Pouco depois, apareceu na tela do celular a imagem de Roberto Jefferson. De imediato me lembrei de Oswaldo Eustáquio e Daniel Silveira. Pessoas que não conheço, com as quais nunca troquei uma palavra (e nem sei se quero) e cuja liberdade de expressão defendi recentemente. Fiquei ali estudando as fisionomias como um Lombroso tardio e finalmente entendi a razão do meu mal-estar.
Liberdade para ser mau
Em toda essa discussão sobre a liberdade de expressão e o arbítrio do Supremo Tribunal Federal, há dois aspectos que devem ser levados em conta. O primeiro é o de que, observa o bom senso que nos irmana, os “perseguidos” (antes de implicar com as aspas, leia o texto todo, por favor. Depois, pode implicar) pelo ministro Alexandre de Moraes não fizeram bom uso da liberdade que lhes foi dada e posteriormente tirada. Pelo contrário. Por maldade, equívoco ou descuido, eles usaram a liberdade que nós, a sociedade, lhes legamos para pregar algo que não chega nem perto da atenção, disciplina, afeto e sacrifício de que fala David Foster Wallace.
Evocando Bernanos, pergunto: essas pessoas querem liberdade (e nós queremos a liberdade deles, que também é a nossa) para quê? Lógico que a resposta cabe apenas a eles e que, em se tratando de palavras, não é papel de outra pessoa interferir na sintaxe moral alheia. Mas convém citar aqui também meu amigo César Miranda, que outro dia argumentou com uma ênfase semisséria e semijocosa que ninguém pede liberdade para agir como santo.
A resposta à pergunta de Bernanos e ao comentário de César Miranda talvez esteja na frase atribuída a Thomas Jefferson (embora nunca tenha sido encontrada nos escritos dele) e repetida à exaustão. Diz a frase que o preço da liberdade é a eterna vigilância. Oquei. A frase faz com que nos sintamos vivos. Heróis numa distopia até. Mas tenho cá para mim que essa vigilância aí tem a ver também com a autovigilância.
Qualquer pessoa que examine as falas e atos simbólicos dos “presos políticos” reconhece neles uma intenção perversa de destruir aquele que veem como inimigo. Ou seja, reconhece um ímpeto não virtuoso que os aprisiona. Diria até que é maldade. E algo que talvez tenha se perdido na discussão (até porque ao outro lado não cabe o papel de “vítima") é justamente o fato de que a liberdade de que gozam os homens para serem maus não torna a maldade menos reprovável.
Liberdade para ser bom
O segundo aspecto tem a ver com a “vítima” da liberdade de expressão perversa dos ditos “perseguidos políticos”. Alexandre de Moraes, escravizado pela vaidade e por um conceito corrompido de honra, tem toda a liberdade do mundo (e até alguns incentivos) para agir corretamente. Imbuído da supertoga, contudo, optou pela falsa virtude de proteger a “democracia” a qualquer custo.
Para explicar por que a cruzada de Alexandre de Moraes é imoral, primeiro tenho que reconhecer que sou um vândalo de livros. Desavergonhadamente. E o tempo todo. Estou lá lendo o livro, na esperança hoje meio infundada de chegar até o fim dele, quando me deparo com um trecho interessante. Sem enrubescer, pego a caneta - a bicona velha de guerra - e sublinho. Geralmente faço também um ponto de exclamação estilizado à margem, porque tenho uma certeza tola (todas as certezas são meio tolas) de que um dia abrirei aquele livro naquela página e me lembrarei exatamente das sinapses que me fizeram pensar “ó, que trecho interessante, deixe-me vandalizar o livro aqui porque vale muito a pena”.
Ontem mesmo, relendo o Ivan Ilitch, sublinhei “gostava de fazer sentir que ele, capaz de esmagar, tratava-os com simplicidade”. Neste trecho, Tolstói (Tolsta, para os íntimos) conta a vida pregressa do homem bom, mas nada especial, que dá nome à novela. Hoje cedo, contudo, ao abrir o livrinho e me deparar com o trecho sublinhado quando eu já era embalado no colo de Morfeu, tive dificuldades para me lembrar do que me levou a gritar “Eureka!” e acordar a Catota, que me encarou com aqueles olhos azuis para sempre enfadados.
Aí me lembrei da liberdade perversa dos “perseguidos”. Uma coisa leva a outra e temos que, pela métrica da “compaixão jurídica”, Alexandre de Moraes é o anti-Ivan Ilitch. Isto é, munido da liberdade de agir virtuosamente, usando do chamado devido processo legal, o juiz optou por esmagar seus adversários com prisões, operações de busca e apreensão, censura explícita, tornozeleira eletrônica, etc. Ou seja, diante da possibilidade de agir ética e sabiamente, aspirando a virtude ou santidade, Alexandre de Moraes escolheu usar a força que, apesar do véu de legalidade, não tem outro objetivo que não impedir que o outro exerça seu livre-arbítrio.
E é aí que entra a hierarquia do dever. Membro da Suprema Corte do país, cabe ao ministro fazer uso da “reputação ilibada e notável saber jurídico” que lhe renderam o cargo para se mostrar moralmente superior àqueles que o ofenderam e ameaçaram. Detentor do poder de força, Alexandre de Moraes, em tese, não tem a liberdade de ser mau. Embora transborde naquele crânio reluzente a liberdade de ser bom.
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