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sábado, 9 de maio de 2020

A marcha dos camisas pardas – Editorial - O Estado de S. Paulo

Um grupo de brucutus apoiadores do presidente Jair Bolsonaro – chamados “300 do Brasil” – armou acampamento no entorno da Praça dos Três Poderes para organizar uma invasão ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal (STF). Os camisas pardas do bolsonarismo, que agora vestem verde e amarelo e roupas camufladas, programam uma marcha sobre Brasília neste fim de semana. “Nós temos um comboio organizado para chegar a Brasília até o final desta semana. Pelo menos uns 300 caminhões, muitos militares da reserva, muitos civis, homens e mulheres, talvez até crianças, para virem para cá e darmos cabo dessa patifaria”, ameaçou Paulo Felipe, um dos líderes da milícia acampada, em vídeo divulgado em uma rede social.

A palavra “patifaria” não foi escolhida ao acaso. Resulta de uma irresponsável incitação. No dia 19 de abril, dirigindo-se a apoiares reunidos em frente ao Quartel-General do Exército, em Brasília, o presidente Jair Bolsonaro exortou a súcia que pedia o fechamento das instituições democráticas a “lutar” com ele. “Nós não queremos negociar nada. Nós queremos é ação pelo Brasil. Acabou a patifaria!”, bradou Bolsonaro, como se estivesse prestes a descer da Sierra Maestra, e não de uma caminhonete transformada em palanque.

Segundo o portal Congresso em Foco, outro que está por trás da gravíssima ameaça de assalto ao Congresso e à Corte Suprema é Marcelo Stachin, um dos líderes da campanha de formação da Aliança pelo Brasil, partido que o presidente Jair Bolsonaro pretende criar para chamar de seu. Ainda não se sabe quando, e se, a Aliança pelo Brasil cumprirá os requisitos legais e será autorizada pelo Tribunal Superior Eleitoral. Fato é que a agremiação está muito mais próxima de um movimento golpista do que de um partido político.

Nos regimes democráticos, em especial em democracias representativas  como é o caso do Brasil, os partidos políticos são as organizações por meio das quais os cidadãos participam da vida pública para contribuir na construção daquilo que em ciência política se convencionou chamar de “vontade do Estado”. Como se afigura, a Aliança pelo Brasil pretende o exato oposto, qual seja, eliminar qualquer possibilidade de diálogo para a formação daquela vontade. Assumindo a ação direta, como a criminosa intentona em Brasília, assemelha-se à tropa de segurança do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, criada em 1920 e precursora da temida Sturmabteilung (SA), a Seção de Assalto de triste memória. Quem duvida que veja as imagens das agressões dos camisas  pardas a enfermeiras e jornalistas. [nada justifica comparar apoiadores do presidente Bolsonaro com as SA de 
Ernst Röhm - até mesmo no aspecto comportamental.
Também a comparação efetuada no parágrafo abaixo, atribuindo caráter golpista a determinado comportamento,é sem nenhuma fundamentação, até mesmo por não objetivo do Aliança pelo Brasil, ainda em formação, assumir o poder pela via golpista.] 

Na essência do movimento de formação da Aliança pelo Brasil, defendido e liderado por alguns dos que estão acampados em Brasília a ameaçar o Congresso e o STF, estão todos os elementos que identificam um movimento golpista, e não um partido político: 
a evocação a um passado mítico e glorioso; 
a propaganda (não raro disseminando informações falsas ou distorcendo fatos); 
o anti-intelectualismo; 
a vitimização de Jair Bolsonaro, tratado como um bom homem cercado de “patifes” por todos os lados, o “sistema”; 
o apelo a uma noção de “pátria” por meio da apropriação dos símbolos nacionais; e, por fim, 
a ação pela desarticulação da União e da sociedade. 

O que pode ser mais desagregador do que um movimento que ameaça partir para a ação violenta com o objetivo de fechar a Casa de representação do povo e a mais alta instância do Poder Judiciário? Não por acaso, o STF tem despertado especial revolta entre os camisas pardas do bolsonarismo. Classificada pelo tal Paulo Felipe como uma “casa maldita, composta por onze gângsteres”, a Corte Suprema tem se erguido em defesa da Constituição contra os avanços autoritários do presidente Jair Bolsonaro.
Um ato golpista desse jaez, cujos desdobramentos são imprevisíveis, é repugnante por si só e merece imediata condenação por todas as forças amantes da lei e da liberdade no País, em especial as Forças Armadas, citadas nominalmente tanto pelo presidente como por alguns dos líderes da ação golpista. É ainda mais acintoso porque toma justamente o local que representa a essência desta República para urdir um ataque aos Poderes Legislativo e Judiciário. Terá esse episódio mais uma vez o apoio explícito do chefe do Poder Executivo?

 Editorial - O Estado de S. Paulo


sábado, 20 de abril de 2019

A onda marrom na Europa

O triste é perceber que os partidos de esquerda carecem de propostas


As democracias e os valores democráticos estariam em crise terminal? Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, em livro recente, aventuraram-se a apresentar uma reflexão sobre como as democracias morrem. Ora, há poucas décadas, sobretudo depois da desagregação do socialismo soviético, em 1991, a democracia parecia destinada a ser o ponto de chegada da história mundial. O que teria acontecido? A ascensão do autoritarismo, sob diversas formas, de direita e de esquerda, desenvolve-se em diferentes contextos e, em cada região ou país, suscita interpretações próprias. Seria ousado propor uma explicação geral para o fenômeno.
Consideremos, porém, o caso da Europa, em particular, onde é visível a popularidade do autoritarismo de direita. Na Polônia, na Hungria e na Eslováquia, governos direitistas dão as cartas. Na Itália e na Áustria, forças extremadas de direita, em coligação, acedem ao governo. Na França, há anos, ela só tem sido vencida por votos de uma ampla e informal frente democrática.
Até mesmo em sociedades do “bem-estar social”, como Inglaterra, Holanda, Bélgica, Suíça, Dinamarca e Suécia, a tentação autoritária de direita aparece com força. É o caso também da Alemanha, onde, nas últimas eleições, ingressou no Parlamento um partido de extrema-direita, embora minoritário. Seria razoável igualar estas tendências a uma nova “onda marrom” (cor do uniforme usado pelas SA, os Sturmabteilung, milícias nazistas dos anos 1930)? Um renascimento do nazifascismo sob novas formas? Enquanto se trava o debate conceitual, seria importante considerar alguns aspectos relevantes.

Comecemos pelo fato de que as propostas ultraconservadoras, mesmo depois da II Guerra Mundial, permaneceram vivas e bem vivas na Europa. No ocidente do continente, a Guerra Fria impediu políticas sérias de desnazificação. Na Europa oriental, as mal chamadas “democracias populares” existiam em virtude da ocupação das tropas soviéticas. Assim, ideias e movimentos de extrema-direita ficaram fermentando, à espera e à espreita de circunstâncias propícias. Estas desenharam-se com a subversão radical de valores introduzida pela grande revolução informática, desde os anos 1960. Da organização da economia às instituições políticas, da configuração das classes sociais aos valores culturais, um verdadeiro terremoto aconteceu, abalando certezas, instaurando o medo. Grandes contingentes populacionais passaram a ter dificuldade em se encontrar num mundo que mudava numa velocidade imprevisível. Desamparados pelos partidos tradicionais — de direita e de esquerda —e pelas instituições vigentes, tenderam a encontrar em discursos simplistas respostas para seus anseios e angústias.
O processo acirrou-se com a crise econômico-financeira iniciada em 2008. Pagaram pelos custos da superação do desastre os trabalhadores e os assalariados em geral. Pagaram com desemprego, subemprego, salários aviltados e serviços públicos degradados. Já os capitais financeiros, responsáveis diretos pela crise, receberam subsídios, estímulos, proteção e cobertura dos respectivos governos. Aprofundou-se o quadro de desespero, amargura e ressentimento. Caldo de cultura favorável aos demagogos direitistas.

Por outro lado, os imigrantes, que haviam desempenhado papel vital no desenvolvimento econômico dos anos 1950-1960, assimilados pela prosperidade europeia, passaram a ser percebidos com hostilidade, gerando uma espécie de “pânico identitário” (expressão de Daniel Bensaid, citado por Michel Lowy em recente artigo), um outro poderoso nutriente das direitas.
 
O triste é perceber que os partidos de esquerda carecem de propostas. [felizmente.] Ou conciliam com os interesses dos grandes capitais financeiros ou cedem ao canto de sereia dos nacionalismos, um terreno armadilhado que não é o seu. Em ambos os casos, abandonam o caminho de uma Europa dos trabalhadores, única saída comprometida com a justiça social e à democratização da democracia, uma terceira margem, alternativa ao domínio atual da especulação financeira e à onda marrom. 
 
Daniel Aarão Reis - O Globo