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sábado, 10 de junho de 2023

A suprema conversão - Augusto Nunes

Revista Oeste

Faz quatro anos que nenhum esquerdista brasileiro comete sequer pecados veniais

 

 Antonio Palocci, Gleisi Hoffmann e Lindbergh Farias | Foto: Montagem Revista Oeste/Divulgação

  Supremo Tribunal Federal marcou para a penúltima semana de junho a absolvição de Gleisi Hoffmann e Paulo Bernardo, os dois últimos figurões do Partido dos Trabalhadores ainda à espera da carteirinha de inocente já concedida pelo Egrégio Plenário aos demais acusados de envolvimento com o chamado Quadrilhão do PT.  
Entre o fim do primeiro mandato de Lula, ao longo do qual foram desviados mais de R$ 1,5 bilhão extorquidos dos pagadores de impostos, e este crepúsculo do outono a vida seguiu seu curso. O casamento de Gleisi e Paulo Bernardo acabou. 
Ele sumiu do palco principal depois de deixar o Ministério do Planejamento e Orçamento de Lula. Ela trocou o Senado pela Câmara dos Deputados, foi ministra durante o governo Dilma e hoje preside o PT. Voltarão a juntar-se na celebração de uma proeza e tanto: consumada a absolvição da dupla, o partido que virou organização criminosa poderá reivindicar de novo o status de ajuntamento político mais puro do mundo.
 
Entre o nascimento em 1980 e a roubalheira escancarada em 2005 pelas patifarias do Mensalão, a sigla parida pelo cruzamento de operários desprovidos de dúvidas com intelectuais grávidos de certezas caprichou na pose de detentora do monopólio da virtude
Eleito deputado federal, Lula avisou que não perderia outros quatro anos tentando consertar um Congresso infectado por no mínimo 300 picaretas. 
 
 Obcecado pela Presidência da República, perdeu três eleições seguidas para adversários que acusou de representarem “o Brasil da corrupção”. Vitorioso em 2002, o PT precisou de apenas três anos para reduzir a farrapos a velha fantasia. Confrontados com as torpezas do Mensalão, até bebês de colo entenderam que o templo das vestais era o mais obsceno dos bordéis.

Posse da senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR) como presidente do Partido dos Trabalhadores (5/7/2017) | Foto: Roberto Stuckert Filho

Não apareceu até agora um único e escasso inimigo de Jair Bolsonaro no inquérito das fake news ou no inquérito dos atos antidemocráticos. 
 As tribos da esquerda, portanto, não mentem, não conspiram nem querem conversa com golpistas. Mais de mil homens e mulheres capturados em Brasília no dia 9 de janeiro continuam usando tornozeleiras. Todos têm simpatia por Bolsonaro, juram os carcereiros. Os ex-deputados federais Daniel Silveira e Roberto Jefferson estão presos em regime fechado. Nenhuma gaiola hospeda algum político que tenha apoiado Lula. 
Eleito por mais de 340 mil cidadãos do Paraná, o ex-procurador federal Deltan Dallagnol teve o mandato cassado porque um ministro do TSE cumpre qualquer missão encomendada pelo padrinho. Deltan também ousou devolver à Petrobras parte da fortuna roubada por poderosos patifes. Lula já disse que não dormirá direito antes de foder gente assim. 

 

Flávio Dino, ministro da Justiça, Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, Geraldo Alckmin e Lula durante reunião com governadores | Foto: Ricardo Stuckert/PR

Julgado pelo Supremo em 2012, o bando de mensaleiros inaugurou o cortejo que engordaria a população carcerária com dezenas de devotos da seita que tem em Lula o seu único Deus. Não é pouca coisa, entusiasmou-se o Brasil que presta. 
E era só o começo, pareceu avisar a descoberta do Petrolão e reiteraram os altivos avanços da Operação Lava Jato. Pela primeira vez desde o Descobrimento, foi possível acreditar que a lei começara a valer para todos, e que havia vagas na cadeia para qualquer bandido da classe executiva, até para empreiteiros multibilionários, deputados, senadores, governadores, ministros, executivos cinco estrelas, até para um ex-presidente da República. 
Já não havia condenados à perpétua impunidade, imaginaram os profissionais da esperança. Se o mundo tivesse acabado naquele momento, caberiam no carrinho popular agora em gestação os dirigentes petistas poupados do fogo do inferno.
 
Mas no Brasil até o passado é imprevisível, confirmariam os anos seguintes. Assim, se o mundo acabasse neste momento, iriam direto para o céu — sem escalas, sem perigo, sem perder tempo com magistrados do Juízo Final — todos os brasileiros que ajudaram a premiar Lula com outro mandato, dos petistas de nascença aos recém-chegados ao grande clube dos cafajestes, dos comunistas carolas modelo Flávio Dino aos carolas nada santos como Geraldo Alckmin. 
Providos de um salvo-conduto com o selo do Pretório Excelso, todos se amparam no argumento devastador: faz quatro anos que ninguém no lado esquerdo do mapa político brasileiro tem de acertar contas com a Justiça. Desde 2019, por exemplo, o ministro Alexandre de Moraes acusa, indicia, processa, pune, prende e arrebenta por atacado. Já enquadrou centenas de suspeitos de todas as idades, classes sociais e sotaques regionais. Nenhum votou em Lula.

O fato é que desde 2019 meliantes que pareciam sem cura não são obrigados a comparecer à delegacia mais próxima, nem são fotografados de frente e de perfil. O fenômeno poderia configurar a maior conversão em massa da história caso resultasse, por exemplo, de um retiro espiritual conduzido pelos pregadores da CNBB. Seria igualmente animador se fosse fruto de longas reflexões durante a temporada na cela merecidamente providenciada pela Lava Jato. Quem acha que cadeia cura teria um argumento a mais. O problema é que não há na multidão de pecadores impunes que zanza por aí nada que se assemelhe, mesmo remotamente, à experiência vivida por São Paulo no caminho de Damasco. O que parece ter havido é a conversão do Supremo em Poder Moderador. Ou partido político.

Leia também “Ópera dos farsantes”

Augusto Nunes, colunista - Revista Oeste 


 

 

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

O supremo carcereiro só prende inocentes - Augusto Nunes

Revista Oeste

Para Moraes, nada é mais excitante que o estupro da Constituição e das normas legais 

A história se repetia todo sábado, sempre perto das 10 da noite. Só mudava a identidade da mulher que viera a pé de alguma vila habitada por famílias pobres para apertar a campainha da casa na Rua General Glicério. Ali morava o prefeito de Taquaritinga, e as visitantes sabiam que Adail Nunes da Silva, viciado em multidão, não estaria por lá, e sim no cinema, numa festa ou a caminho de outro baile. Mas não era ele o procurado. O nó a desatar requeria uma conversa com minha mãe, certamente entrincheirada na sala de estar. “Quero falar com dona Biloca”, ouvia um dos cinco filhos que se revezavam na ida ao portão. Eram raríssimos os que chamavam pelo prenome do cartório a professora Emilia Menino Nunes da Silva. Desde a infância ela foi Biloca, precedido por um “dona” só depois do casamento.

Marcel van Hattem, deputado federal | Foto: Reprodução/Redes Sociais

Marcel van Hattem, deputado federal -  Foto: Reprodução/Redes Sociais  

Um minuto mais tarde, a mulher já estava no meio do mesmíssimo enredo. Só eram diferentes os dois personagens. “Meu filho é um moço bom”, começava a mãe. “O problema é que ele conheceu faz pouco tempo uma gente ruim, deu de beber e agora anda se metendo em arruaça. Foi preso hoje porque um policial achou que é desordeiro. A senhora pode dar um jeito de soltar o menino?”. Dona Biloca acomodava a mãe aflita numa das cadeiras da varanda, empunhava o telefone de parede no canto da sala de jantar e ligava para a delegacia. Como o prefeito, também o delegado estava fora. Atendia um dos três policiais. Minha mãe reproduzia o que ouvira da mãe e pedia a restituição do direito de ir e vir. O policial explicava que só o chefe podia soltar ou prender alguém.

“Esse que foi preso é rapaz direito, pode acreditar na minha palavra”, insistia a mulher do prefeito. O homem da lei acabava cedendo. Em menos de dez minutos, um jovem devastado pela ressaca aparecia no portão da minha casa. Filho e mãe se abraçavam, diziam que Deus haveria de abençoar a responsável pela libertação e lá se iam de volta ao lar. A cada soltura irregular, dona Biloca ordenava aos filhos que não comentassem a ocorrência. “Com ninguém”, advertia. Preferia que o marido de nada soubesse apenas para evitar que o prefeito se considerasse devedor do delegado. Nunca se arrependeu de nenhuma intervenção no sistema carcerário. “Bêbado e arruaceiro não precisam ficar presos”, ensinava. “Cadeia é coisa para assassino, ladrão, bandido, gente perigosa.” Encerrava o assunto tentando conter, sem sucesso, o riso moleque de quem protagonizara alguma travessura.

Professora Emília Menon Nunes da Silva (dona Biloca) - 
Foto: Arquivo pessoal
Nesta quarta-feira, numa reunião em Brasília, Alexandre de Moraes quase conseguiu substituir a carranca exibida em aparições públicas por algo parecido com um sorriso. O que se viu foi um esgar, mas o tom de voz informou que Moraes estava eufórico. “Fiquei feliz com a fala do ministro Toffoli”, começou o especialista em atropelamentos da Constituição. (Dias Toffoli dissera que desde 6 de janeiro, quando ocorreu em Washington a invasão do Capitólio, foram detidos, em 50 Estados, 964 suspeitos de envolvimento no episódio.) Moraes entusiasmou-se: “Comparando os números, tem muita gente pra prender, e muita multa pra aplicar!”. 
A professora primária de Taquaritinga gostava de devolver o direito à liberdade a gente que incorrera em pecados veniais. 
O mais truculento ministro do Supremo Tribunal Federal parece flutuar sobre nuvens profundamente azuis quando pensa nas perversidades que praticou ou está prestes a consumar.
Na quarta-feira, com o país que pensa e presta ainda perplexo com a prisão de um líder indígena, Moraes se excitava com as iniquidades decorrentes de outro surto de autoritarismo patológico programado para 15 de dezembro. Entre o início da manhã e o fim da noite, por ordem do supremo carcereiro, a Polícia Federal cumpriu mais de 100 mandados de prisão, busca e apreensão em sete Estados e no Distrito Federal. 
 As alegações do ministro, redigidas em português indigente, sugerem que os alvos estão envolvidos de alguma forma em manifestações que contestaram os resultados da eleição presidencial, bloqueio de rodovias, atos antidemocráticos nas imediações de quartéis e outros sintomas de simpatia pelo presidente Jair Bolsonaro. Para o tirano togado, todas essas atrocidades figuram na categoria dos crimes hediondos.

Confiantes na onipotência da toga, resolveram mandar às favas os eleitos para o Executivo e para o Legislativo, e agora vêm ocupando sem resistência territórios proibidos

A selvagem sessão de torturas a que foram submetidos o Estado de Direito e a Constituição incluiu a censura de 168 perfis nas redes sociais, quebra de sigilo bancário, confisco de bens e a detenção de deputados estaduais, além da obrigação de usar tornozeleiras eletrônicas imposta a parlamentares proibidos até de descobrir quais delinquências lhes são atribuídas. 
 Nenhuma das numerosas ofensivas fora da lei lideradas por Moraes foi tão abrangente e atrevida. 
Nenhuma mostrou com tão chocante nitidez a ditadura da toga, a insolência do marechal sem farda, a sordidez dos cúmplices e a covardia dos incumbidos de reerguer instituições que contemplam de joelhos o triunfo da arrogância. 
No mundo da magistratura, por exemplo, até agora só o desembargador aposentado Sebastião Coelho parece ver as coisas como as coisas são. “Alexandre de Moraes deveria ser preso”, reiterou nesta semana.

A mudez dos líderes do Ministério Público foi rompida no começo da semana por Darcy de Sousa Filho, procurador-geral de Justiça de Minas Gerais. Ao discursar na cerimônia de entrega do cargo, Sousa propôs “o resgate do império da lei e da ordem democrática vilipendiada e atropelada pelo ditador de Brasília”. Dado o recado, dirigiu-se ao sucessor no cargo: “Que Vossa Excelência restabeleça o orgulho de ser promotor de Justiça e faça prevalecer as nobres e fundamentais prerrogativas do Ministério Público no processo acusatório, usurpadas pela autoridade apontada”. A salva de palmas da plateia avisa que a tropa formada por promotores e procuradores está pronta para o combate. A cara de paisagem das autoridades no palco reforçou a suspeita de que os generais flertam com a rendição sem luta.

Durante a sessão do Congresso desta quinta-feira, voltou a ecoar a voz solitária do deputado gaúcho Marcel van Hattem. “Esta situação de ruptura institucional não pode perdurar!”, afirmou o parlamentar do Partido Novo com os olhos postos no presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. “Um ministro e uma Corte não podem seguir atuando fora da lei e da Constituição. É papel do Congresso pôr fim ao arbítrio!”  Segundo o artigo 1º da Constituição, “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. 
 Os ministros do STF só precisaram do apoio de um presidente da República e do amparo de senadores escalados para uma sabatina tão temível quanto um chá de senhoras. 
 Confiantes na onipotência da toga, resolveram mandar às favas os eleitos para o Executivo e o para o Legislativo, e agora vêm ocupando sem resistência territórios proibidos. Resta ao povo brasileiro reagir com armas próprias. Grandes manifestações de rua, por exemplo, fazem milagres.

Em 2013, portentosas passeatas obrigaram o Congresso a funcionar com mais agilidade e juízo. Nesta virada de ano, poderão apressar a retomada do poder usurpado por gente que se instalou na sala do trono sem ter obtido um único e escasso voto popular.

Leia também “Um AI-5 de toga”'desequilíbrio entre os Poderes' fere a separação da União. 

Augusto Nunes, colunista - Revista Oeste