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domingo, 7 de janeiro de 2024

Inquérito do STF contra ‘atos antidemocráticos’ é declaração permanente de guerra - O Estado de S. Paulo

J. R. Guzzo

Investigação aberta para apurar notícias falsas vem servindo como licença para suprimir direitos civis e criar um Estado policial

O Brasil não vai ter paz enquanto não for fechado o inquérito que o Supremo Tribunal Federal, através do ministro Alexandre de Moraes, abriu cinco anos atrás para investigar “atos antidemocráticos”.  
Desde então, vem servindo como uma licença oficial para se suprimir direitos civis, anular qualquer lei em vigor no Brasil e criar um Estado policial neste país.  
O inquérito é uma declaração permanente de guerra. 
Foi aberto para apurar “notícias falsas” que poderiam atingir a honra e a segurança do STF. 
De lá para cá, como se diz hoje, “viralizou”. 
Foi gerando um inquérito criminal depois do outro (tantos, que não se sabe mais ao certo quantos são no momento) e passou a incluir todos os delitos que alguém possa praticar, inclusive os que não existem em lei nenhuma. 
É uma aberração jurídica que não existe, nem seria admitida, em qualquer democracia séria do mundo.
 
É possível, naturalmente, que a ideia de paz seja a última coisa que passe na cabeça do ministro, do STF e da parceria que mantêm com o governo Lula. (Em cinco anos de inquérito não houve um único indiciado, nenhum, que possa ser descrito como de “esquerda” – o que faz do Brasil o único país do planeta em que só a direita é capaz de mentir.) 
Os inquéritos, afinal, permitem que o Supremo e seus sócios façam o que bem entendem: prisões, censura, bloqueio de contas bancárias, apreensão de passaportes, quebra de sigilo, confisco de celulares e tudo o que possa servir como instrumento de repressão
É como nas leis de “segurança do Estado” que existem em todas as ditaduras para perseguir adversários políticos. 
O inquérito perpétuo do STF (“só termina quando terminar”, diz Moraes”) faz a mesma função, dizendo que defende a “segurança da democracia”. Tudo bem – mas se não quiserem a paz, terão de apostar cada vez mais na força e desrespeitar a cada vez mais a lei.
Não há, obviamente, nenhuma ameaça à democracia que justifique nada do que o ministro está fazendo. 
Essa realidade, somada às ilegalidades em massa dos inquéritos, levam à uma “cristalina e pacífica conclusão”, como diz em editorial do Estadão:É tempo de os inquéritos criminais do STF relativos a atos antidemocráticos serem encerrados, de acordo com a lei”.  
Não é possível, com base na razão, contestar o que diz o editorial. 
Em vez de apresentar argumentos, o sistema de propaganda oficial veio com essa assombrosa entrevista na qual o ministro Moraes revelou, entre outros horrores, que iria ser enforcado em praça pública pelos golpistas. [declaração  que se junta ao declarado sobre agressão no aeroporto de Roma.]
É menos jornalismo do que um exercício de taquigrafia em que só o ministro fala. 
Mas é mais um grito de guerra.
 
J. R. Guzzo, colunista - O Estado de S. Paulo 
 
 
 

terça-feira, 25 de abril de 2023

O que o transativismo tem a ver com direitos civis? - Revista Oeste

Flávio Gordon

A violência da qual os transativistas alegam ser vítimas não é exatamente similar à que acometia os negros no passado, pois inclui coisas como referir-se a eles com o pronome errado



"Direitos trans são direitos humanos", na Marcha das Mulheres, na cidade de Nova Iorque | Foto: Shutterstock

“Quando la masa actúa por sí misma,
lo hace sólo de una manera, porque no tiene otra:
lincha”
José Ortega y Gasset

“Tribalismo é a resposta à imaturidade porque
permite ao homem permanecer
imaturo com a sanção de seu grupo”
Eric Voegelin


Aconteceu em 14 de novembro de 1960, em Nova Orleans, Estados Unidos. Nesse dia, Ruby Bridges, uma menina negra de 6 anos de idade, pisou pela primeira vez numa escola destinada exclusivamente a crianças brancas, como determinavam as leis de segregação racial então vigentes.  
Ao fim do dia, revoltados com a presença de Bridges naquele espaço reservado “only for whites” (como postulava o odioso jargão da época), uma multidão de aproximadamente mil racistas se manifestou violentamente em frente à escola. Aos berros, exigiam a expulsão imediata de Bridges. Muitos chegaram a cuspir na criança, que também foi alvo de ameaças de morte. 
 
Emblemático da segregação racial na América dos anos 1960, quando os negros sofriam toda sorte de violência física e moral, o episódio foi um dos estopins para a célebre campanha dos direitos civis. 
Encarnada pelo universalismo de Martin Luther King Jr., como se sabe, a vertente mais consagrada do movimento pregou a resistência pacífica ao racismo, apostando que a vitória política viria do contraste entre a fortaleza moral dos ativistas negros e a virulência doentia dos segregacionistas brancos. De certa forma, a postura altiva da pequena Bridges, que enfrentou com notável impavidez os insultos e as agressões, já fornecera o modelo dessa linha de ação. Ruby Bridges, 6 anos de idade, foi a primeira criança negra a frequentar uma escola até então destinada exclusivamente a brancos | Foto: Wikimedia Commons
 
Seis décadas depois, uma nova campanha pelos direitos civis irrompe na América e no mundo: o transativismo.  
E aqui uso deliberadamente transativismo no lugar de transgenderismo, para enfatizar o caráter político-ideológico da causa, a qual, além de incluir entre os adeptos um sem-número de indivíduos não trans (ou “cisgênero”, como se diz no jargão militante), também exclui pessoas trans que não a corroboram. 
Seja como for, a inserção do movimento trans no rol da luta pelos direitos civis é hoje uma questão inegociável para as elites culturais do Ocidente, tendo sido consagrada por ninguém menos que Joe Biden, o qual, em janeiro de 2020, resumiu num tuíte a posição hegemônica entre o beautiful people: “Sejamos claros! A igualdade para os transgêneros é a grande questão de direitos civis do nosso tempo. Não há espaço para hesitação quando falamos de direitos humanos básicos”.

Em 25 de março, num parque na cidade de Auckland (Nova Zelândia), onde proferiria uma palestra sobre os direitos das mulheres, Posie Parker foi cercada por uma multidão raivosa de ativistas trans, que a xingaram, a ameaçaram de morte e lhe cobriram com molho de tomate 

Martin Luther King Jr. e Malcolm X no debate do Senado sobre a Lei dos Direitos Civis de 1964 | Foto: Wikimedia Commons

Mas, quando comparamos os dois movimentos de direitos civis — o dos negros, nos anos 1960, e o dos transativistas, nos anos 2020 —, notamos certas diferenças saltando aos olhos. Em primeiro lugar, o modelo de ação política do transativismo não parece ser o pacifismo altivo de Martin Luther King, mas, ao contrário, a pregação violenta, revolucionária e histriônica de um Malcolm X ou dos Panteras Negras. Em segundo lugar, a violência da qual alegam ser vítimas não é exatamente similar à que acometia os negros no passado, pois inclui coisas como referir-se a eles com o pronome errado, pedir (mesmo educadamente) para que usem o banheiro compatível com o seu sexo biológico, ou opinar contrariamente à presença de homens biológicos (conquanto identificados como mulheres) nos esportes femininos. Diante dessas contrariedades, os transativistas têm reagido com violência e fúria. Frequentemente em bando.

Alguns casos viralizaram na internet. Na Universidade de Brasília (UnB), um transativista ameaçou de agressão física uma aluna que, além de pedir que ele saísse do banheiro feminino, cometeu o pecado de tratá-lo por “cara”. “Eu não são sou um cara. Não tem nada que me impeça de meter a mão na sua cara” — berrou, transido de ódio, o homem que se sente mulher. Reação semelhante teve um transativista na cidade de Albuquerque (Novo México, EUA). Quando o atendente de uma loja o tratou inadvertidamente por “senhor”, em vez de “senhora”, o homem teve um ataque de fúria. Sentindo-se mortalmente violentado, agiu de modo simetricamente inverso ao de Ruby Bridges: gritou, xingou, chamou o atendente para a briga, e saiu chutando produtos do estabelecimento. Em suma: armou aquilo que, no Brasil, se conhece popularmente como “barraco”. Episódios semelhantes se sucedem dia após dia, num clima de opinião cada vez mais propício à histeria coletiva.

Mas a diferença entre o transativismo e a campanha pelos direitos civis dos negros fica ainda mais evidente ao lembrarmos de dois eventos recentes, no qual mulheres críticas ao movimento foram cercadas, silenciadas e agredidas por uma turba de transativistas. Foi o caso, por exemplo, da britânica Kellie-Jay Keen-Minshull, também conhecida como Posie Parker, uma militante feminista. Em 25 de março, num parque na cidade de Auckland (Nova Zelândia), onde proferiria uma palestra sobre os direitos das mulheres, Parker foi cercada por uma multidão raivosa de ativistas trans, que a xingaram, a ameaçaram de morte e lhe cobriram com molho de tomate. Sob escolta policial, ela teve de fugir às pressas do lugar, interrompendo a sua turnê intitulada “Deixem as mulheres falarem”. Ali, em Auckland, os transativistas não deixaram. Posie Parker tornou-se alvo da esquerda identitária | Foto: Reprodução/Twitter

Dias depois, deu-se nos EUA um episódio parecido, tendo por vítima a campeã universitária de natação Riley Gaines, uma jovem de 22 anos. Na San Francisco State University, onde havia ido palestrar contra a participação de homens biológicos nos esportes femininos, Gaines foi acossada por uma turba iracunda de transativistas, que, acusando-a de “transfobia”, por pouco não a linchou. 
Refugiando-se durante mais de três horas numa sala embarricada da universidade, Gaines conseguiu escapar com vida, não sem antes ser atingida por socos desferidos por outro homem que se sente mulher, e que, com base nesse sentimento, reivindica o direito de bater em mulheres que, mais do que se sentir, de fato o são.
Compare-se mais uma vez o caso da menina negra Ruby Bridges com esses episódios, que Biden e seus companheiros ideológicos descrevem como “a questão de direitos civis do nosso tempo”, equiparando-a, portanto, à luta contra a segregação racial. 
, entre os dois eventos, tamanha inversão das posições respectivas de vítima e agressor, que só mesmo uma mente possuída por ideologia poderia reuni-los na mesma prateleira dos “direitos civis”. 
Ora, nos exemplos supracitados, são justamente os indivíduos críticos dos transativistas que estão em condição similar à de Bridges: cercados, ameaçados, xingados, cuspidos e agredidos por uma turba furiosa. Os agressores são os transativistas eles próprios, os quais, na situação social de linchamento, ocupam a posição linchadora. 
Trata-se da mesmíssima posição outrora ocupada pelos racistas brancos que queriam linchar a menina negra, cuja mera presença os ofendia de morte, soando-lhes como uma violência intolerável. 
 
Resta-nos ainda investigar a origem dessa suscetibilidade patológica, capaz de transformar os transativistas, quando tomados individualmente, em pessoas agressivas com os nervos à flor da pele, e, quando tomados coletivamente, numa massa de linchadores. 
Sobre que frágeis fundamentos se sustenta uma persona política capaz de colapsar emocionalmente diante de um pronome indesejado? 
Quais são as premissas que o transativismo não permite serem questionadas? 
Que realidade ameaçadora é essa que buscam recalcar na base da gritaria e da violência, e cuja mera enunciação parece “ferir-lhes a existência”? 
Essas são algumas das perguntas que tentaremos responder no próximo artigo.


Leia também “A epidemia trans"

 

Flávio Gordon, colunista - Revista Oeste


sábado, 14 de janeiro de 2023

O Brasil da obediência - Revista Oeste

 J. R. Guzzo

Governo e Supremo disparam um ataque sem precedentes ao conjunto de leis em vigor no Brasil, aos direitos civis do cidadão e às liberdades públicas

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, governadores e autoridades cruzam a Praça dos Três Poderes para visitar as instalações da sede do Supremo Tribunal Federal (STF) um dia após atos que depredaram a sede do tribunal, o Congresso e o Palácio do Planalto | Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, governadores e autoridades cruzam a Praça dos Três Poderes para visitar as instalações da sede do Supremo Tribunal Federal (STF) um dia após atos que depredaram a sede do tribunal, o Congresso e o Palácio do Planalto - Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil 

O Brasil não teve uma mudança de governo no dia 1º de janeiro de 2023está tendo, pelo que mostra a observação dos fatos, uma mudança de regime. Em apenas uma semana, a nova gestão do presidente Lula tinha 1.500 presos num ginásio de esportes em Brasília — nunca houve isso em nenhuma ditadura brasileira do passado, e com cenas que lembram o Estádio Nacional de Santiago do Chile no golpe do general Pinochet. Foi decretada intervenção federal em Brasília. O governador, eleito três meses atrás já no primeiro turno, foi deposto do cargo por três meses. 

Já existe, antes mesmo do novo Congresso entrar em funcionamento, uma CPI pronta para fazer acusações criminais contra adversários do governo. Foi convocada a Brasília a Força Nacional de Segurança, um grupo extraído das polícias militares para atuar em locais onde não há presença policial regular — convocada para Brasília, uma das cidades mais policiadas do país. 

Há um pedido de extradição, sem base legal, contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, que teve de internar-se no hospital dos Estados Unidos para cuidar de efeitos da facada que quase o matou em 2018. 
Apareceram até tanques de guerra nas ruas da capital, depois que tinham acabado a invasão e a depredação do Congresso, do Supremo e do Palácio do Planalto no domingo dia 8 de janeiro.
crimes manifestantes embaixador
Ginásio da PF ficou lotado com manifestantes que estavam em 
acampamento | Foto: Reprodução/Twitter
A eleição de Lula, ao que parece, não foi suficiente; vê-se agora que foi um passo, entre outros, para a formação de um Brasil sem oposição real. Está em execução neste momento um projeto que pretende manter o país sob o controle de uma coligação entre o STF e o Executivo, através do Ministério da Justiça e do restante do aparelho de repressão do Estado. A situação de ilegalidade que tem estado em vigor nos últimos anos por ação do Poder Judiciário, e que levou Lula de volta à presidência da República depois de suas condenações por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, está sendo confirmada — em vez de um retorno à normalidade após as eleições, que terminaram exatamente com o resultado que queriam, o governo e o Supremo disparam agora um ataque sem precedentes ao conjunto de leis em vigor no Brasil, aos direitos civis do cidadão e às liberdades públicas. 
E a “pacificação” do país, que Lula pregou durante toda a sua campanha eleitoral? Não existe, simplesmente.  
O que existe é o contrário da paz: prisões em massa, ameaça de processar penalmente milhares de pessoas, censura nas redes sociais e mais todo um arsenal repressivo de multas, bloqueio de contas bancárias e intimações para depor na Polícia Federal.

A eleição de Lula, ao que parece, não foi suficiente; vê-se agora que foi um passo, entre outros, para a formação de um Brasil sem oposição real

A Lei Maior do Brasil, na prática, não é mais a Constituição Federal de 1988 é o inquérito perpétuo, sem limites e ilegal que o ministro Alexandre Moraes conduz há mais de três anos para punir o que ele, a esquerda e a mídia chamam de “atos antidemocráticos” e “desinformação”, crimes que não existem na legislação brasileira — não, certamente, da forma como são apresentados, e não com a finalidade de fazer perseguição política. Este inquérito, em violação a toda legislação brasileira, não tem data para ser encerrado. É conduzido em sigilo. 
 Não está livremente aberto aos advogados dos indiciados. 
Toma decisões sem o indispensável processo que as leis exigem. 
Acusa, investiga, condena e aplica punições tudo ao mesmo tempo, e segundo a vontade de uma pessoa só, o ministro Moraes. 
Não está sujeito a nenhum recurso, ou a qualquer tipo de apreciação superior. 
Não toma conhecimento da existência do Ministério Público, único órgão do Estado brasileiro autorizado por lei a acusar alguém neste país. 
É o Ato 5 do regime de exceção que está sendo imposto ao país neste momento.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, os presidentes da Câmara
dos Deputados, Arthur Lira, e do Senado Federal em exercício,
Veneziano Vital do Rêgo, governadores e governadoras dos 26
estados e do Distrito Federal se reúnem em Brasília (9/1/2023) -
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ - Agência Brasil

Como um presidente que prometia há pouco um “Brasil Feliz”, a “volta” da “democracia” e o “fim da ditadura de direita” pode acabar a sua primeira semana de governo com 1.500 pessoas presas numa espécie de campo de concentração em Brasília?  
A face verdadeira da “nova ordem” é essa que está se vendo aí. 
Sua prioridade não é começar uma administração diferente da anterior, executar um plano de governo, ou cumprir compromissos de campanha é eliminar o outro lado, e trocar o Estado de Direito pela força policial em que se transformou o STF no Brasil de hoje.  
O Sistema Lula, com o apoio ativo do Supremo, não está propondo um confronto político com os adversários, ou uma disputa legítima com a oposição — está numa ação de vingança, ou de profilaxia. 
Desde o dia 1º de janeiro está deixando claro que o seu programa de governo começa com a eliminação dos “inimigos”, ou quem está contra; vai se fazer tudo, digam o que disserem as leis, para garantir que o “outro lado” não volte nunca mais a existir politicamente na vida nacional. 
Não há, por parte do presidente e das forças que o apoiam, nenhum gesto de conciliação. Ao contrário, o recado é: “Vocês vão ser presos, multados, censurados. Suas contas no banco vão ser bloqueadas. Vocês não vão poder exercer livremente suas atividades. Vocês vão perder o emprego”.

Não há terroristas que levam cadeirinhas de praia para cometer atos de terror — terrorista joga bomba, mata gente e explode estação de trem; golpista não dá golpe de estado sem tropa, canhão e comando militar. Mas dois erros, se efetivamente houve dois erros, não fazem um acerto — e se houve mais culpados a única saída é punir a todos por igual

Não se trata de uma suposição. “As prisões não são uma colônia de férias para golpistas”, afirmou o ministro Alexandre de Moraes, do STF, ao comentar as observações de que estaria havendo tratamento desumano para os presos de Brasília. Disse, também, que “não se pode tratar de forma civilizada” os acusados e que “não haverá apaziguamento” com os que ele acusa de serem “golpistas”, ou “terroristas” na linguagem oficial do regime em implantação termo adotado de imediato pelo consórcio da mídia para se referir aos presos ou, mais geralmente, aos manifestantes que vêm se reunindo em frente aos quartéis para contestar o resultado da eleição presidencial.  

“O tempo das prisões em flagrante já passou”, disse o novo ministro da Justiça. “Agora as prisões devem ser preventivas e temporárias.” Ou seja: o governo deu a si próprio autorização para prender cidadãos com base naquilo que julgar como conduta criminosa. É um retrato preciso de um governo que tinha como prioridades, no discurso de campanha, “humanizar as penitenciárias” e “desencarcerar” os criminosos.

O presente surto de repressão vem em seguida à invasão dos edifícios dos Três Poderes, por parte de manifestantes que estavam em Brasília protestando contra o resultado da eleição presidencial e pedindo “intervenção militar”, ou que vieram para a capital no fim de semana com o propósito específico de promover a baderna. Tanto faz se são uma coisa ou outra, ou se havia marginais infiltrados entre eles com objetivos políticos.  
Não importa se as invasões foram feitas pela direita, a esquerda ou o Arcanjo Gabriel o que se fez foi crime, e não há desculpas, atenuantes ou justificativas para os crimes cometidos. 
A lei proíbe a violência e a destruição de patrimônio público; é errado em qualquer circunstância, e não hámas” ou “veja bemque se apliquem ao que houve. O episódio todo, é verdade, está marcado por mistérios que com certeza nunca serão esclarecidos. 
Não se entende por que, sabendo que haveria protestos em Brasília, nenhuma autoridade pública fez absolutamente nada para proteger os prédios invadidos. 
 
Também não há explicação plausível para que, com toda a sua estrutura de segurança, os órgãos do governo tenham permitido que os autores das invasões destruíssem livremente, durante três horas seguidas, os edifícios que foram atacados. 
Não ficou claro como Lula, em suas primeiras palavras sobre o episódio, tinha pronto, já datilografado e ao alcance da mão, o decreto de intervenção no Distrito Federal.  
É incompreensível, também, por que manifestantes que protestam há 70 dias, sem causar o mínimo incidente em qualquer ponto do Brasil, tenham enlouquecido de repente. Não há terroristas que levam cadeirinhas de praia para cometer atos de terror terrorista joga bomba, mata gente e explode estação de trem; golpista não dá golpe de estado sem tropa, canhão e comando militar. Mas dois erros, se efetivamente houve dois erros, não fazem um acerto — e se houve mais culpados a única saída é punir a todos por igual.

O problema está no tipo, na extensão e nas intenções da retaliação lançada pela máquina oficial.  
Está, também, na igualdade de critérios se as violências de Brasília têm de ser tratadas com base na legalidade, a violação permanente da lei por parte do inquérito ilegal do STF e a descida do governo para a repressão também não deveriam ser aceitas e tratadas como “defesa da democracia”. O artigo 359 do Código Penal, que substitui a extinta Lei de Segurança Nacional, pune como crime a tentativa, através de “violência ou grave ameaça”, de abolir o Estado democrático de direito ou depor o governo legitimamente constituído. 
Não é prevista qualquer outra hipótese para a prática desses delitos — e, em qualquer caso, a punição tem de obedecer a devido processo legal, com garantias para os acusados, pleno acesso aos autos por parte dos advogados e procedimentos públicos. 
 
Até as invasões de Brasília não houve violência ou grave ameaça a nada e a ninguém — e, apesar disso, cidadãos têm sido presos, multados ou perseguidos com a acusação de cometerem “atos antidemocráticos”, até por conversarem no WhatsApp. E agora? Vai ficar pior? 
Importa, mais que tudo, o ataque às liberdades — e a montagem de um país sem dissidências, sem o direito de se manifestar em público e sem oposição de verdade. Se qualquer brasileiro pode ser acusado de cometer “atos antidemocráticos”, “desinformação” e outros crimes não previstos na lei, não existe liberdade política efetiva neste país.  
O que o Sistema Lula-STF está dizendo, na prática, é que não será tolerado um país que não preste obediência ao governo — e no qual a oposição, como em estádio de futebol, tem de ficar como a arquibancada que vaia o juiz, mas não influi em nada no resultado.  
José Dirceu, uma das estrelas do PT, já disse que ganhar eleição não tem nada a ver com ganhar o poder. Deve ser isso.

Leia também “Ditadura em construção”

J. R. Guzzo, colunista - Revista Oeste