O triste é perceber que os partidos de esquerda carecem de propostas
As democracias e os valores democráticos estariam em crise terminal?
Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, em livro recente, aventuraram-se a
apresentar uma reflexão sobre como as democracias morrem. Ora, há poucas
décadas, sobretudo depois da desagregação do socialismo soviético, em
1991, a democracia parecia destinada a ser o ponto de chegada da
história mundial. O que teria acontecido? A ascensão do autoritarismo, sob diversas formas, de direita e de
esquerda, desenvolve-se em diferentes contextos e, em cada região ou
país, suscita interpretações próprias. Seria ousado propor uma
explicação geral para o fenômeno.
Consideremos, porém, o caso da Europa, em particular, onde é visível a
popularidade do autoritarismo de direita. Na Polônia, na Hungria e na
Eslováquia, governos direitistas dão as cartas. Na Itália e na Áustria,
forças extremadas de direita, em coligação, acedem ao governo. Na
França, há anos, ela só tem sido vencida por votos de uma ampla e
informal frente democrática.
Até mesmo em sociedades do “bem-estar social”, como Inglaterra, Holanda,
Bélgica, Suíça, Dinamarca e Suécia, a tentação autoritária de direita
aparece com força. É o caso também da Alemanha, onde, nas últimas
eleições, ingressou no Parlamento um partido de extrema-direita, embora
minoritário. Seria razoável igualar estas tendências a uma nova “onda
marrom” (cor do uniforme usado pelas SA, os Sturmabteilung, milícias
nazistas dos anos 1930)? Um renascimento do nazifascismo sob novas
formas? Enquanto se trava o debate conceitual, seria importante
considerar alguns aspectos relevantes.
Comecemos pelo fato de que as propostas ultraconservadoras, mesmo depois
da II Guerra Mundial, permaneceram vivas e bem vivas na Europa. No
ocidente do continente, a Guerra Fria impediu políticas sérias de
desnazificação. Na Europa oriental, as mal chamadas “democracias
populares” existiam em virtude da ocupação das tropas soviéticas. Assim,
ideias e movimentos de extrema-direita ficaram fermentando, à espera e à
espreita de circunstâncias propícias. Estas desenharam-se com a subversão radical de valores introduzida pela
grande revolução informática, desde os anos 1960. Da organização da
economia às instituições políticas, da configuração das classes sociais
aos valores culturais, um verdadeiro terremoto aconteceu, abalando
certezas, instaurando o medo. Grandes contingentes populacionais
passaram a ter dificuldade em se encontrar num mundo que mudava numa
velocidade imprevisível. Desamparados pelos partidos tradicionais — de
direita e de esquerda —e pelas instituições vigentes, tenderam a
encontrar em discursos simplistas respostas para seus anseios e
angústias.
Por outro lado, os imigrantes, que haviam desempenhado papel vital no desenvolvimento econômico dos anos 1950-1960, assimilados pela prosperidade europeia, passaram a ser percebidos com hostilidade, gerando uma espécie de “pânico identitário” (expressão de Daniel Bensaid, citado por Michel Lowy em recente artigo), um outro poderoso nutriente das direitas.
O triste é perceber que os partidos de esquerda carecem de propostas. [felizmente.] Ou
conciliam com os interesses dos grandes capitais financeiros ou cedem
ao canto de sereia dos nacionalismos, um terreno armadilhado que não é o
seu. Em ambos os casos, abandonam o caminho de uma Europa dos
trabalhadores, única saída comprometida com a justiça social e à
democratização da democracia, uma terceira margem, alternativa ao
domínio atual da especulação financeira e à onda marrom.
Daniel Aarão Reis - O Globo