Não cometeu crime inafiançável porque não torturou ninguém, não
traficou drogas e não participou de nenhum ato terrorista. Não praticou
qualquer ação armada contra a ordem legal, nem fez algum gesto racista.
Não cometeu latrocínio, nem extorsão sob ameaça de morte, nem sequestro.
Não estuprou, nem atentou contra o pudor.
Não envenenou água potável.
Não fez tentativa de genocídio.
Em suma: não é autor de nenhum dos
crimes que a lei relaciona como inafiançáveis, e que permitiriam a
prisão em flagrante de um deputado – que tem, de qualquer jeito, de ser aprovada pela Câmara como acabou sendo, e por vasta maioria. É a única maneira de se prender um deputado no Brasil – não há outra. Isso é o que está escrito no artigo 53 da Constituição Federal, mas, no Brasil-2021, o que vale não é o que está escrito na Constituição, e sim o que está na cabeça dos 11 ministros do STF. Para eles, um vídeo em
que o deputado detona uma carga concentrada de desaforos contra o STF é
um “crime inafiançável”. E por que o flagrante, já que ele não foi
detido pela polícia enquanto estava gravando?
Os ministros apresentaram
sua doutrina a respeito: um vídeo de internet é uma espécie de
“flagrante perpétuo”, que não pode mais ser desmanchado depois que foi
feita a gravação. O produtor do filme ...E o Vento Levou, por
exemplo, poderia ser preso em flagrante se o STF julgasse que ele
cometeu algum crime – racismo, talvez – na sua obra? O filme é de 1939,
mas, se o flagrante é perpétuo, a “flagrância”, como dizem os juristas,
teria de durar para sempre, não é mesmo? Eis aí onde estamos.
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O
que o deputado fez, na frente de todo mundo, foi um dos destampatórios
mais primitivos jamais registrados na longa história de calamidades do Congresso Nacional, com ataques aos ministros e elogios ao AI-5
do regime militar. Mas, foi um discurso, e não outra coisa – quer
dizer, palavrório e xingação de mãe, mas sem nenhum ato concreto ligado a
nada do que disse. É o que se chama no dicionário de “opinião” – no
caso, opinião grosseira e da pior qualidade. Mas grosseria não é crime, e
sim falta de educação. A lei também não obriga ninguém a ter opiniões
de boa qualidade, nem proíbe que um cidadão goste do AI-5; muita gente
gosta, aliás. É motivo suficiente, isso sim, para o deputado receber da
Comissão de Ética e do plenário da Câmara as punições mais pesadas que a
lei permite: suspensão ou cassação do mandato, caso os colegas
considerem que Silveira violou os seus deveres como parlamentar. É, por
sinal, o que parte deles já está organizando.
O STF, se a
“separação de poderes” valesse alguma coisa – e os fatos mostram que ela
está valendo cada vez menos –, não teria de prender ninguém, e sim
pedir providências a quem de direito, ou seja, à própria Câmara dos
Deputados. É estranho que se comporte, ao mesmo tempo, como vítima,
polícia, promotor e juiz. Mais ainda, transforma em grave ameaça à
democracia nacional um deputado que não tem liderança nenhuma no seu
próprio partido, e muito menos na Câmara, que não chefia ninguém nem
comanda organização alguma, armada ou não – um clássico criador de
nadas, e não um perigo público que justifique o desrespeito à
Constituição para ser contido. O STF age como se estivesse salvando o
Brasil do abismo; está apenas rolando na calçada com Daniel Silveira.
Esse tumulto acontece justo na hora em que o mesmo STF devolve o mandato ao senador pego (este sim, em flagrante) com R$ 33 mil escondidos na cueca. Mas aí é caso de ladroagem – e isso, no Brasil de hoje, não é problema.[se ladroagem fosse problema no Brasil, Lula e Zé Dirceu, os dois condenados por vários crimes de ladroagem, com confirmação em várias instâncias, não estariam soltos, livres, gozando de completa liberdade. Diferença entre os dois e o deputado DANIEL SILVEIRA: o deputado é apoiador do presidente Bolsonaro - sempre apoia, portanto, está em flagrante perenemente possível.]
JR Guzzo, jornalista - O Estado de S. Paulo