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terça-feira, 16 de julho de 2019

Santas Casas - Denis Rosenfield


"A falência ronda boa parte delas. Para onde irão seus pacientes se fecharem as portas?"

O Estado de S. Paulo 
 
As Santas Casas de Misericórdia no Brasil são verdadeiramente santas”. Prestam inestimável serviço à população brasileira, não recebendo em contrapartida, do governo federal e de outras instâncias da Federação, a remuneração correspondente ao seu trabalho e seu mérito. São “santas” ainda por continuarem prestando um auxílio indispensável aos brasileiros, sob chuvas e trovoadas que ameaçam até mesmo sua sustentabilidade.

O número de hospitais filantrópicos no Brasil é impressionante: 2.172. Sua rede estende-se por todo o País. Em 968 municípios só ela presta atendimento hospitalar, não há outra opção. Saúde ali significa presença de um hospital da Santa Casa. Atende, portanto, cidades que, sem ela, estariam totalmente ao desamparo.
Não deixa de existir aí um paradoxo. O serviço prestado é claramente público, enquanto a sua fonte de financiamento estatal é insuficiente para cobrir os seus custos. Os hospitais filantrópicos cuidam dos mais desfavorecidos de forma deficitária, enquanto o Estado se faz ausente. E, como se sabe, não são poucos os desperdícios nos hospitais públicos. Há um notório desequilíbrio.

Para ter uma ideia do problema, dos seus 170.869 leitos, 126.883, ou seja, 74%, são destinados ao Sistema Único de Saúde (SUS). Isso faz o custo dos serviços prestados ao sistema público, em valores de 2018, elevar-se a R$ 24 bilhões, recebendo em contrapartida, mais para contra do que a seu favor, de receitas por serviços prestados, R$ 15 bilhões. O seu déficit é, portanto, de R$ 9 bilhões, aí já descontados os valores que as instituições usufruíram em isenções, sem as quais os déficits seriam ainda maiores.

O modelo é nitidamente insustentável, só podendo levar à insolvência. As crises só tendem, nesse sentido, a aumentar, por operarem esses hospitais filantrópicos com uma tabela do SUS claramente defasada. De fato, eles terminam cobrindo esse déficit, quando conseguem tal proeza, com as receitas de convênios privados e da prestação de serviço particulares. São os seus recursos próprios que estão financiando o SUS, exercendo eles uma função de Estado, enquanto este não cumpre sua própria função.

Há dois problemas em pauta. Um é o déficit de financiamento do sistema, que só pode ser resolvido com repasses públicos, principalmente por via de uma atualização da tabela do SUS que seja realista, de acordo com o atendimento público esperado; outro é a dívida acumulada pelo sistema, que só cresce se não for equacionada realisticamente, e com juros subsidiados.

O presidente Jair Bolsonaro foi sensível a esse problema. Soube receber os representantes dessas instituições, além de lhes ter prometido, em sua campanha eleitoral, atendimento especial. Pelo destino, quando recebeu uma facada, teve sua vida salva pela Santa Casa de Juiz de Fora (MG). Sem ela provavelmente não teria resistido. Pôde ele mesmo constatar a importância desse tipo de hospital filantrópico.

Agora Bolsonaro está cumprindo sua promessa com uma linha de financiamento especial, conduzida pela Caixa Econômica Federal. Seu custo é ainda relativamente alto em relação aos bancos privados, mas representa inegavelmente um avanço. Há ainda muito a fazer no que diz respeito a outras linhas possíveis de financiamento público, como o oriundo do FGTS, que, de tão altos os custos, não podem, por isso mesmo, por ora, contribuir para a solução desses problemas.

O que importa, porém, é que as discussões foram abertas, iniciativas foram tomadas e diálogos, estabelecidos. Por exemplo, o próprio presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, esteve pessoalmente visitando a Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, hospital, aliás, modelo pela gestão eficiente, pela racionalização de seus serviços e por seu atendimento de alta qualidade. Foi igualmente sensível às demandas do setor e pôde constatar in loco o benefício recebido pela população e a valorização do mérito, incentivada pelo seu qualificado quadro de dirigentes.

Contudo, conforme observado, o equacionamento das dívidas é uma parte deveras importante dos problemas dos hospitais filantrópicos. Essas primeiras medidas são da maior relevância, mas constituem apenas o início do caminho. O desequilíbrio estrutural permanece enquanto não for feita uma cada vez mais necessária revisão da tabela do SUS e não for dado o devido cuidado a repasses dos Ministérios da Saúde e da Educação. Sem essas medidas a própria existência dos hospitais filantrópicos estará ameaçada. O problema não tem nenhuma conotação ideológica, é simplesmente de aritmética!


Esclareçamos melhor essa defasagem. Desde o Plano Real até 2018 a tabela do SUS foi reajustada em 93,78%. O INPC/IBGE teve uma variação nesse período de 506,49%. E a variação do salário mínimo foi de 854%. Será que as Santas Casas merecem essa posição de patinhos feios? Será que não têm nenhum valor?  Note-se, ainda, que esses hospitais têm uma taxa muito elevada de internações de alta complexidade, em torno de 59,95%, destacando-se as de cardiologia, de quimioterapia, de cirurgias oncológicas e de transplantes. Para onde irão essas pessoas doentes se as Santas Casas se virem inviabilizadas na prestação desses serviços? E essas pessoas, em sua imensa maioria, não têm outra opção.

A abnegação e a dedicação de seus dirigentes são dignas de nota, por seus valores morais e religiosos. Lutam contra uma corrente que lhes é desfavorável. Têm sabido resistir. Entretanto, a falência ronda boa parte desses hospitais, alguns sofrendo a ameaça direta de fecharem as suas portas. Leitos faltam no País! O sistema hospitalar público é notoriamente ineficiente e caro. A população brasileira muito sofre com isso. Não seria o caso de se valorizar aqueles que estão efetivamente oferecendo um serviço público de qualidade a custos notoriamente inferiores?

Opinião - O Estado de S. Paulo

 
Fonte: “Estadão”, 08/07/2019

 

segunda-feira, 8 de julho de 2019

A agonia da saúde pública

Em cinco anos, 218 hospitais filantrópicos foram forçados a encerrar suas atividades




A Caixa Econômica Federal acaba de lançar uma linha de crédito no valor de R$ 3,5 bilhões destinada às Santas Casas de Misericórdia e hospitais sem fins lucrativos que prestam serviços ao Sistema Único de Saúde (SUS). A iniciativa vem se juntar ao programa de aprimoramento e gestão lançado recentemente pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, com dotação de R$ 1 bilhão. Ambos são bem-vindos, mas estão longe de ser suficientes para retirar as Santas Casas da UTI financeira na qual agonizam pela irresponsabilidade do poder público.

Financiadas com recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), as operações de crédito terão duas finalidades: uma voltada para capital de giro e outra para reestruturação, a primeira com prazo para quitação de 5 anos e a segunda, de 10 anos. Os empréstimos poderão ser solicitados até 2022 e terão taxas de juros de 8,66% ao ano, acrescidos de até 3% de spread bancário.

É um pequeno avanço em relação ao antigo programa Caixa Hospitais, que cobrava juros de 20% ao ano. É, porém, uma medida paliativa que alivia os sintomas, mas não ataca as causas da crise. Entre elas, a mais deletéria é a defasagem na tabela de procedimentos do SUS, que não é reajustada há 13 anos. Entre 1994 e 2018 a tabela foi reajustada em 93%, enquanto o Índice Nacional de Preços ao Consumidor aumentou 506%.

Muitos governantes, em especial os do PT, capitalizaram votos sobre o atendimento universal e gratuito fornecido pelo SUS. Mas isso foi financiado pela defasagem da tabela, a ponto de o governo cobrir hoje apenas 60% dos custos do sistema. Os outros 40% ficam por conta dos hospitais filantrópicos, entidades privadas sem fins lucrativos que se veem obrigadas a assumir dívidas a juros de mercado com os bancos. Só a Santa Casa de São Paulo paga mais de R$ 500 mil de juros por mês. Em 2005, a dívida dessas instituições era de R$ 1,8 bilhão, hoje ultrapassa R$ 20 bilhões.

Vale lembrar que todo o sistema público de saúde, ao qual recorrem 150 milhões de brasileiros, depende vitalmente dos hospitais filantrópicos, sem os quais ele desmoronaria. E, com efeito, está desmoronando devido às pressões financeiras impostas à rede hospitalar. Os hospitais sem fins lucrativos respondem por mais de 50% dos atendimentos do SUS e entre 60% e 70% dos atendimentos de alta complexidade. São mais de 2.000 entidades hospitalares, um terço do total de hospitais no País, que atendem pelo SUS em mais de 1.300 municípios, e em 968 deles a assistência hospitalar é realizada exclusivamente por elas. Os hospitais filantrópicos disponibilizam quase 130 mil leitos para o SUS, o que representa mais de 37% do total de leitos no Brasil. Nos últimos nove anos, contudo, cerca de 35 mil leitos de internação da rede pública foram desativados. Em cinco anos, 218 hospitais filantrópicos foram forçados a encerrar suas atividades, enquanto naqueles que sobrevivem se acentuam a precarização e a redução de muitos serviços.

Os recursos do FGTS são uma velha reivindicação dos hospitais filantrópicos. “O financiamento é barato, mas não vai resolver o problema”, disse o presidente da Confederação das Santas Casas, Edson Rogatti, por ocasião do lançamento do programa. “O que precisamos é de recursos de custeio para que possamos ter equilíbrio financeiro.”

No fim do ano passado a Comissão de Assuntos Sociais do Senado aprovou um parecer mostrando que todas as medidas tomadas até então eram insuficientes. Na última legislatura, diversos projetos de lei tramitaram, prevendo desde isenções tributárias à instituição de um Programa de Apoio à Assistência Filantrópica Social, mas todos foram engavetados. O autor do parecer, Dalirio Beber (PSDB-SC), fez na ocasião o alerta: “Se as Santas Casas e hospitais filantrópicos entrarem em colapso, levarão junto toda a rede pública de saúde, da qual depende a imensa população carente”. Com as nossas atuais políticas públicas, esse colapso é certo como a morte. É só questão de tempo.

Editorial - O Estado de S. Paulo