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terça-feira, 25 de abril de 2023

O que o transativismo tem a ver com direitos civis? - Revista Oeste

Flávio Gordon

A violência da qual os transativistas alegam ser vítimas não é exatamente similar à que acometia os negros no passado, pois inclui coisas como referir-se a eles com o pronome errado



"Direitos trans são direitos humanos", na Marcha das Mulheres, na cidade de Nova Iorque | Foto: Shutterstock

“Quando la masa actúa por sí misma,
lo hace sólo de una manera, porque no tiene otra:
lincha”
José Ortega y Gasset

“Tribalismo é a resposta à imaturidade porque
permite ao homem permanecer
imaturo com a sanção de seu grupo”
Eric Voegelin


Aconteceu em 14 de novembro de 1960, em Nova Orleans, Estados Unidos. Nesse dia, Ruby Bridges, uma menina negra de 6 anos de idade, pisou pela primeira vez numa escola destinada exclusivamente a crianças brancas, como determinavam as leis de segregação racial então vigentes.  
Ao fim do dia, revoltados com a presença de Bridges naquele espaço reservado “only for whites” (como postulava o odioso jargão da época), uma multidão de aproximadamente mil racistas se manifestou violentamente em frente à escola. Aos berros, exigiam a expulsão imediata de Bridges. Muitos chegaram a cuspir na criança, que também foi alvo de ameaças de morte. 
 
Emblemático da segregação racial na América dos anos 1960, quando os negros sofriam toda sorte de violência física e moral, o episódio foi um dos estopins para a célebre campanha dos direitos civis. 
Encarnada pelo universalismo de Martin Luther King Jr., como se sabe, a vertente mais consagrada do movimento pregou a resistência pacífica ao racismo, apostando que a vitória política viria do contraste entre a fortaleza moral dos ativistas negros e a virulência doentia dos segregacionistas brancos. De certa forma, a postura altiva da pequena Bridges, que enfrentou com notável impavidez os insultos e as agressões, já fornecera o modelo dessa linha de ação. Ruby Bridges, 6 anos de idade, foi a primeira criança negra a frequentar uma escola até então destinada exclusivamente a brancos | Foto: Wikimedia Commons
 
Seis décadas depois, uma nova campanha pelos direitos civis irrompe na América e no mundo: o transativismo.  
E aqui uso deliberadamente transativismo no lugar de transgenderismo, para enfatizar o caráter político-ideológico da causa, a qual, além de incluir entre os adeptos um sem-número de indivíduos não trans (ou “cisgênero”, como se diz no jargão militante), também exclui pessoas trans que não a corroboram. 
Seja como for, a inserção do movimento trans no rol da luta pelos direitos civis é hoje uma questão inegociável para as elites culturais do Ocidente, tendo sido consagrada por ninguém menos que Joe Biden, o qual, em janeiro de 2020, resumiu num tuíte a posição hegemônica entre o beautiful people: “Sejamos claros! A igualdade para os transgêneros é a grande questão de direitos civis do nosso tempo. Não há espaço para hesitação quando falamos de direitos humanos básicos”.

Em 25 de março, num parque na cidade de Auckland (Nova Zelândia), onde proferiria uma palestra sobre os direitos das mulheres, Posie Parker foi cercada por uma multidão raivosa de ativistas trans, que a xingaram, a ameaçaram de morte e lhe cobriram com molho de tomate 

Martin Luther King Jr. e Malcolm X no debate do Senado sobre a Lei dos Direitos Civis de 1964 | Foto: Wikimedia Commons

Mas, quando comparamos os dois movimentos de direitos civis — o dos negros, nos anos 1960, e o dos transativistas, nos anos 2020 —, notamos certas diferenças saltando aos olhos. Em primeiro lugar, o modelo de ação política do transativismo não parece ser o pacifismo altivo de Martin Luther King, mas, ao contrário, a pregação violenta, revolucionária e histriônica de um Malcolm X ou dos Panteras Negras. Em segundo lugar, a violência da qual alegam ser vítimas não é exatamente similar à que acometia os negros no passado, pois inclui coisas como referir-se a eles com o pronome errado, pedir (mesmo educadamente) para que usem o banheiro compatível com o seu sexo biológico, ou opinar contrariamente à presença de homens biológicos (conquanto identificados como mulheres) nos esportes femininos. Diante dessas contrariedades, os transativistas têm reagido com violência e fúria. Frequentemente em bando.

Alguns casos viralizaram na internet. Na Universidade de Brasília (UnB), um transativista ameaçou de agressão física uma aluna que, além de pedir que ele saísse do banheiro feminino, cometeu o pecado de tratá-lo por “cara”. “Eu não são sou um cara. Não tem nada que me impeça de meter a mão na sua cara” — berrou, transido de ódio, o homem que se sente mulher. Reação semelhante teve um transativista na cidade de Albuquerque (Novo México, EUA). Quando o atendente de uma loja o tratou inadvertidamente por “senhor”, em vez de “senhora”, o homem teve um ataque de fúria. Sentindo-se mortalmente violentado, agiu de modo simetricamente inverso ao de Ruby Bridges: gritou, xingou, chamou o atendente para a briga, e saiu chutando produtos do estabelecimento. Em suma: armou aquilo que, no Brasil, se conhece popularmente como “barraco”. Episódios semelhantes se sucedem dia após dia, num clima de opinião cada vez mais propício à histeria coletiva.

Mas a diferença entre o transativismo e a campanha pelos direitos civis dos negros fica ainda mais evidente ao lembrarmos de dois eventos recentes, no qual mulheres críticas ao movimento foram cercadas, silenciadas e agredidas por uma turba de transativistas. Foi o caso, por exemplo, da britânica Kellie-Jay Keen-Minshull, também conhecida como Posie Parker, uma militante feminista. Em 25 de março, num parque na cidade de Auckland (Nova Zelândia), onde proferiria uma palestra sobre os direitos das mulheres, Parker foi cercada por uma multidão raivosa de ativistas trans, que a xingaram, a ameaçaram de morte e lhe cobriram com molho de tomate. Sob escolta policial, ela teve de fugir às pressas do lugar, interrompendo a sua turnê intitulada “Deixem as mulheres falarem”. Ali, em Auckland, os transativistas não deixaram. Posie Parker tornou-se alvo da esquerda identitária | Foto: Reprodução/Twitter

Dias depois, deu-se nos EUA um episódio parecido, tendo por vítima a campeã universitária de natação Riley Gaines, uma jovem de 22 anos. Na San Francisco State University, onde havia ido palestrar contra a participação de homens biológicos nos esportes femininos, Gaines foi acossada por uma turba iracunda de transativistas, que, acusando-a de “transfobia”, por pouco não a linchou. 
Refugiando-se durante mais de três horas numa sala embarricada da universidade, Gaines conseguiu escapar com vida, não sem antes ser atingida por socos desferidos por outro homem que se sente mulher, e que, com base nesse sentimento, reivindica o direito de bater em mulheres que, mais do que se sentir, de fato o são.
Compare-se mais uma vez o caso da menina negra Ruby Bridges com esses episódios, que Biden e seus companheiros ideológicos descrevem como “a questão de direitos civis do nosso tempo”, equiparando-a, portanto, à luta contra a segregação racial. 
, entre os dois eventos, tamanha inversão das posições respectivas de vítima e agressor, que só mesmo uma mente possuída por ideologia poderia reuni-los na mesma prateleira dos “direitos civis”. 
Ora, nos exemplos supracitados, são justamente os indivíduos críticos dos transativistas que estão em condição similar à de Bridges: cercados, ameaçados, xingados, cuspidos e agredidos por uma turba furiosa. Os agressores são os transativistas eles próprios, os quais, na situação social de linchamento, ocupam a posição linchadora. 
Trata-se da mesmíssima posição outrora ocupada pelos racistas brancos que queriam linchar a menina negra, cuja mera presença os ofendia de morte, soando-lhes como uma violência intolerável. 
 
Resta-nos ainda investigar a origem dessa suscetibilidade patológica, capaz de transformar os transativistas, quando tomados individualmente, em pessoas agressivas com os nervos à flor da pele, e, quando tomados coletivamente, numa massa de linchadores. 
Sobre que frágeis fundamentos se sustenta uma persona política capaz de colapsar emocionalmente diante de um pronome indesejado? 
Quais são as premissas que o transativismo não permite serem questionadas? 
Que realidade ameaçadora é essa que buscam recalcar na base da gritaria e da violência, e cuja mera enunciação parece “ferir-lhes a existência”? 
Essas são algumas das perguntas que tentaremos responder no próximo artigo.


Leia também “A epidemia trans"

 

Flávio Gordon, colunista - Revista Oeste


domingo, 5 de janeiro de 2020

Sonhos de King - Nas entrelinhas

”’O ethos do ‘destino manifesto’ justificou a expansão territorial e a supremacia branca nos Estados Unidos, cujo eixo era a ideia de que Deus os estaria ajudando a comandar o mundo”

Memphis é uma das três cidades mais importantes da música norte-americana, com Nova Orleans e Nashville, famosa por ser a casa de Elvis Presley entre 1948 e 1977. A mansão Graceland, patrimônio da família Presley, continua sendo um dos pontos mais visitados do estado, atraindo cerca de 600 mil pessoas por ano. Ofusca o fato de que, poucos sabem, foi em Memphis que o pastor batista Martin Luther King Jr., prêmio Nobel da Paz, foi assassinado em março de 1968, aos 39 anos, durante uma visita em apoio aos trabalhadores em greve no serviço de saneamento da cidade.

Martin Luther King reivindicava salários dignos e mais postos de trabalho para a população negra. Além disso, defendia os direitos das mulheres e foi contra a Guerra do Vietnã, que considerava moralmente corrupta. Formado na Universidade de Boston, tornou-se pastor e membro da Associação Nacional para Avanço das Pessoas de Cor. Destacou-se como líder dos direitos civis por organizar protestos por todo o sul dos Estados Unidos, inclusive o boicote ao sistema de ônibus de Montgomery. Em Birmingham, no Alabama, em 1963, foi preso por duas semanas ao participar de um protesto, o que só aumentou seu prestígio.

Quando foi solto, King liderou a Marcha sobre Washington, na qual proferiu seu famoso discurso “Eu tenho um sonho”, que está entre os dez mais importantes do século XX, no qual afirma: “Tenho um sonho de que meus quatro filhos viverão um dia em uma nação onde não serão julgados pela cor de sua pele, mas pelo teor de seu caráter”. Seu êxito político se deve não somente à sua combatividade e resiliência e, enfim, ao seu martírio, mas à estratégia assentada em três eixos: a luta contra a ignorância, a não violência e o combate às desigualdades.

O pastor batista se inspirou num outro grande líder do século XX, Mahatma Gandhi, que derrotou o Império Britânico com métodos não violentos e muita perseverança na sua campanha pela independência da Índia. A crença de supremacia racial no Sul dos Estados Unidos era muito arraigada, mas não era um fenômeno isolado, mesmo depois da derrota dos nazistas na II Guerra Mundial. Ainda há muita gente que pensa assim. Na lógica da discriminação, crenças fervorosas estimulavam as pessoas a cometerem atos bárbaros, que exigiam uma mudança de atitude como resposta para detê-los. King dizia que “a ignorância sincera” era a ameaça mais perigosa que existe na face da Terra.

O sistema como um todo era racista no Sul dos Estados Unidos; King defendia a ação direta como forma de protesto para romper o bloqueio político-institucional existente, reformar a política e garantir a participação dos negros na democracia americana, o que se tornou, mais tarde, um objetivo alcançado plenamente, com a até então inimaginável eleição de Barack Obama à Presidência da mais poderosa nação do planeta. Na prática, o movimento pelos direitos civis teve que vencer as atitudes das maiorias em relação às minorias, para que essas pudessem usufruir de uma mudança duradoura.

Destino
Ao contrário de Malcolm X e Stokeley Camichael, líderes negros radicais, que defendiam a luta armada, King via a não violência nas ações diretas como uma demonstração de força moral, ainda que isso significasse apanhar da polícia durante os protestos. Foi agredido e ferido algumas vezes, mas nunca revidou fisicamente. Houve situações em que chegou a cancelar protestos e evitar discursos para não estimular mais violências. Entretanto, como até hoje está em nossas memórias, as cenas de ações brutais de policial contra os negros acabaram se transformando em poderoso instrumento de formação de uma opinião pública contrária à discriminação.


Decisiva para a ampliação da luta contra o racismo foi a agenda de King contra as desigualdades, lançada em 1963, com a “Marcha em Washington por Emprego e Liberdade”. Exigia que o governo investisse pesado contra a pobreza, com um programa de três pontos: renda mínima, moradia digna e acesso ao mercado de trabalho. Ele acreditava que a pobreza e a ignorância caminham de mãos dadas, o que é verdade.

King confrontou o ethos do “destino manifesto”, a doutrina do XIX que justificou a expansão territorial e a supremacia branca nos Estados Unidos, cuja ideia central era a de que Deus estaria ajudando os norte-americanos a comandarem o mundo. Expressão cunhada pelo jornalista John Louis O’Sullivan, no ano de 1845, coincidiu com a Marcha para o Oeste. Sustentava que a “providência divina” havia lhes dado o direito de conquista de todo o continente e também a missão de levar a liberdade a todos os povos. Muitos até hoje acreditam nisso, inclusive aqui no Brasil.

Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo - CB

 

sábado, 23 de janeiro de 2016

Retroescavadeiras roubadas em Mariana - a prova da certeza absoluta da impunidade

A força da lei do mais forte

A ousadia do roubo das máquinas usadas para recuperar Mariana só se explica se houver a certeza absoluta da impunidade

Há alguns dias, uma imensa pedra se desprendeu e rolou morro abaixo sobre uma comunidade em Vitória. Por sorte, não acertou ninguém, e não se perderam vidas, mas destruiu tudo o que estava em seu caminho. Além disso, abalou o equilíbrio que mantinha no lugar um conjunto de blocos de granito. Outras pedras de várias toneladas podem rolar a qualquer momento. A Defesa Civil que já havia alertado os moradores sobre os riscos do lugar onde estavam se estabelecendo — evacuou a área e tomou providencias para que as famílias deslocadas se abrigassem em espaços provisórios enquanto durem as obras de contenção.

A partir daí, repete-se o quadro que vemos por todo o país diante de catástrofes semelhantes — sejam elas deslizamentos, enchentes ou de qualquer outra natureza. Alguns moradores têm de ser retirados quase à força e, na primeira oportunidade, voltam aos locais de onde foram obrigados a sair. Mesmo correndo grandes riscos, muitas vezes não conseguem seu objetivo: defender o que é seu, tudo o que têm na vida. Não podem contar com um policiamento eficiente para proteger os parcos bens, adquiridos com tanta dificuldade. 

Os ladrões são mais rápidos. Em poucas horas, saqueadores já arrombaram e depenaram as casas, levando roupas, móveis, eletrodomésticos. O tão celebrado homem cordial brasileiro mais uma vez revela sua compaixão zero. E nisso não é diferente dos saqueadores que fizeram algo parecido em Nova Orleans após a passagem do furacão Katrina. Analistas falam em refreamento da solidariedade e da empatia. Ou acirramento da competição e da hostilidade. Em terras tupiniquins, somada à mais absoluta certeza de impunidade. Até mesmo com as desculpas cínicas desse personagem bem nosso, o ladrão coitadinho, que também é carente de tudo e precisa pensar no amanhã de sua família, ou acha que nesse caso não haveria lei proibindo, já que eram bens abandonados, largados, deixados para trás, sem dono.

Em outra escala, algo disso se repete nos desvios de merenda escolar ou de doações para vítimas de enchentes, e no que agora ocorreu após o rompimento da barragem em Mariana. Chega a ser inacreditável. Antes de mais nada, roubar máquinas que trabalhavam para começar a minorar os efeitos de uma tragédia dessa dimensão é falta de compaixão e de responsabilidade cívica em grau extremo, indigna da espécie humana. Qualquer bando de cachorros vadios tem mais sentido de coletividade.

Então uma quadrilha consegue roubar do canteiro de obras as retroescavadeiras e demais máquinas que lá estavam, sendo utilizadas para começar a recuperar o terreno destruído e recoberto da lama de dejetos? Tantas assim? Tão grandes? Tão lentas? Sem deixar pistas? Ninguém se deu conta? Foram abduzidas pelo ET de Varginha, que anda atacando novamente? Não dá para imaginá-las sendo removidas de balão ou helicóptero, sem serem detectadas pela Polícia Rodoviária. Ou, como nas histórias em quadrinhos, de super-heróis e supervilões, sendo borrifadas de tinta invisível ou sofrendo os efeitos de um raio desintegrador que só iria reintegrá-las muito longe, talvez no Planeta Mongo. A não ser que estejam em algum esconderijo subterrâneo, junto com as vigas de concreto roubadas da Avenida Perimetral, nas barbas de todo mundo, e jamais localizadas
.
Como ninguém percebeu algo dessa dimensão? Dá para acreditar nessa história mal contada? A ousadia de uma ação dessas só se explica se houver a certeza absoluta da impunidade. Da mesma forma que esses desvios de milhões do dinheiro publico, de que o país não para de tomar conhecimento. Tudo amparado na convicção de que a lei não é para valer, sempre pode ser burlada — experiência que se repete na vida do cidadão. Ou se repetia, o que só confirma a importância da Lava-Jato e do julgamento do mensalão.

Mas as leis físicas se impõem nas barragens que se rompem, nas encostas que deslizam com as chuvas, nos rios assoreados que inundam cidades impermeabilizadas onde suas águas não encontram a porosidade da terra. Ou na poluição do ar pelos combustíveis fósseis ou pelo pó de minério ao longo das ferrovias de mineradoras. Ou no esgoto que emporcalha as praias brasileiras, de Santa Catarina ao Maranhão, passando pela triste Baía de Guanabara. Também as leis da economia, em sua inexorável matemática, estão mostrando no que dá gastar mais do que se ganha ou fingir que se cresce sem produzir mais.

Só que essas leis físicas ou matemáticas não cedem a argumentos, slogans ou chicanas, nem estão sujeitas a serem compradas por quem dá mais — como os depoimentos e investigações da Lava-Jato estão revelando que acontece com emendas enxertadas em medidas provisórias, às escondidas, mediante propina a políticos, uma das mais repugnantes práticas de corrupção jamais inventadas. A confirmar, para nossa desgraça, que estamos sob o domínio da Lei da Selva. Resta à população aguentar a consequência e lembrar disso na hora do voto. Se não estiver anestesiada.


Por: Ana Maria Machado é escritora - O Globo