Instituições não morrem de morte
morrida, morrem de morte matada – e raramente de forma
abrupta. Fenecem (ou se atrofiam) gradativamente, ao longo de um processo pontilhado
pelo desprezo de alguns e pela prepotência de outros. E, sobretudo, por
agressões e traições ao seu espírito. Por ações e omissões da parte dos
dirigentes e representantes aos quais incumbe zelar pelos papéis que as
distinguem, mas que em vez disso acabam contribuindo para a descaracterização
deles.
Para bem fixar o sentido da
afirmação acima peço licença para fazer dois esclarecimentos preliminares. O primeiro é
que esta reflexão carece de sentido para extremistas de direita ou de esquerda.
Para os adeptos do fascismo (e do populismo, seu primo pobre latino-americano),
o que importa é a vontade do líder, do Führer, nunca os “formalismos vazios” que os liberais chamam de “instituições”. Numa linha muito própria, o conceito de política
empregado pelos comunistas e seus companheiros de viagem tem pouco ou nada que
ver com instituições; mal se distingue da tática, domínio regido muito mais
pela malícia do que por valores. Os leitores a que me dirijo são, portanto,
preferencialmente, os que prezam o liberalismo político e a democracia.
Em segundo lugar, há uma interrogação prévia a
ser respondida. O que distingue uma instituição de uma
organização qualquer? Minha resposta, já em parte indicada, é que uma
instituição só existe em função do fiel cumprimento, por seus dirigentes e
representantes, dos papéis que conferem sentido prático aos valores que ela
professa. Uma igreja cujos dirigentes
não se comportam como religiosos pode ser qualquer coisa, mas igreja certamente
não é.
O
comandante militar que propende a agir como braço armado de um líder ou de uma
facção política pode ser um caudilho, mas não a autoridade que jurou defender a sociedade
e a Constituição. A distinção que estou tentando delinear vale em todos os
níveis e âmbitos da sociedade. Por ação ou omissão, o professor que não vê
diferença entre ensino e proselitismo e a maioria estudantil que se acomoda ou
se deixa intimidar pelos profissionais do grevismo também contribuem para a
descaracterização da instituição universitária.
Infelizmente, a crise política e econômica em que o
Brasil se encontra é propícia à multiplicação de comportamentos
anti-institucionais. Três casos recentes parecem-me requerer um comentário
crítico. Primeiro, o posicionamento assaz polêmico de dois ministros do Supremo
Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso e Marco Aurélio Mello.
Barroso, antecipando o
possível afastamento de Dilma Rousseff e a consequente ascensão de Michel
Temer, exclamou
diante de uma plateia algo como “um
governo do PMDB? Meu Deus, é isso o que temos?” – enunciando uma posição manifestamente facciosa. Não menos chocante,
Marco Aurélio Mello, dono de uma formidável bagagem de conhecimentos jurídicos
e de uma não menos formidável experiência judicante, assumiu uma posição frontalmente contrária ao
impeachment, chegando mesmo a vaticinar dias sombrios para o país no caso de a
proposição a ser brevemente votada na Câmara dos Deputados sair vitoriosa. Um
juízo de valor, sem nenhuma dúvida, com a agravante de haver sido formulado
como uma previsão ou antecipação hipotética de um estado de coisas futuro.
Proposições desse tipo são
adequadas quando enunciadas pelos profissionais da futurologia – a chamada “construção de cenários” –, mas
descabem por completo na boca de um magistrado. O segundo caso, que comento por dever de oficio, é a compra de votos para tentar deter o impeachment que Lula
organizou nas dependências do hotel Golden Tulip, em Brasília. Há coisa de 20 anos, e com objetivo patentemente
eleitoral, Lula ofereceu aos brasileiros uma avant-première do
gênero populista pelo qual haveria de se nortear, afirmando que mais de metade
da Câmara dos Deputados era integrada por “picaretas”.
Em outros tempos – lembro-me dos anos 50
–, teria recebido uma resposta à altura.
Se se atreveu a fazer
tal afirmação, foi certamente por perceber a vertiginosa perda de altitude do Poder Legislativo no período pós-transição e pós-Constituinte. Mas, ainda assim, quem ali vemos, no Golden Tulip, dando
expediente full-time, é um ex-presidente da República. Um ex-presidente
investigado pela Justiça, isso é certo, mas
que ao menos por três razões deveria
dar-se ao respeito: o cargo que ocupou durante
oito anos, a estima que parcela expressiva da
sociedade ainda lhe devota e um elementar respeito às
instituições democráticas.
Por
último, devo também me referir a certo
tipo de parlamentar, aquele ao qual Lula parece estar se dedicando com maior
afinco. Falo dos “picaretas”, do “baixo clero”, dos que devem seus
mandatos aos “grotões” – ou
seja, daqueles que jamais ergueram a voz para contestar esses termos
pejorativos, como também não contestaram o insulto que Lula lhes fez em 1993.
Quer
nas referências verbais que fazia em relação a eles, quer nas atividades “práticas” mediante as quais procura aliciá-los, Lula sempre os aviltou na física e na jurídica – ou seja, como indivíduos e como integrantes da
instituição legislativa. Se esse é um retrato fiel dos “picaretas”, se eles de fato carecem, como Lula insinuou, da
altivez e da independência que o exercício de um mandato eletivo pressupõe, se
entre eles a regra é a falta de brios e de hombridade, então, convenhamos, o Congresso Nacional está de fato prestes a
perder o status de uma verdadeira instituição. Está se
transformando numa organização qualquer, fadada a perder o respeito dos
cidadãos.
Fonte: Publicado no Estadão - Bolívar Lamounier
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