Li este conto de Pierre Gaxotte no início dos anos 70. Usei-o em várias aulas. Interessante ver como o autor imaginava uma sociedade massificada (1). Há 50 anos sabia-o quase de cor. O tempo passou, o texto sumiu. Várias vezes pensei em reproduzi-lo. Pequeno problema: a memória falhava… No último sábado, ao colocar em ordem várias apostilas, abri uma delas. Feliz surpresa. Lá estava o texto, bem conservado. Apresento-o a vocês. (Valter Oliveira, ao republicar este conto em olivereduc.com).
Após os séculos de culpável fantasia, a França havia se tornado uma nação organizada. Na escola, ensinava-se às crianças que os gostos são enganosos, as vocações mentirosas, os desejos culpáveis, e que a liberdade consiste em fazer sempre aquilo que não se quer.
O processo de François Dupont desenvolveu-se com grande publicidade: deveria ser um processo exemplar. O acusado, que parecia não ter se submetido nem à tortura, nem à privação, explicou com voz bastante firme que não tendo podido ouvir o programa matinal, ele cria ter feito bem em fiar-se do espetáculo dos telhados cheios de neve. – É isto, respondeu-lhe o procurador, é isto mesmo que eu vos reprovo. Vós pudestes vos levantar, vos barbear, vos vestir, sair de vossa casa sem ter recebido as paternais instruções que asseguram a vossa liberdade. Uma testemunha até lembrou que vós cantáveis enquanto descíeis as escadarias. Vós cantáveis, Dupont, na hora em que vós vos deveríeis sentir órfão, perdido, abandonado. Vós cantáveis na hora em que vós deveríeis estar preso à inquietude, à dúvida, ao horror, à vertigem e ao remorso. Vós não correstes a um vizinho, vós não interrogastes o porteiro. Vós não perguntastes: -“O que disse o rádio” Qual é a minha vontade de hoje? ” “Vós tínheis olhado pela janela e tomado o vosso partido. Sozinho! Contra o Estado, contra o povo, contra a lei.
– Mas, disse François Dupont, uma vez que o Ministério se havia enganado…
– Vós agravais o vosso caso. A administração não se havia enganado porque ela não pode enganar-se. Sua natureza lhe impede. Se for necessário, dez, cem, mil, cem mil pessoas desfilarão diante desta barra para jurar que eles transpiraram naquele dia. Vosso crime é imenso. Sob o falacioso pretexto que nevou uma vez em que o Estado dissera: “Ponde vossas roupas de verão”, vós tentastes restaurar o testemunho dos sentidos, o julgamento pessoal, a reflexão, o livre arbítrio… Eu peço a pena mais severa.
O tribunal condenou Dupont ao máximo: a tornar-se um indivíduo. Um ser completo, responsável por aquilo que pensa, por aquilo que quer, por aquilo que faz, a informar-se por si mesmo, a julgar, decidir, a fiar-se de si mesmo, confiando em avaliar-se por seus próprios conceitos, de pesar-se segundo seus próprios pesos. Era demais. Dupont não tinha o hábito de agir assim. Dupont suicidou-se naquela mesmo noite”
Fonte: Thèmes et Variations, por Pierre Gaxotte, da Academia Francesa, editora Fayard. É um historiador muito conhecido por sua História da Revolução Francesa cuja abordagem vai na contramão dos historiadores de esquerda.
Notas:
As considerações de Gaxotte sobre o homem-massa serão reproduzidas no próximo artigo do olivereduc.
Na mitologia grega Zéfiro é o deus do vento do Oeste.
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