Coluna no UOL
Tem
gato na tuba. Engula quem quiser a história de que Dias Toffoli,
presidente do Supremo, foi surpreendido por Jair Bolsonaro. Se foi, que
emita, então, uma nota de protesto por ter sido submetido ao ridículo —
ele e o tribunal que preside. Ele e o tribunal que representa. O
STF não é um puxadinho do Palácio do Planalto. A ser verdade a versão
que circula por aí — segundo a qual o ministro não estava no prédio,
dirigindo-se para o local porque receberia a visita de Bolsonaro —, em
nada fica melhor o retrato do presidente do Supremo. Como, segundo essa
narrativa, não havia encontro nenhum agendado, cabia a Toffoli indagar, e
eles têm intimidade para isto, qual era a agenda. Afinal, o presidente
queria falar sobre o quê?
"Ah, estou aqui com um grupo de
empresários e quero levá-los aí... " De novo: "Para quê, Jair (suponho
que se tratem pelo prenome)?" E então, com honestidade mínima, Bolsonaro
lhe diria que eles iriam pedir a abertura imediata da economia, quando
as mortes alcançaram o patamar de 600 ocorrências por dia, com o colapso
chegando ou já tendo chegado a várias capitais. No Rio, a fila de
espera para leitos de UTI chega perto de 500 pessoas. Se Toffoli
foi mesmo engando por Bolsonaro e não sabia que estava participando de
uma "live" para suas milícias digitais, que esclareça, então, em nota,
lamentando o fato de ter caído numa espécie de cilada.
Não se
falou sobre vítimas da doença no encontro. Os mortos foram um tema
ausente. Quando se recorria à expressão "UTI", tratava-se de uma
metáfora para aludir à economia. Isso, reitero, quando estamos no
patamar das 600 ocorrências fatais por dia. Raramente senti tanta
vergonha de ser brasileiro. Ou, por outra, de saber que compatriotas
meus são capazes de fazer discurso tão pusilânime.
O encontro
ocorre um dia depois de o próprio ministro da Saúde, Nelson Teich, ter
admitido que, em certos lugares do país, será preciso recorrer mesmo ao
lockdown, o que já acontece em São Luís, Belém e áreas próximas. Muitas
pessoas estão morrendo em casa. As evidências de subnotificação nos
envergonham. Ninguém pode estar contente com a situação, mas, então, que
apresentem uma alternativa que não seja sinônimo de mandar milhares de
pobres e pretos para as covas coletivas, em caixões empilhados.
Bolsonaro
é, sim, um líder muito mais influente do que gostamos de admitir. É ele
a matriz desse comportamento e desse sentimento que dá de ombros para a
tragédia, transformando a morte em mero dano colateral do tal
"funcionamento da economia", como se fôssemos obrigados a escolher entre
uma coisa e outra. Tivesse havido o isolamento social na proporção
adequada, e talvez estivéssemos mais prontos para sair dele.
É
impressionante que um presidente do Supremo receba um presidente que não
tem proposta nenhuma, que não respeita nem mesmo as orientações de um
ministro da Saúde que foi escolhido a dedo para chegar lá e dizer: "O
diabo não é tão feio como se pinta". Mas não há como o catatônico Teich
fazer essa afirmação porque sua carreira ainda não acabou. Será
desmoralizado pelos números. E ele terá de trabalhar depois do fim do
governo. Ainda que seja hoje mais empresário do que médico, sobraram
resquícios de sua ética profissional.
Se a alguns a resposta de
Toffoli ao presidente pareceu dura, é puro erro de interpretação. O que
se viu foi a ressuscitação do tal "Pacto entre os Poderes", coisa que,
até agora, não sei o que significa e que, por óbvio, ninguém jamais
saberá. A menos que alguém se apresente para esse tipo de encontro
garantindo que, por algum tempo, vamos ignorar a lei em favor daquilo
que o Poder Executivo, ou outro ente qualquer, considera eficiência.
Essa
ida destrambelhada de Bolsonaro ao Supremo, naquela Marcha dos
Mascarados, é das coisas mais patéticas, quem sabe a mais, de que eu e
qualquer um temos memória pessoal e histórica.
(.....)
E a culpa pelas iniquidades, claro!, é do isolamento social.
Reinaldo Azevedo, jornalista - Blog UOL