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domingo, 6 de setembro de 2020

A política dos ladrões - Percival Puggina


Bastou a lei favorecer a simplicidade dos processos licitatórios com vistas à aquisição de equipamentos e serviços, dentro das urgências impostas pela pandemia, para os ladrões saírem da caverna. E entrarem em operação nos suntuosos gabinetes do poder. Seis governadores de estado estão sendo investigados. Estima-se que fraudes, segundo matéria da Veja, se elevem a R$ 4 bilhões. O governador do Rio de Janeiro, ex-magistrado que ganhou fama por linha dura, foi afastado do cargo pelo STJ. A Polícia Federal e o Ministério Público já identificaram operações fraudulentas em 19 estados da federação!


 Impressiona particularmente o histórico de corrupção no Rio de Janeiro. Seis governadores fluminenses se envolveram com esquemas corruptos que, de longa data, infestam o ambiente político local. Alguns conheceram por trás das grades o sistema penitenciário sobre o qual, um dia, exerceram competências de ofício. A Alerj e a Câmara de Vereadores do Rio são o que se sabe. Ali, rachadinha é tira-gosto, antes do banquete.

Diante disso, cabe a pergunta: de onde procede tanta fragilidade moral, incapaz de resistir à tentação do dinheiro farto e fácil da corrupção? 
De um lado, a punibilidade tornou-se hipótese remotíssima e a punição por esse específico crime faz gemer as entranhas do STF, sempre pronto a conviver com a morosidade dos meandros processuais e com a benevolência das execuções penais. De outro, como confessou abertamente Sérgio Cabral, condenado a 280 anos de prisão, “apego a poder e dinheiro é um vício”. Como se forma esse vício? Como todo vício, ele implica uma confusão conceitual entre satisfação e felicidade, fazendo da vida um inferno entre prazeres ocasionais. É a história de todos os dependentes. Acontece que nossa sociedade deixou de lado verdades, princípios e valores para cair na lassidão moral e no cinismo dos quais a corrupção é apenas uma das mais visíveis consequências.

É bem característica destes nossos tempos a troca dos sólidos fundamentos de uma vida digna pela moeda vulgar do “politicamente correto”. Há mais espaço para a hipocrisia dos antifas do que para a instituição familiar, o respeito à vida, a religião e o amor a Deus.
Se os valores rejeitados são ditos tradicionais, como definir os “não tradicionais”? Será necessário espremer às últimas gotas o pensamento picareta e a novilíngua para nominá-los com um adjetivo decente. E mais, se os valores tradicionais forem tão desprezados quanto gostariam seus detratores, tornar-se-á necessário convocar Diógenes com sua lanterna para encontrar o bom cidadão, o bom político, a boa instituição. E até mesmo o dinheiro roubado.

Percival Puggina (75), membro da Academia Rio-Grandense de Letras e Cidadão de Porto Alegre, é arquiteto, empresário, escritor e titular do site Conservadores e Liberais (Puggina.org); colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil pelos maus brasileiros. Integrante do grupo Pensar+.
  

sexta-feira, 2 de março de 2018

Plano Z

O “Plano B” do PT para as eleições foi a pique. Espera-se pelo próximo

O PT está com o mesmo problema de Diógenes na Grécia antiga. O filósofo, como se conta na história, andava pelas ruas de Atenas, em plena luz do dia, carregando na mão uma lanterna acesa. “Para que essa lanterna, Diógenes?”, perguntavam os atenienses que cruzavam com ele. “Para ver se eu acho um homem honesto nesta cidade”, respondia. É o que o PT está procurando hoje entre os seus grão-senhores um sujeito honesto, ou, pelo menos, que tenha uma ficha suficientemente limpa para sair candidato à Presidência da República. Está difícil achar essa figura. O “Plano A” do partido para as eleições sempre previu a candidatura do ex-presidente Lula. Quem mais poderia ser? Nunca houve, desde a fundação do PT, outro candidato que não fosse ele ─ e quem achou um dia que poderia se apresentar como “opção” jaz há muito tempo no cemitério dos petistas mortos e excomungados.

Como no momento Lula está condenado a doze anos e tanto de cadeia por corrupção e lavagem de dinheiro, sem contar outras sentenças que pode acumular nos próximos meses, sua candidatura ficou difícil. O “Plano B” previa que em seu lugar entrasse o ex-governador da Bahia, Jaques Wagner mas o homem acaba de ser indiciado por roubalheira grossa num inquérito da Polícia Federal, acusado de levar mais de 80 milhões de reais em propina em seu governo. O “Plano C” poderia incluir a atual presidente do partido. Mas ela também é acusada de ladroagem pesada, e só está circulando por aí porque tem “foro privilegiado” como senadora; aguarda, hoje, que o Supremo Tribunal Federal crie coragem para resolver o seu caso um dia desses. (De qualquer forma, seria um plano tão ruim que ninguém, nem entre a “militância” mais alucinada, chegou a pensar a sério no seu nome.) O “Plano D”, ao que parece, é o ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad. Ele é uma raridade no PT de hoje não está correndo da polícia, nem cercado por uma manada de advogados penalistas. Em compensação, tem de lidar com a vida real. O problema de Haddad não é folha corrida ─ é falta de voto. Na última eleição que disputou perdeu já no primeiro turno para um estreante, o atual prefeito João Doria, e de lá para cá não aconteceu nada que o tivesse transformado num colosso eleitoral.

Um “Plano E” poderia ser o ex-ministro Ciro Gomes. Mas Ciro não é do PT, os petistas não gostam dele e o seu grau de confiança nos possíveis aliados é mínimo. “É mais fácil um boi voar do que o PT apoiar um candidato de outro partido”, disse há pouco. Daí para um “Plano F”, “G” ou “H” é um pulo. Sempre haverá algum nome para colocar na roda. 

Resolve? Não resolve. O problema real é que o PT se transformou há muito tempo num partido totalmente franqueado ao mesmo tipo de gente, exatamente o mesmo, que sempre viveu de roubar o Erário em tempo integral. O partido, hoje, é apenas mais uma entre todas essas gangues que infestam a política brasileira. A dificuldade eleitoral que o PT encontra no momento não é o fato de que Lula foi condenado como ladrão duas vezes, na primeira e na segunda instâncias. É que, tirando o ex-presidente da campanha, nada muda ─ o sub-mundo ao seu redor continua igual. Ou seja: o partido não vai se livrar da tradicional maçã estragada e tornar-se sadio outra vez. A esta altura, o barril todo já foi para o espaço. De plano em plano, podem ir até a letra “Z” sem encontrar o justo procurado por Diógenes.

J. R. Guzzo - Veja

 

segunda-feira, 6 de junho de 2016

A morte do Brasil velho



Os políticos ejetados enfrentam um problema sem solução: em consequência das investigações que provocaram um abalo termonuclear na corrupção nacional, há todo um país que vai sendo desmontado

Há certas coisas que continuam mais ou menos como eram 2.500 anos atrás, ou algo parecido. Dos tempos da Grécia antiga nos vem, por exemplo, a história de Diógenes, o filósofo da escola cínica que andava pelas ruas de Atenas carregando uma lanterna em plena luz do dia. Quando alguém lhe perguntava “para que isso, Diógenes?”, ele respondia “para ver se eu encontro um homem honesto em Atenas”. Troque-se a Atenas de Diógenes pela Brasília de hoje e não vai ser preciso muito tempo para concluir que as dificuldades da vida pública não mudaram grande coisa de lá para cá.

É claro que havia muita gente honesta na Grécia, como há muita gente honesta no Brasil. Mas o filósofo, com sua lanterna, estava apenas dando um aviso sobre as realidades da política — particularmente sobre o problemaço que é encontrar pessoas honestas em quantidade suficiente para construir uma vida pública de qualidade superior. Falta gente, eis aí a imensa complicação — ou melhor, falta gente que seja ao mesmo tempo impecável do ponto de vista ético e disposta a entrar de corpo e alma nas ásperas necessidades da política como ela é. No terremoto que vem devastando a existência dos políticos brasileiros há mais de um ano, e que começou a se formar muito antes disso, está cada vez mais claro que o país vive uma extrema escassez de justos. Onde estão?

Eis aí, no clamoroso episódio do senador Romero Jucá, a última comprovação de que tudo está mesmo muito difícil. Acaba de ser colocado no olho da rua, oficialmente em caráter ainda provisório, o governo mais corrupto de toda a história do Brasil, nas modalidades ativa e passiva — não se trata de uma opinião, mas de um fato estabelecido por números, confissões públicas, perícias, documentos, gravações e toda uma coleção de acontecimentos indiscutíveis que, no conjunto, já renderam 1.000 anos de condenação a penas de prisão. Em seu lugar entra outro que, apesar de todo o pavor instalado no mundo político — e das consequentes cautelas para evitar nomes com potencial de complicações judiciárias —, não consegue atravessar seus primeiros dias sem ter de mandar embora um ministro de Estado. 

O nome anunciado para substituí-lo no cargo também faz parte dos grupos de risco. Outros, por suspeitas diversas, nem chegaram a ser nomeados. Outros tantos, ainda, vivem diariamente na expectativa de ser formalmente acusados de algum delito — para não falar de todos os que já foram denunciados, encontram-se sob investigação judicial ou estão sendo processados. É óbvio que há muitos homens perfeitamente íntegros no presente governo, e é óbvio que há um abismo de diferenças, em termos de moral comum, entre os governantes que acabam de entrar e os que acabam de sair. Mas é igualmente óbvio que não existe a segurança ética que deveria existir, num momento em que a paciência do Brasil com acusações de má conduta é mínima e a morte política virou mal súbito.

Isso tudo parece provar que as coisas vão muito mal, como nos tempos de Diógenes, e realmente vão. Ao mesmo tempo, podem estar indo melhor do que jamais foram. Aconteça o que acontecer, há no Brasil um fenômeno historicamente inédito e que se chama Operação Lava Jato. Em consequência direta de suas investigações e do abalo termonuclear que causou na corrupção nacional, até há pouco dada como invencível, todo um Brasil velho está morrendo, como morreram um dia o Império Romano, a colonização da África e o comunismo na Rússia — não há volta possível para nada disso. 

O ministro Jucá foi ejetado do governo e devolvido ao Senado Federal por causa de gravações em que aparece tentando esfriar a fornalha da Lava Jato. Não apenas foi um erro fatal — ele estava tentando fazer algo impossível. É este, na verdade, o problema sem solução para os políticos do país que está sendo desmontado — os de agora e, mais ainda, os que foram despejados. Nem eles, nem os tribunais mais supremos, nem as organizações mais poderosas têm hoje condições de “parar a Lava Jato”. Há um outro país aí.

Publicado na revista EXAME – J. R. Guzzo