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segunda-feira, 25 de julho de 2022

Democracia é quando o Supremo manda nos idiotas (nós) - Gazeta do Povo

Foto de perfil de Bruna Frascolla

Bruna Frascolla

Ativismo judicial

O leitor não sabe o que é democracia? Democracia é quando o Supremo (Tribunal Federal) manda e os idiotas obedecem. 
Há algum tempo atrás, achava-se que nós, os idiotas, tínhamos direito a nos associar em partidos políticos e a votar em representantes. 
Mas vocês sabem como é: o povo não desconstruiu os preconceitos, vota em populistas de extrema direita, pratica discurso de ódio. 
Se o leitor não acredita, eu provo agora. Você, homem, gosta de mulher? Então você se sente no direito de dizer que não gosta de ter contato sexual com pênis alheio, não é? 
Pois bem: tem que desconstruir essa transfobia. O Supremo decidiu que transfobia é crime.  
Mulheres com pênis também são mulheres; negar isso é transfobia. Assim, é bom se emendar logo, se desconstruir, senão o Supremo te pega numa esquina da internet, em flagrante perpétuo. 
Macho que é macho gosta de mulher, tenha ela um pênis ou não. 
E gay que é gay tem que gostar de vagina, sim, se for a vagina de um homem trans.

Há muito o que desconstruir. Segundo uma lenda datada, o Brasil tem três poderes: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Os dois primeiros são eleitos; o último é que não. Por isso mesmo, o último não carrega a mácula de ter sido escolhido pelos idiotas e pode se portar como sua (nossa) palmatória. Só ontem, o Judiciário deu dois tapas na cara do Legislativo: em Curitiba, descassou o mandato do vereador Renato Freitas. Em Brasília, os ministros convidados deixaram o Senado a ver navios após serem convidados a responder sobre o ativismo judicial

O convite havia sido feito pelo senador Girão, do Ceará. Após o bolo, o senador tuitou: “ ‘SUPREMACIA’ SEM APREÇO AO PAÍS: Ministros Barroso e Moraes faltam a debate público, ignorando juristas na audiência histórica sobre ativismo do STF. Preferem palestras no exterior a dialogar no Senado brasileiro. Irei no caminho oposto: escalada democrática! Já tem outra reunião aprovada. Paz e bem!” (ajeitei a escrita truncada para caber nos limites de caracteres).

Paulo Eduardo Martins, deputado federal pelo Paraná, também fez um comentário certeiro: “Afinal, em termos de importância, o que é o Senado brasileiro diante de uma live com o Felipe Neto?”

Somos todos Felipe Neto. De fato, o Supremo tem suas preferências. O povo altivo não pode lhe cobrar satisfações por meio dos seus representantes eleitos – os senadores. 
 Mais apropriado é ir para os EUA e para a Europa ficar palestrando às elites sobre as ameaças populares à democracia. 
Mais apropriado é participar de live com o imitador de focas infantojuvenil. Ainda assim, volta e meia o Supremo se manifesta pelo Twitter a fim de esclarecer a plebe.

A última foi um videozinho ao estilo Tik Tok. O texto dizia: “Tá na dúvida sobre o que é liberdade de expressão ou discurso de ódio? A gente te ajuda”. Abaixo, uma mulher adulta, portadora da mesma idade mental duvidosa que Felipe Neto, decidia se ia para a esquerda ou para a direita. À esquerda, no topo, estava o dizer “discurso de ódio”; à direita, “liberdade de expressão”. No centro, na altura da barriga da mulher, aparecia a coisa a ser categorizada. A categorização era expressa pela caminhadinha, feita com caras e bocas. Eis as categorizações:

1) Discurso de ódio: propagar fake news; intolerância religiosa; preconceito racial; homofobia; manifestação de ódio.

2) Liberdade de expressão: respeitar a opinião alheia; manifestar sua fé; defender posicionamentos políticos; repassar informações verdadeiras.

Só mesmo gente com uma cabeça de Felipe Neto para aceitar que o vídeo tenha esclarecido algo. Todo Natal, as redes sociais ficam cheias de gente manifestando ódio às passas. No zap-zap, um sem número de “fenômenos sobrenaturais” completamente destituídos de aspecto político são repassados (eu mesma dei uma de faquichequer ao receber imagens de um homem que vendera a alma ao diabo e por isso andava entre os carros sem projetar sombra. Era só olhar com atenção que se enxergava a sombra fininha do homem; as sombras dos carros são mais visíveis por eles serem mais largos.) Agora há pouco apareceu no meu feed uma manchete da Folha segundo a qual Jorge Vercillo refuta Darwin e “nós” (quem?) somos extraterrestres
Se aceitássemos o videozinho como jurisprudência, entenderíamos que vídeos de chupa-cabra, diatribes natalinas contra as passas e teorias extravagantes de celebridades são discurso de ódio. 
Mas sabemos – eu, você e o STF – que não é assim. Portanto ou o STF mente, ou eu sou uma idiota por não conseguir apreender a sua lógica.


Eu, você e o STF sabemos que as categorias de "posicionamento político" e "racismo" não são mutuamente excludentes (o nazismo era um posicionamento político racista); "manifestação religiosa" e "homofobia" tampouco são mutuamente excludentes. Algumas manifestações políticas infringem normas criadas por legisladores eleitos brasileiros e bem aceitas pela sociedade brasileira: vide o caso da criminalização do racismo, pisoteada pela decisão do STF que permite cotas raciais.

Algumas manifestações políticas, porém, não infringem tais leis ("leis do legislativo", digamos), mas infringem a "jurisprudência do STF" (ou antes "lei do judiciário"). Esse é o caso da criminalização da homofobia. Na verdade, antes da canetada do STF, entendia-se como consequência legítima da liberdade religiosa o direito a condenar o dito "comportamento homossexual" dentro das igrejas. 

Condenação, aliás, milenar, enraizada na própria religião que deu origem ao nosso povo. Com que legitimidade o Supremo impõe de cima a baixo as suas convicções minoritárias e elitistas?

De todo modo, em nenhum caso listado no vídeo se encontra a situação de Daniel Silveira. 
Colocar-se a favor do AI-5 e do fechamento do STF é adotar um "posicionamento político".   
Este não é nem racista, nem homofóbico, nem afirma nenhum fato, de modo que tampouco é fake news.  
Caso se queira dizer que esse posicionamento político é fruto de ódio, resta perguntar se por acaso o Supremo não odeia todos aqueles que considere “radicais de extrema direita”.
 
Last, but not least, reafirma-se o Ministério da Verdade. Se o Supremo considera “discurso de ódio” toda informação falsa, e “liberdade de expressão” toda informação verdadeira, resta concluir que seus ministros têm sozinhos o poder de discriminar o que é verdadeiro e falso.  
Toda investigação científica ou jornalística poderá ser criminalizada ex post facto, já que no fim do processo investigativo descobre-se que alguém (às vezes o próprio cientista ou jornalista) adotara uma hipótese falsa. 
Se eu afirmei algo falso no passado, que todo o mundo achava ser verdadeiro (por exemplo, que o vírus da Covid só podia ter origem natural), isso faz de mim, e de todo o mundo, uma criminosa
O Supremo é, mesmo, o Onisciente, pois não está sujeito ao erro.

Creio que o canadense Mathieu Bock-Côté tenha sido bastante esclarecedor ao descrever o cenário com o qual estamos lidando: Ocidente afora, há um golpe em curso, no qual as elites trocam sorrateiramente a democracia liberal pela dita democracia diversitária. Nesta, não se admite a legitimidade da vontade popular; fala-se somente em termos de direitos fundamentais a serem assegurados por juristas de plantão. Diz ele: “A legitimidade democrática passaria, a partir de agora, por um reconhecimento da soberania do direito. Ainda mais porque os direitos vêm legitimar, na prática, um vasto empreendimento de engenharia social a ser exaltado, em oposição às instituições, tradições e aos costumes. Embora a soberania popular não tenha sido oficialmente abolida, é claro, encontra-se agora reduzida a uma porção mínima do poder político e já não está investida de nenhuma carga existencial. O poder democrático é condenado à impotência. Um constitucionalismo […] será chamado a exercer uma soberania sobrepujante sobre o corpo social, justamente para pilotar sua transformação igualitarista na linguagem do direito. […] Uma mudança de regime se realiza, sorrateiramente” (O multiculturalismo como religião política, p. 182).

Os partidos estão estrangulados; o Legislativo, desrespeitado de todas as maneiras possíveis. A discussão política está criminalizada. Mas ainda bem que temos democracia, porque o Supremo manda em nós e democracia agora é isso.

Bruna Frascolla é doutora em filosofia pela UFBa e autora de "As ideias e o terror" (República AF, 2020). Colabora com a Gazeta do Povo desde 2020.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Cunha, “the game is over”! Ou: Janot merece uma estrela vermelha no peito! Hoje e nos próximos dias, manifestações pedem que Cunha acolha a denúncia contra Dilma



Há uma hora em que as coisas não cabem dentro do molde institucional por mais lasso que este seja, por mais complacente que se mostre, por mais tolerante que se pretenda. E Eduardo Cunha (PMDB-RJ) é hoje esse conteúdo que já não encontra continente. O que se tem contra ele — com narrativa meticulosamente arranjada por Rodrigo Janot — não cabe no cargo de presidente da Câmara. Ele sabe que vai cair ao menos desse posto.

Se renunciar ao mandato, foge de uma das possibilidades da Lei da Ficha Limpa, mas perde o direito ao foro especial por prerrogativa de função. Seu caso vai para as mãos de Sergio Moro. Se paga pra ver, corre, sim, o risco de ser cassado, e ele cai no colo de… Sergio Moro.


O Ministério Público Federal trabalhou com impressionante rapidez no seu caso? Não resta a menor dúvida a respeito. Assim como é evidente que esse era um desdobramento de interesse do Planalto. 

Mas, por tudo o que se está a ver, explicitaram-se apenas atos que eram de sua responsabilidade. Para que o conjunto não passasse de invenção diante do que se tem, seria preciso que houvesse uma força organizada nas sombras só para distorcer a sua imagem. E ele sabe que isso não aconteceu.

É uma pena? É, sim! De vários modos. Em primeiro lugar, porque Cunha imprimiu um dinamismo que há tempos não se via na Câmara. Em segundo lugar, porque ele ajudou a enterrar a agenda petista da reforma política e, se me permitem a licença, da reforma do Supremo. Em terceiro lugar, porque, dada a conjuntura, é claro que a sua desgraça concorre, ainda que temporariamente, para a sobrevida de Dilma.

Nada disso, no entanto, é suficiente para que a sua permanência à frente da Presidência da Câmara seja defensável. E é fácil, insisto, chegar-se a essa conclusão: alguém poderia presidir a República com as evidências que há contra Cunha? [evidências não são provas; quanto ao que foi informado pelos delatores, quais foram as razões do Janot não ter a mesma celeridade com as acusações contras os filhos do Lula? contra o Renan?] A resposta é “não”! Alguém poderia presidir o Supremo com as evidências que há contra Cunha? A resposta é “não”! Logo, ninguém pode presidir a Câmara sem dar as devidas explicações.

E já está claro, a esta altura, que as explicações não existem. Aliás, para uma nota à margem: ninguém poderia presidir o Senado com os testemunhos premiados que há contra Renan Calheiros (PMDB-AL). Mas, como se nota, no seu caso, o Ministério Público Federal desacelerou, em vez de acelerar, a investigação.

Se Cunha chegou a ser visto, em algum momento, como um elemento catalisador do impeachment, isso acabou, mudou, inverteu-se, não é mais. Hoje, a sua presença na presidência da Câmara retarda, em vez de acelerar, as reações químicas do afastamento de Dilma.

Nesta terça, amanhã, Hélio Bicudo, Miguel Reale Jr. e Janaina Paschoal apresentam a nova denúncia contra a presidente da República, endossada pelos partidos de oposição e por movimentos que organizaram as três maiores manifestações políticas da história do Brasil. Enquanto Cunha permanecer à frente da presidência da Casa, só a ele caberá a palavra final sobre a aceitação primeira da denúncia, depois que ministros do Supremo houveram por bem manietar os opositores de Dilma, cassando-lhes o direito de recorrer ao plenário de uma recusa eventualmente decidida pelo presidente da Câmara.

Cunha recusando, pesará a suspeita de que busca fazer o acordo com o qual acenou Lula — um acordo que, o deputado deve saber, a esta altura, parece inútil. Se aceita a denúncia, dirão que o moribundo busca se vingar. Ainda assim, ele faria um bem ao país se, enquanto pode, deferisse o pedido e deixasse que o Congresso decidisse a sorte de Dilma. [é melhor ser acusado de vingador do que de ter feito um acordo com o famigerado PT e Lula.
detonando Dilma tudo fica mais fácil para Renan, até mesmo um retorno no estilo Renan Calheiros.]

Dê-se a mão à palmatória, não? Dado um governo de trapalhões; dado um PT completamente desarvorado; dado o casamento entre as crises econômica, política e de confiança, Janot soube jogar com um impressionante sangue-frio.  Não parece, tudo indica, que tenha atribuído a Cunha nada que este não tenha feito; não parece que tenha inventado nada; não parece que tenha contado nenhuma mentira… O fato é que está sendo o narrador de uma das maiores farsas políticas da história do país contando a verdade. Isso é plenamente possível.

Acho que há elementos para considerar que Cunha fez tudo aquilo de que o acusam. E, no entanto, obviamente, ele não era o chefão do petrolão, certo? Janot, mais do que a histeria dos petistas, mais do que a fanfarronice de Lula, mais do que as mentiras asquerosas dos sedizentes intelectuais, mais do que a violência retórica das esquerdas, Janot, ele mesmo, está sendo a garantia da sobrevida de Dilma no poder.

Por quanto tempo? Vamos ver. O Brasil é muito maior e muito mais complexo do que o ambiente de pequenos e grandes golpes de Brasília.  A Cunha, agora, só resta organizar a forma de sair de cena para se defender. The game is over.

Por:  Reinaldo Azevedo - Blog na VEJA