A pesada âncora do lulismo prende a esquerda às areias do passado
O terceiro turno das eleições presidenciais foi disputado na Câmara, na
votação da reforma previdenciária. O placar avassalador, 379 a 131, não
assinalou um triunfo de Bolsonaro, mas da articulação parlamentar
liderada por Rodrigo Maia (DEM-RJ), pelo relator, Samuel
Moreira(PSDB-SP), e pelo presidente da comissão especial, Marcelo Ramos
(PL-AM). A esquerda —PT, PDT, PSB e PSOL— sofreu, mais que um insucesso
parlamentar, uma derrota política de proporções históricas.
Essencialmente, ela colocou-se fora do jogo político, encarcerando-se
voluntariamente na cela de Lula.
As ruas vazias, o plácido entorno do Congresso, a transição da opinião
popular rumo ao apoio à reforma —a catástrofe da esquerda pode ser
sintetizada num caleidoscópio de imagens icônicas. É a conclusão de uma
trajetória pautada pela incompreensão da democracia. O passo inicial foi
a denúncia do “golpe do impeachment”; o seguinte, a campanha do “Lula
livre!”; o derradeiro, a recusa do debate sobre a Previdência, que é
parte de uma rejeição mais geral a revisitar as políticas populistas
conduzidas por Lula e Dilma desde 2007.
O fracasso tem donos. Haddad nunca chegou nem perto do lugar de
reformador do PT, atribuído a ele por tantos intelectuais esperançosos,
preferindo o posto de gestor público da massa falida do lulismo. Boulos e
Freixo reconduziram o PSOL à irrelevante condição de linha auxiliar do
PT. Ciro Gomes e os dirigentes do PDT e do PSB perderam a oportunidade
de fundar um polo oposicionista pragmático, capaz de aperfeiçoar o
projeto da nova Previdência. A cela de Lula está repleta de prisioneiros
virtuais de um Brasil corporativo que faliu anos atrás.
O beneficiário do autoexílio da esquerda é a direita bolsonarista. No
vácuo político deixado pela deriva governista do PSDB, Bolsonaro tem a
chance de se apropriar dos louros de uma vitória que não lhe pertence,
ganhando novo fôlego. Lá atrás, Lula ensaiou uma reforma previdenciária,
e Dilma admitiu a necessidade de estabelecer idades mínimas para a
aposentadoria. Mas a esquerda do “não”, submissa ao corporativismo,
imersa no oportunismo eleitoral, entregou a bandeira do futuro à direita
reacionária. Todos pagaremos por isso.
“Ser de esquerda não pode significar que vamos ser contra um projeto que
de fato pode tornar o Brasil mais inclusivo e desenvolvido”. A jovem
deputada Tabata Amaral (PDT-SP) fala por outros sete deputados de seu
partido e 11 do PSB que desafiaram suas direções partidárias para apoiar
a reforma previdenciária. Ela exprime, ainda, a opinião de uma pequena
coleção de intelectuais e economistas de esquerda que escapam à bolha do
sectarismo. Justamente por isso, está sob ameaça de expulsão.
A reforma é a obra inaugural do “parlamentarismo branco”. Rodrigo Maia
já antecipa novos objetivos, na forma das reformas tributária e
administrativa. No plano retórico, o PT e Ciro Gomes chegaram a ensaiar
propostas razoáveis no rumo de uma tributação mais progressiva e da
radical redução nos cargos comissionados. Ao que tudo indica, porém, a
esquerda seguirá ausente do debate nacional, contentando-se com a
denúncia genérica das desigualdades sociais. A pesada âncora do lulismo
prende a esquerda às areias do passado.
O sectarismo custa caro. O Executivo está ocupado por reacionários tão
arrogantes quanto incultos, que rezam no santuário herético do “Deus de
Trump”. Eles querem distribuir armas, promovem a delinquência policial,
estimulam o ativismo político de procuradores jacobinos, sonham
subordinar a lei e a escola ao fundamentalismo religioso. A agenda
extremista só encontra barreiras no “parlamentarismo branco” e num
Judiciário acossado pelo fogo das redes olavo-bolsonaristas. O Brasil
precisaria de uma esquerda moderna, cosmopolita. O que temos, porém, são
os estilhaços de um lulismo espectral, que agoniza em câmera lenta.
Folha de S. Paulo - Demetrio Magnoli, sociólogo