Será que o porteiro realmente viu um dos assassinos procurando por Bolsonaro, que nesse dia estava em Brasília?
Pensei em refletir sobre a nova geração de políticos e como a linguagem da infância ainda está presente no seu imaginário.
Mudei de eixo à tarde. Vi imagens do depoimento de Alexandre Frota na CPI das Fake News. Ele exibiu cartazes com frases do guru dos Bolsonaro, Olavo de Carvalho. Era tão escandaloso que fiquei tentado a examinar o avanço da linguagem pornográfica no discurso da extrema direita.
Foi então que vi aquele vídeo da hienas cercando o leão Bolsonaro e pensei em voltar ao universo infantil. Não houve tempo. Eduardo Bolsonaro invocou o AI-5, numa entrevista a Leda Nagle. Voltei aos anos 60 e pensei até em mostrar como as coisas mudaram nesse quase meio século. Desisti desse esforço pedagógico. As pessoas que confundem épocas tão díspares não o fazem por ignorância, mas por necessidade. Constroem um enredo mental para o papel que amariam representar. No caso de Eduardo Bolsonaro, é a vontade de reviver a ditadura, com poder absoluto sobre a vida e a liberdade de expressão dos outros.
Vejo surgir agora um novo personagem dramático: o porteiro do condomínio Vivendas da Barra. Ele é o mais antigo dos funcionários, deve conhecer todos os moradores, seus hábitos e relações superficiais. Sua lembrança do dia da morte de Marielle Franco enriqueceu as fantasias sobre a vizinhança de Bolsonaro com Ronnie Lessa, miliciano, matador e comerciante de armas. [lembrança que surgiu mais de 500 dias após a suposta pergunta]
Será que o porteiro realmente viu um dos assassinos [sic] procurando por Bolsonaro, que nesse dia estava em Brasília? Por que teria anotado o número da casa buscada pelo cúmplice do matador [sic] como se fosse a casa de Bolsonaro? Como pode ter ouvido a voz de seu Jair, sem estar sintonizado com o canal da Câmara dos Deputados, onde Bolsonaro estava naquele momento?
Mas por que um velho e experiente porteiro confundiu duas casas? Para nós que vemos imagens aéreas, elas são todas iguais. Somos traídos pela superficialidade de nossa percepção, como os esnobes que dizem que a caatinga é monótona porque toda a vegetação é igual.
Para ele, certamente cada uma delas tem uma história, desde o tipo de visitas aos pequenos cuidados cotidianos, instalação elétrica, vazamentos, no sentido literal.
Não entendo como pode ter confundido. Mentiu e enganou? Foi induzido? Sua memória funciona bem ou já dá sinais cotidianos de pequenas confusões? Para um roteirista, é relativamente fácil cobrir essas lacunas. Para mim, no entanto, os tempos são desconcertantes. Volto a perseguir a mancha. Também é desconcertante. Mas pelo menos vejo pessoas reais, com as luvas negras de óleo, tentando limpar as praias, proteger corais e mangues. Desenhos infantis, frases pornográficas, jovens aspirantes a ditador ou mesmo intrincados enredos policiais — tudo é uma espécie de desastre, mas pede outro tipo de voluntariado, equipamento e paciência.
Fernando Gabeira, jornalista - O Globo