O Título V da Carta da República corresponde
ao volume 5, que ficou a meu cargo. Cuida de dois instrumentos legais
para a defesa do Estado e das instituições democráticas (Estado de
Defesa e de Sítio) e das instituições encarregadas de proteger a
democracia e os poderes (Forças Armadas, Polícias Militares, Polícia
Civil e Guardas Municipais).
Na
5ª parte da Lei Maior, por sua abrangência nacional e missão de
proteção da soberania nacional, as Forças Armadas passaram a ter um
tratamento diferenciado (artigos 142 e 143), tratamento este alargado
quanto às demais corporações, pelas próprias atribuições outorgadas pelo
constituinte às três Armas.
As funções determinadas pelo Constituinte estão no artigo 142, assim redigido:
Art.
142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela
Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares,
organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade
suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à
garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer
destes, da lei e da ordem.”
Percebe-se que três são as atribuições das Forças Armadas, alicerçadas na hierarquia e disciplina, a saber:
- Defesa da pátria;
- Garantia dos poderes constitucionais;
- Garantia da lei e da ordem, por iniciativa de qualquer dos três Poderes.
A palavra "Pátria" aparece pela primeira e única vez neste artigo da Lex Magna.
Sobre
a defesa da Pátria até mesmo os alunos do pré-primário sabem que o país
será defendido contra eventuais invasões de outras nações pelas Forças
Armadas. Não oferece qualquer dúvida.Sobre
a garantia dos poderes contra manifestações de qualquer natureza,
compreende-se, lembrando-se que, nos estados de defesa e de sítio as
polícias militares, civil e guarda municipal são coordenadas pelas
Forças Armadas.
A
terceira função, todavia, é que tem merecido, nos últimos tempos,
discussão entre juristas e políticos se corresponderia ou não a uma
atribuição outorgada às Forças Armadas para repor pontualmente lei e a ordem, a pedido de qualquer Poder.
Minha
interpretação, há 31 anos, manifestada para alunos da universidade, em
livros, conferências, artigos jornalísticos, rádio e televisão é que NO
CAPÍTULO PARA A DEFESA DA DEMOCRACIA, DO ESTADO E DE SUAS INSTITUIÇÕES,
se um Poder sentir-se atropelado por outro, poderá solicitar às Forças
Armadas que ajam como Poder Moderador para repor, NAQUELE PONTO, A LEI E
A ORDEM, se esta, realmente, tiver sido ferida pelo Poder em conflito
com o postulante.
Alguns
juristas defendem a tese que a terceira atribuição e a segunda se
confundem, pois para garantir as instituições, necessariamente, estarão
as Forças Armadas garantindo a lei e a ordem, já que o único Poder
Moderador seria o Judiciário. Parece-me
incorreta tal exegese, muito embora eu sempre respeite as opiniões
contrárias em matéria de Direito. Tinha até mesmo o hábito de provocar
meus alunos de pós graduação da Universidade Mackenzie a divergirem de
meus escritos, dando boas notas àqueles que bem fundamentassem suas
posições. É que não haveria sentido de o constituinte usar um "pleonasmo
enfático" no artigo 142 da Carta Magna, visto que a Lei Suprema não
pode conter palavras inúteis.
A própria menção à solicitação de Poder
para garantir a lei e a ordem sinaliza uma garantia distinta daquela
que estaria já na função de assegurar os poderes constitucionais, como
atribuição das Forças Armadas.
Exemplifico:
vamos admitir que, declarando a inconstitucionalidade por omissão do
Parlamento, que é atribuição do STF, o STF decidisse fazer a lei que o
Congresso deveria fazer e não fez, violando o disposto no artigo 103,
parágrafo 2º, assim redigido:
Art. 103. (...)
§ 2º Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para
tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder
competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando
de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias.”
Ora,
se o Congresso contestasse tal invasão de competência não poderia
recorrer ao próprio STF invasor, apesar de ter pelo artigo 49, inciso
XI, a obrigação de zelar por sua competência normativa perante os outros
Poderes. Tem o dispositivo a seguinte redação:
Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
(...) XI - zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes;
Pelo
artigo 142 da CF/88 caberia ao Congresso recorrer às Forças Armadas
para reposição da lei (CF) e da ordem, não dando eficácia àquela norma
que caberia apenas e tão somente ao Congresso redigir. Sua atuação seria, pois, pontual. Jamais para romper, mas para repor a lei e a ordem
tisnada pela Suprema Corte, nada obstante — tenho dito e repetido —
constituída, no Brasil, de brilhantes e ilustrados juristas.
O
dispositivo jamais albergaria qualquer possibilidade de intervenção
política, golpe de Estado, assunção do Poder pelas Forças Armadas. Como o
Título V, no seu cabeçalho, determina, a função das Forças Armadas é de
defesa do Estado E DAS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS. Não poderiam
nunca, fora a intervenção moderadora pontual, exercer qualquer outra
função técnica ou política. Tal intervenção apenas diria qual a
interpretação correta da lei aplicada no conflito entre Poderes, EM
HAVENDO INVASÃO DE COMPETÊNCIA LEGISLATIVA OU DE ATRIBUIÇÕES.
No
que sempre escrevi, nestes 31 anos, ao lidar diariamente com a
Constituição — é minha titulação na Faculdade de Direito da Universidade
Mackenzie —, é que também se o conflito se colocasse entre o Poder
Executivo Federal e qualquer dos dois outros Poderes, não ao Presidente,
parte do conflito, mas aos Comandantes das Forças Armadas caberia o
exercício do Poder Moderador.
Nada
obstante reconhecer a existência de opiniões contrárias, principalmente
dos eminentes juristas que compõem o Pretório Excelso, não tenho porque
mudar minha inteligência do artigo 142.
Como não sou político, mas
apenas um velho advogado e professor universitário, que sempre buscou
exercer a cidadania, continuarei a interpretar, academicamente, o artigo
142, como agora o fiz, com o respeito que sempre tive às opiniões
divergentes, não me importando com as críticas menos elegantes dos que
não concordam comigo. John Rawls dizia que as teorias abrangentes são
próprias das vocações totalitárias, que não admitem contestação. Só são
democráticas as teorias não abrangentes, pois estas admitem contestação e
diálogo.
Aos 85 anos, felizmente não perdi o meu amor ao diálogo e à democracia.
MATÉRIA COMPLETA e comentários - Revista Consultor Jurídico.
Ives
Gandra da Silva Martins é professor emérito das universidades
Mackenzie, Unip, Unifeo, Unimeo, do CIEE-SP, das escolas de Comando e
Estado-Maior do Exército (Eceme), superior de Guerra (ESG) e da
magistratura do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, professor
honorário das Universidades Austral (ARG), San Martin de Porres (PER) e
Vasili Goldis (ROM), doutor honoris causa das Universidades de Craiova
(ROM) e da PUC-PR e RS, e catedrático da Universidade do Minho (POR);
presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio (SP);
ex-presidente da Academia Paulista de Letras e do Iasp (Instituto dos
Advogados de São Paulo).