Almir Pazzianotto Pinto
Demagogia em conluio com utopia foi o erro de deputados e senadores eleitos em 1986
É
impossível fazer vista grossa para a crise que assola o País e a
responsabilidade que recai sobre a Constituição da República.
[Matéria excelente, extremamente atual, não se deixando contaminar por fatos intempestivos, e que mostra os erros do excesso de direitos. País que tem direito para tudo, termina por esquecer os direitos que realmente importam.]
Exceto
raros ex-integrantes da Assembleia Nacional Constituinte, é opinião
generalizada que a oitava Carta Magna teve o prazo de validade ultrapassado.
Não porque pequeno grupo conspire para derrubá-la. A morte virá por falência
múltipla dos órgãos, decorrente de septicemia. Poderoso
argumento utilizado contra a convocação de nova constituinte consiste no receio
da perda de direitos sociais, relacionados no Capítulo II do Título II, que
trata dos Direitos e Garantias Fundamentais.
Afinal,
o que é a Constituição, também denominada Lei Fundamental? Os especialistas na
matéria não costumam pôr-se de acordo acerca da correta definição. Pinto
Ferreira, após citar uma dezena, define-a como “conjunto de normas
convencionais ou jurídicas que, repousando na estrutura econômico-social e
ideológica da sociedade, determina de uma maneira fundamental e permanente o
ordenamento do Estado” (Da Constituição, Ed. José Konfino, 1956).
Poderia
ter dito apenas “conjunto de normas fundamentais que regem a organização do
Estado”. As
definições convergem, todavia, na afirmação de que compete à Constituição
determinar regras fundamentais. Tudo o que não for fundamental pertence à
esfera da legislação ordinária.
Assim o dizia o artigo 178 da longeva Carta
Imperial de 1824, que vigorou por 65 anos e recebeu emenda uma única vez: “É só
Constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições dos respectivos
Poderes Políticos e aos Direitos Políticos e individuais dos cidadãos. Tudo o
que não for constitucional pode ser alterado, sem as formalidades requeridas,
pelas Legislaturas ordinárias”.
A Constituição republicana de 1891 foi a que
mais se aproximou do salutar princípio. Daí ter durado 40 anos, com poucas
mudanças, feitas de uma só vez, em 3/9/1926.
Para
ser verdadeira e não descambar para o enganoso terreno da utopia, a Lei
Fundamental deve refletir a realidade e não oferecer mais do que a
infraestrutura econômica consegue proporcionar. [o que inclui, sem limitar, oferecer direitos em demasia e sem a contrapartida dos deveres.] Como diria Oliveira Vianna, o
traço dominante das últimas constituintes consiste na fatídica crença no poder
mágico das palavras. Da Constituição de 1988 recolho como exemplos de
ilusionismo o elenco dos direitos sociais, a definição do salário mínimo, a
proteção contra a automação na forma da lei, as garantias relativas à saúde, à
educação, à segurança, ao emprego, ao trabalho (artigos 6.º e 7.º, IV e XXVII,
144, 170, 196, 205).
Os
direitos sociais relacionados nos 34 incisos do artigo 7.º oferecem frágil
cobertura a minoritário mercado formal, onde se encontram os que têm carteira
profissional anotada. Para a maioria desempregada, subocupada ou desalentada
prevalece a lei da oferta e da procura, agravada pela crise aprofundada pela
pandemia, cuja extensão o presidente Jair Bolsonaro insiste em menosprezar. São
14 milhões de desempregados, 9 milhões sem carteira profissional assinada, 21,4
milhões de autônomos, 51,7 milhões abaixo da pobreza, vítimas das fantasias dos
constituintes de 1988.
Direitos
fundamentais, inalienáveis, indisponíveis e imprescritíveis são a igualdade
perante a lei, a liberdade de imprensa e de opinião, a dignidade, a cidadania,
a pluralidade política, o voto universal e secreto, o acesso ao trabalho e à
livre-iniciativa. Não basta, para usufruí-los, que se encontrem escritos e
encadernados.
A Constituição dos Estados Unidos da América, aprovada em
17/9/1789 por 55 delegados representantes de 12 Estados, tem sete artigos,
emendados 20 vezes.
Não faz referência a direitos sociais, que só se
concretizam quando o Estado é democrático e a economia, vigorosa, funciona bem.
Para
que a admiremos a Constituição deve ser conhecida e manter vínculos de
fidelidade com o povo. Eruditos comentários redigidos por acadêmicos e
professores estão fora do alcance do grosso da população. São ótimos para a
venda de livros que dissertam sobre mundo irreal. O Idealismo da
Constituição, livro de Oliveira Vianna, talvez o único que analisou o fracasso
da Constituição de 1934, está fora de circulação. Parafraseando o autor, a
Constituição de 1988 falhou por instituir relações conflitantes entre
idealismo, utopia e realidade nacional.
Fonte
do direito positivo ordinário é a vontade revelada pelo Estado. Fonte do
direito constitucional, entretanto, é a vontade revelada pelo povo por meio dos
seus representantes, salvo quando não dimana, como em 1964, da ruptura da ordem
jurídica provocada por golpe militar. Fazer da demagogia, em conluio com forte
dose de utopia, fonte do Direito Fundamental foi o erro em que incidiram
deputados e senadores eleitos em 1986, investidos erroneamente de poder
constitucional.
Estamos
a caminho da nona Constituição. Se não encontrarmos a fórmula política
consensual para redigi-la e promulgá-la, a letal combinação entre crise
econômica e crise social poderá deflagrar crise institucional cujo desfecho
virá, como em 1964, pela violência das armas.
Almir Pazzianotto Pinto, advogado,
foi ministro do Trabalho governo Sarney e presidente do TST