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quinta-feira, 25 de junho de 2020

Saudades do Mandetta - Nas entrelinhas

“A Fortuna de Bolsonaro pode ser comparada à do presidente Trump, que também defendeu o uso de cloroquina e se opôs ao isolamento social”

O Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou, ontem, um relatório do ministro Vital do Rêgo que resume o que todo mundo estava vendo: falta de diretrizes e coordenação entre entes federados e órgãos oficiais no combate à covid-19, por culpa do governo federal. Esse era o ponto forte da gestão de Luiz Henrique Mandetta, defenestrado do cargo porque o presidente da República ficou enciumado da popularidade adquirida pelo então ministro da Saúde e discordava da estratégia de isolamento social que havia adotado. Bolsonaro queria distribuir cloroquina a todos os infectados e implementar a atual estratégia de “imunização de rebanho”.

[a notória competência e amplos conhecimentos do ilustre articulista, no jornalismo e na cultura geral, nos obriga a poupar nossos dois leitores, "ninguém e todo mundo", de uma tediosa explanação sobre crescimento exponencial - sabemos que o crescimento exponencial pode resultar de dobrar em um curto espaço de tempo.

Felizmente, o número de mortes - apesar de trágico, desesperador - não cresce de forma exponencial, e o de recuperados, ainda que de forma lenta, representa sempre um percentual crescente em reação ao total de infectados.
Em que pese que a mídia tem sempre uma propensão a não citar o número de recuperados (quando cita não o faz com o destaque indispensável = atualmente gira em torno de 70% do total de contaminados.
Aliás, chega a ser interessante que a mídia reclamou de omissão de dados nas informações do Ministério da Saúde - informações apresentadas com profissionalismo, as do Mandetta eram comícios.
Agora, que recebem informações completas e sem atrasos,  reclamam da ausência do ministro interino da Saúde.] 

Quando Mandetta saiu da Saúde, em 16 de abril, o Brasil contabilizava 1.924 mortes; hoje, já são quase 54 mil, uma tragédia anunciada. Na ocasião, as pesquisas mostravam que 76% dos entrevistados aprovavam o desempenho do ministro da Saúde, que antes era avaliado positivamente por 55%. A pandemia havia catapultado sua popularidade, graças ao excepcional desempenho na liderança do Sistema Unificado de Saúde (SUS). Ao contrário, a atuação de Bolsonaro, que havia entrado em guerra com os governadores de São Paulo, João Doria, e do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, e se descolado de Mandetta, havia oscilado para baixo, de 35% para 33%. Os ciúmes do clã Bolsonaro — verbalizado nas redes sociais e entrevistas do presidente da República — puseram tudo a perder. Para substituir Mandetta, Bolsonaro escolheu o médico oncologista Nelson Teich, que ficou apenas um mês na pasta e caiu fora, depois da fatídica reunião ministerial de 22 de abril, cujas imagens revelam seu espanto com o que aconteceu na ocasião. A essa altura da pandemia, já eram mais de 14 mil mortos.

Os ministros militares do Palácio do Planalto — os generais Augusto Heleno (GSI), Rego Barros (Casa Civil), Fernando Azevedo (Defesa) e Luiz Ramos (Secretaria de Governo) — bem que tentaram segurar Mandetta no cargo, mas foi um esforço em vão. A ala radical do governo, liderada por Carlos Bolsonaro — que não faz parte do governo, mas tem grande influência no governo — já havia selado o destino de Mandetta. No início de abril, Bolsonaro disse à rádio Jovem Pan que o subordinado deveria “ter mais humildade” e “ouvir um pouco mais o presidente”. Ao saber da crítica, Mandetta falou com o chefe por telefone e ouviu dele que deveria “pedir demissão”. Respondeu: “O senhor que me demita”. Era o fim da linha.

Efeito Orloff
No relatório apresentado ao Tribunal de Contas, Vital do Rêgo critica a ausência de integrantes técnicos da área de saúde no comitê de gestão da pandemia governo: “Os cargos-chave do Ministério da Saúde, de livre nomeação e exoneração, não vêm sendo ocupados por profissionais com essa formação específica”. Segundo ele, isso pode levar a decisões não baseadas em questões médicas e científicas, o que resulta em “baixa efetividade das medidas adotadas de prevenção e combate à pandemia, desperdícios de recursos públicos e aumento de infecções e mortes”. O TCU recomendou a inclusão, como membros permanentes do Comitê de Crise da Covid-19, dos presidentes do Conselho Federal de Medicina, da Associação Médica Brasileira e do Conselho Nacional de Secretários de Saúde, com direito a voz e a voto. Entretanto, o governo não é obrigado a cumpri-la.


O relatório também destaca a ausência de ampla divulgação das ações de enfrentamento à crise de saúde pública e recomenda a inclusão de um representante da Secretaria de Comunicação Social no Centro de Coordenação de Operações do Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos da Covid-19 (CCOP). O TCU determinou, porém, que a Casa Civil passe a divulgar no prazo de 15 dias na internet as atas das reuniões do Comitê de Crise e do CCOP. A Fortuna de Bolsonaro pode ser comparada à do presidente Donald Trump, dos Estados Unidos, que também defendeu o uso de cloroquina e inicialmente se opôs ao isolamento social, embora agora tente se reposicionar, depois de ver sua reeleição caminhar em direção ao brejo.

Hoje, Trump amarga 14 pontos atrás do seu concorrente democrata, Joe Biden. Agora, o principal aliado de Bolsonaro na política externa, embora se declare seu amigo, cita o Brasil como mau exemplo a ser seguido no combate à pandemia. Bolsonaro cometeu um erro fatal ao demitir Mandetta, com quem dividiria o prestígio. Como diria o Conselheiro Acácio, personagem de Eça de Queiroz em O Primo Basílio, as consequências sempre vêm depois. A flexibilização precoce do isolamento social por governadores e prefeitos, pressionados por Bolsonaro, está provocando o aumento do número de casos da covid-19, inclusive, onde a pandemia estava sendo controlada. Além disso, o governo perdeu o rumo na economia em meio à recessão.

Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo, jornalista - Correio Braziliense


sábado, 5 de outubro de 2019

A pistola de Janot, o Mandarim de Eça e a República em reboliço - VEJA

Blog do Noblat

"O poder do Diabo só funciona em combinação com o lado obscuro do homem”


Todo o reboliço na República destes dias – político, jurídico, midiático e de marketing – foi causado não por fatos concretos e socialmente exemplares (como os destes dias no Peru), mas por querelas surreais. A maior delas, o caso da pistola levada pelo ex-procurador geral da República, Rodrigo Janot, para dentro do Supremo Tribunal Federal, com a intenção de atirar no ministro Gilmar Mendes e em seguida suicidar-se – descrito no seu livro de memórias e em conversas com jornalistas – , que faz-me lembrar da novela “O Mandarim”, de Eça de Queirós. Li várias vezes, quando aluno da Faculdade de Direito da UFBa. Escola onde também estudou o atual PGR, Augusto Aras, que tomou posse, esta semana, com discurso e entrevistas que mais confundem que esclarecem, principalmente em relação à Lava Jato, motor de propulsão nas investigações de corruptos e corruptores, no país.

Então, era recomendada nas aulas de Direito Penal, como tarefa quase obrigatória para os futuros bacharéis, a leitura do antológico conto do escritor português, considerado fundamental nos estudos jurídicos no Brasil, principalmente no aprendizado sobre o dilema e a diferenciação entre a intenção de praticar um delito e o crime propriamente dito. Aluno também, na época, da Faculdade de Jornalismo da UFBa, o tema para mim era duplamente atraente. Por mérito e justiça devo dizer: no meu caso, a recomendação expressa de “O Mandarim”, partiu do professor Thomas Bacelar, mestre referencial de Penal, na faculdade. Ex- presidente da seccional baiana da Ordem dos Advogados do Brasil e destacado ex-conselheiro federal da OAB. Além de um dos mais notáveis tribunos criminalistas da Bahia.

A novela de Eça, para refrescar a memória dos mais esquecidos, saiu em 1880, apenas dois anos depois do notável autor lusitano ter dado à luz sua obra prima: O Primo Basílio. “O Mandarim”, no dizer dos críticos e analistas literários, é um escrito fantasista, fantástico mesmo, e cômico, cuja narrativa é feita na primeira pessoa, por Teodoro, um advogado amanuense do Reino de Portugal, personagem central da novela, que propicia a refinada crítica que faz o autor à sociedade de seu tempo, “tão limitada que facilmente se deixa levar pelas aparências”. Na narrativa, primorosa e envolvente, registre-se ainda, a presença decisiva de uma figura “declaradamente romântica”, o Diabo.

O Diabo veste roupas da época dos “acontecimentos” descritos, para significar que o mal, na verdade, está bastante próximo do homem, até se confunde com ele mesmo. A novela, segundo um de seus analistas, sinaliza “que o poder do Diabo só funciona em combinação com o lado obscuro do homem”. O ponto de partida é um velho dilema moral – e suas conseqüências – , definido no século XIX como o “paradoxo do mandarim”, formulado originalmente pelo pensador Chateaubriand, e que resume-se a uma pergunta básica: “se você pudesse, com um único desejo matar um homem (neste caso na China) e herdar sua fortuna na Europa, com a convicção sobrenatural que nunca ninguém descobriria, você ; ; concretizaria esse desejo?”.
Mais não revelo, só recomendo a leitura atualíssima, nestes dias que correm em Brasília. E acrescento: um irônico viajante francês, de passagens por estas bandas do Atlântico Sul, certamente diria com seus botões: “Amaldiçoado seja aquele que pensar mal destas coisas!”.

Vitor Hugo Soares é jornalista, editor do site blog Bahia em Pauta. 
E-mail: vitors.h@uol.com.br

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