realmente surpresos neste momento? 
Há uma década, se alguém dissesse que uma mulher seria criticada pelo crime de pensamento de dizer que gostava de ser mulher, teríamos caído em gargalhadas por uma piada tão ridícula. Mas agora é real. E a cultura do cancelamento não vai parar a menos que aqueles que estão sujeitos a ela revidem.
Adele, como nos ensina um dos maiores pensadores contemporâneos, Jordan Peterson, não pediu desculpas a uma turba sedenta de sangue e tampouco suavizou suas declarações.  
 
Toda vez que uma pessoa pede desculpas ou se ajoelha no confessionário dos jacobinos para algum tipo de “reeducação”, os tubarões bradam: “Veja, nós fizemos isso!”. E isso não é apenas ideológico, é também pessoal. Muitos saem de suas obscuras tocas em tempos de julgamentos, como o das bruxas de Salem ou mesmo no reinado de terror da Revolução Francesa. 
 Criaturas inúteis e parasitas de almas, essa gente mesquinha, no fundo, faria de tudo para trocar de lugar com os cancelados. 
Eliminando o brilho que incomoda, o ego dos abutres fica fortalecido. 
E sob o pretexto da justiça social, eles cometem ações irresponsáveis e até perigosas. Toda essa insanidade não vai parar até que lutemos e sejamos explícitos que não temos medo, que não vamos nos desculpar por quem somos ou por aquilo em que acreditamos. A cultura do cancelamento é uma ilusão que deve ser destruída.

Os espaços femininos são projetados para fortalecer, proteger e celebrar as mulheres por suas realizações. Quando influências culturais, como prêmios e conquistas, abandonam o prestígio específico do sexo, eles acabam por tirar a honra e o respeito que vêm de ser uma mulher realizada. Apesar das tentativas do BRIT Awards, que segue a nefasta agenda de gênero neutro de apagar a importância do sexo, Adele orgulhosamente defendeu as mulheres e disse ao mundo que ama como foi criada. Ao final de seu discurso, ela afirmou: “Estou muito orgulhosa de nós. Estou realmente muito orgulhosa”.

Eu também, Adele. Eu também. 

Leia também “Este homem é uma lutadora”

Ana Paula Henkel, colunista - Revista Oeste


domingo, 28 de fevereiro de 2021

Partido Comunista Chinês inaugura plano de resgate da masculinidade - Madeleine Lackso

Gazeta do Povo

O governo culpa professoras e a cultura pop pela geração de homens mimados e não assume os resultados da política de filho único.

Com toda certeza você já ouviu por aí reclamações de que a cultura pop e os avanços sociais das últimas décadas deixaram os homens "efeminados" e que precisamos urgentemente de um resgate da masculinidade. Agora descobrimos de onde vem essa ideia, diretamente do coração do Partido Comunista Chinês. O Ministério da Educação da China criou até um programa de fortalecimento da masculinidade nas escolas. A ideia é aumentar o número de professores homens e de atividades físicas dos meninos.

O Ministério da Educação da China acredita que o país passa por uma "crise de masculinidade", tema que foi abordado em maio na Conferência Consultiva do Partido Comunista Chinês. É de lá que saiu a ideia de um programa oficial para "prevenção da feminização de homens jovens". Os culpados agora são a cultura pop e mulheres professoras. Em outras ocasiões, já foram videogames, masturbação e falta de exercícios físicos.

Não é só na China que existe o fenômeno da instrumentalização política de características como masculinidade ou feminilidade, trata-se de algo comum em grupos autoritários de todos os tipos. Controlar a sexualidade alheia impondo padrões de certo e errado é uma fórmula certeira para manipular pessoas. É óbvio que o problema não é uma crise de masculinidade, é uma crise de gente querendo entrar para o exército chinês.

Os influencers aliados do governo fizeram publicações na rede social Weibo defendendo a ideia, mas até a mídia do próprio governo, a Xinhua News trouxe reportagens críticas. É difícil imaginar que meninos tão afeminados possam defender seu país quando uma invasão externa se aproxima”, postaram vários influencers. Foi criada até uma hashtag para debater o tema. Já faz alguns anos que o governo tem visto o fitness como boa alternativa de esporte nas escolas porque fortalece os jovens.

A China está colhendo frutos inesperados da política do filho único. O controle populacional foi o racionalmente esperado, mas o lado emocional das pessoas não foi levado em conta. A situação esdrúxula de poder ter apenas um filho mudou os relacionamentos familiares, criou pais apegados demais e filhos que os próprios chineses chamam de "geração mimada". Há, por exemplo, universidades que providenciam quartos para os pais ficarem hospedados ao lado dos filhos no campus.

 As aulas particulares de masculinidade, coaches de masculinidade e até acampamentos para aprender masculinidade já existem há tempos na China. Em Beijing, há até um acampamento que promete trazer a masculinidade perdida em até 7 dias. O modelo se espalhou pelo país e é especialmente popular entre os homens considerados mais mimados. Nem os especialistas chineses, que vivem num regime comunista rígido, têm coragem de chancelar a pataquada.

O que as famílias e os próprios jovens apontam objetivamente como sinônimo de "falta de masculinidade" é, por exemplo, ser lento para fazer lição de casa. Aliás, principalmente isso e preguiça de trabalhar. Uma pesquisa feita pelo governo em 2014 com 20 mil crianças mostrou que 2/3 dos meninos estavam abaixo da média acadêmica. Entre as meninas, a taxa é de 1/3. A diferença de performance pode ter relação também com as distorções da política de filho único.

Na cultura chinesa, é muito mais status ter um menino do que uma menina. Enquanto houve a lei restringindo o número de filhos a um por casal, eram muito comuns os abortos quando se sabia que era menina e até mesmo o abandono ou morte da criança recém-nascida. Existe um desequilíbrio no número de homens e mulheres na China, tendo muito mais homens, ao contrário de toda a história da humanidade, em que há uma pequena diferença de mulheres a mais. Mesmo assim, as mulheres são maioria nas universidades, 52%. Há 40 anos, eram 23% dos alunos.

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Homens mimados acham ser melhores do que realmente são, o Partido Comunista já sabe disso. O Exército chinês tem agora a geração mais mimada que já passou por lá, fruto de uma longa linhagem sob a política do filho único. Um regime populista sabe bem como lidar com homem mimado: finge que ele está certo e diz que o problema é um ataque generalizado à masculinidade. Por se achar melhor que os outros, o homem mimado vai espalhar a ideia e fazer de tudo para mostrar que ele é exceção, tem masculinidade sim.

As aulas no Beijing Real Boy's Club custam US$ 2 mil por semestre. Os meninos fazem atividades coletivas ao ar livre, lutam, cantam o hino nacional, louvam o partido comunista e entoam mantras como: "Eu sou um homem de verdade! O principal portador da família e da responsabilidade social no futuro! A espinha dorsal do povo chinês!". Também há jogos de palavras entre aluno e professor, como:
- Quem é o melhor? - grita o professor.
- Eu sou o melhor! - responde o aluno.
- Quem é o mais forte?
- Eu sou o mais forte!
- Quem você é?
- Um homem de verdade.

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Madeleine Lacsko, jornalista - Gazeta do Povo - VOZES  - MATÉRIA COMPLETA