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quarta-feira, 15 de abril de 2020

Triste Brasil - Elio Gaspari

Folha de S. Paulo - O Globo

Nunca a elite nunca ofereceu um triste episódio como agora na pandemia -  É como se o Brasil tivesse virado um grande pernil e cada um vai lá para tirar sua fatia

Os barões da medicina privada querem falar de tudo, menos do colapso de hospitais do SUS

Atribui-se ao professor San Tiago Dantas uma observação mortífera: “A Índia tem uma grande elite e um povo de merda, o Brasil tem um grande povo e uma elite de merda”.  Com certeza, San Tiago disse que “vêm se processando há séculos no Brasil um trabalho social de contínua desorientação das ‘elites’, que as vai afastando do exame cultural e político dos valores nacionais”.

No discurso de posse que não viveu para ler, Tancredo Neves disse a mesma coisa: “Temos construído esta Nação com êxitos e dificuldades, mas não há dúvida, para quem saiba examinar a História com isenção, de que o nosso progresso político deveu-se mais à força reivindicadora dos homens do povo do que à consciência das elites”. Nunca a elite nacional ofereceu um triste episódio como o que os Três Poderes da República e boa parte do andar de cima vêm oferecendo diante da epidemia de coronavírus. (Ressalvada a doação de R$ 1 bilhão pelo Itaú Unibanco, a maior da história nacional.)

O Brasil foi um dos últimos países a abolir a escravidão. O século 20 teve 36 anos de ditaduras. Em 1978 o supermercado Carrefour foi expulso da Associação de Supermercados do Rio porque aceitava cartões de crédito. A ponte aérea Rio-São Paulo levou anos para dar aos seus passageiros acesso a programas de milhagem que existiam há mais de uma década. Os fazendeiros que insistiram em comprar escravos empobreceram. O supermercado que liderou a expulsão do Carrefour sumiu e o oligopólio das aéreas foi à guerra.

Sendo velho, o atraso poderia ter aprendido. Já morreram mais de mil pessoas e o oportunismo epidêmico do andar de cima agravou-se. O presidente da República diz que a Covid-19 é uma gripezinha, afrontando a ciência e a opinião pública. O ministro da Saúde é hostilizado pela charanga do Planalto porque defende o isolamento. Os inimigos de Bolsonaro passaram a ser seu ministro e os governadores de São Paulo e do Rio de Janeiro. Já à Covid, que está matando gente, ele deu compreensão. Do outro lado do balcão, a Câmara aprovou um pacote de ajuda aos estados que é visto como uma bomba fiscal, e o ministro da Economia avisa que o Executivo deverá vetá-lo.

Empresários beneficiados pelos programas federais provisórios defendem sua transformação em mimos permanentes. Fazem tudo isso sabendo que depois da epidemia virá a recessão.  É como se o Brasil tivesse virado um grande pernil e cada um vai lá para tirar sua fatia. Admita-se que todos têm razão, inclusive Bolsonaro com sua gripezinha. Se cada um continuar gritando, quem ganha é a Covid.

Os barões da medicina privada querem falar de tudo, menos do colapso de hospitais do SUS (que está carregando o piano). Falta que essas duas turmas conversem, partindo de uma premissa: “Eu não quero te quebrar, mas você não pode querer me matar”.

Todos os lados acham que têm razão, mas não conseguem conversar. À primeira vista pode-se achar que isso se deve à polarização bolsonariana. É pouco. Em 1830 o deputado Antônio Ferreira França apresentou um projeto de abolição gradual da escravidão. Ela acabaria em 1851. Acabou em 1888 porque havia gente interessada nisso. Há hospitais públicos recusando-se a admitir pacientes. Por quê? Porque chegam mortos.

Folha de S. Paulo - O Globo - Elio Gaspari, jornalista 


sábado, 17 de dezembro de 2016

Pernil pronto

A sociedade brasileira se esquece que muito mais eficaz do que criar leis seria aplicar as que existem

Países subdesenvolvidos, sobretudo em matéria de desenvolvimento mental, costumam ter em comum uma característica não muito lembrada: a espetacular quantidade de questões cretinas presentes nas discussões que fazem parte do seu dia a dia. O Brasil, que vive numa permanente competição mundial para ver quem fica com os piores lugares em praticamente todas as áreas da atividade humana, do tempo perdido pelo cidadão numa repartição pública à capacidade de lidar com a aritmética elementar, pode estar à beira do título de campeão neste quesito. Nada parece demonstrar tão bem nosso potencial de criar, engordar e consumir bobagens fora de série quanto essa história das “Dez Medidas” contra a corrupção, hoje debatida no mundo político, jurídico e vizinhanças com a intensidade das paixões mais tórridas

Ainda agora um ministro do Supremo Tribunal Federal, na situação de arruaça descontrolada que envolve atualmente o ato de fazer leis neste país, acendeu mais um holofote de escuridão em torno das tais medidas; mandou o Senado Federal devolver à Câmara dos Deputados o projeto que recebera dela, já aprovado, para novas discussões. Mais gritaria. Mais bate-boca. Mais desordem. Menos, e cada vez menos, algum sinal de vida inteligente nesta baderna política e legal.

O STF pode fazer isso? Não pode? A Câmara tem o direito de fazer emendas num projeto de lei? Quais? O que está certo? O que está errado? O público está recebendo neste preciso momento uma cordilheira completa de notícias, opiniões, análises e tudo mais sobre as aventuras e transmutações da “lei anticorrupção”; não há nenhuma necessidade, portanto, de castigar o coita do com mais prosa e verso sobre o assunto. Ele precisa menos ainda, Deus nos livre, de ser idiotizado com as hermenêuticas, e propedêuticas, e bobagêuticas que compõem a abordagem “jurídica” do tema.  

Este artigo apenas pede a devida “vênia” do leitor para registrar uma observação prática . O debate sobre as “Dez Medidas” já era incompreensível porque nunca fez sentido nenhum; agora fica garantido que continuará exatamente assim, mas com um carimbo do Supremo Tribunal Federal. Como pode fazer sentido um conjunto de providências contra a corrupção que não muda em nada, absolutamente nada, as condições que tornam a corrupção praticamente inevitável no Brasil? Seus defensores acham que a chave de tudo está em tornar mais pesadas as punições para quem rouba. Não percebem, apesar de todas as provas que recebem diariamente, que ninguém se assusta com as penas; a única coisa que realmente pode atrapalhar o ladrão é a redução das oportunidades de roubar. Nisso não se mexe uma palha. O erário público brasileiro continua sendo um imenso pernil, um dos maiores do mundo, pronto o tempo todo para ser fatiado; a situação, na verdade, só piora, pois quanto mais a autoridade pública se mete na vida do país, mais chances cria para corruptos e corruptores.

“Cadeia”, como se vê, não faz ninguém roubar menos. Nunca houve, em toda a história do Brasil, tanta gente investigada, processada, presa e condenada por corrupção como há no presente momento. Nunca se furtou tanto. Só nos últimos dias, a polícia prendeu professores por roubo de bolsas de estudos, no Rio Grande do Sul, fez um rapa na prefeitura de Itu, em São Paulo, por ladroagem no filão imobiliário, prendeu a prefeita e outros peixes gordos em Ribeirão Preto – em suma, é algo que simplesmente não para mais, saiu fora de qualquer controle e está contaminando um número cada vez maior de áreas. 

Hoje se vai em minutos do primeiríssimo escalão da República a tudo quanto é prefeitura de interior, da venda de alvarás ao roubo de bolsas de estudo – sim, mete-se a mão até nisso, bolsas de estudo. Enquanto as malas de dinheiro vivo voam de um canto para o outro, ferve o debate nacional, gravíssimo, sobre a criação de mais dez regras contra a roubalheira. O que se pode esperar de bom numa situação dessas? A sociedade brasileira continua enganando a si mesma com a ideia de que vai resolver problemas através da criação de novas leis – e se esquece que muito mais eficaz do que isso seria, modestamente, aplicar as leis que já existem. Que leis novas tiveram de ser criadas para permitir a atuação e o funcionamento da Operação Lava Jato? Nenhuma. O que houve aí foi unicamente vontade, coragem e competência para se aplicar as regras existentes. É, justamente, o que está faltando.

Por: J R Guzzo -  Coluna do Augusto Nunes - VEJA