A imprensa não entendeu a realidade evidente: a
maioria dos brasileiros pensa o contrário do que pensam jornalistas e os donos
dos veículos de comunicação
Publicado
na edição impressa de VEJA - J R Guzzo
É fácil
saber o que aconteceria com uma empresa de ônibus que vende nos seus guichês da
rodoviária de São Paulo uma passagem para Belo Horizonte, por exemplo, e leva o
passageiro para Piracicaba. Vive fazendo isso, aliás, pois a sua grande
dificuldade é anunciar no letreiro a cidade para onde o ônibus realmente está
indo. O que aconteceria é o seguinte: os passageiros, um dia, não iriam mais
viajar com essa companhia para lugar nenhum. Chega, diriam eles — assim não dá
mais. Da mesma forma, se uma pessoa costuma lhe dizer coisas que nunca
acontecem, ou simplesmente vive contando mentiras, o mais provável é que você
deixe de prestar atenção no que ela diz.
Num processo na Justiça, igualmente,
uma alegação falsa feita por uma das partes pode lhe causar sérios problemas:
todo o resto da sua versão passa a correr o risco de ficar sob suspeita. Para
sorte de muita gente, porém, nem tudo funciona assim. A memória dos seus
clientes é mais tolerante, ou mais fugaz — e, portanto, mais disposta a
esquecer que lhes disseram uma coisa que não aconteceu, ou disseram uma coisa e
aconteceu outra, ou, ainda, que aconteceu justamente o contrário do que lhes
foi dito que iria acontecer. Faz parte dessa gente de sorte, hoje em dia, a
mídia brasileira.
Mas será
mesmo sorte — ou, ao contrário, é um problema cinco-estrelas que ninguém está
vendo direito? Os leitores, ouvintes e telespectadores podem estar em relativo
silêncio, mas há sinais de que a tolerância do público a pagar passagens para
uma cidade e ser depositado em outra está deixando de ser uma proteção
garantida para a imprensa. Ninguém reclama em praça pública — mas o consumidor
de informação nunca reclama em praça pública. Um dia ele simplesmente vai
embora, sem dizer até logo, e não volta mais. Quando os proprietários de órgãos
de comunicação, e os jornalistas que trabalham neles, percebem o que aconteceu,
já é tarde. A menos que tenham o suporte de uma fortaleza financeira em seu
conjunto de negócios, podem encomendar o caixão — e os cemitérios brasileiros
de jornais, revistas, rádios, televisões e, ultimamente, páginas eletrônicas
que se imaginavam a última palavra em matéria de jornalismo moderno estão cada
vez mais lotados. A diminuição do público interessado em acompanhar o que a
mídia lhe diz não começou agora, é claro. Há dez ou quinze anos a migração
passou a ganhar volume — e não parou mais, por motivos que já foram explicados
em milhões de palavras, a maioria delas, aliás, lida por bem pouca gente.
(...)
Para que
ficar tentando esconder a realidade? O que acaba de acontecer na eleição, muito
simplesmente, foi o maior fiasco que os meios de comunicação brasileiros já
viveram em sua história recente. É melhor assinar logo o boletim de ocorrência,
admitir que alguma coisa deu horrivelmente errado e pensar, talvez, se não
seria o caso de averiguar quais falhas foram cometidas. Por que a mídia ignorou
a lista de desejos, claríssima, que a maioria da população estava apresentando
aos candidatos? Por que não tentou, em nenhum momento, entender por que um
número cada vez maior de eleitores se inclinava a votar em Jair Bolsonaro?
Durante meses seguidos, os comunicadores brasileiros tentaram provar no
noticiário que coisas trágicas iriam acontecer para todos se Bolsonaro
continuasse indo adiante — mas nunca pensaram na possibilidade de que milhões
de brasileiros estivessem achando que essas coisas trágicas, justamente essas,
eram as que consideravam as mais certas para o país. A mídia, na verdade,
convenceu a si própria de que não estava numa cobertura jornalística, e sim
numa luta do bem contra o mal. Em vez de reportar, passou a torcer e a
trabalhar por um lado na campanha, convencida de ter consigo a “superioridade
moral”. Resultado: disputou uma eleição contra Jair Bolsonaro e perdeu, por
mais de 10 milhões de votos de diferença. "A
diminuição do público interessado em acompanhar o que a mídia lhe diz não
começou agora. Há dez ou quinze anos a migração passou a ganhar volume”
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