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domingo, 14 de maio de 2023

As revoluções do transativismo - Revista Oeste

Flávio Gordon

Por que a ideologia de gênero é relativista no sentido cis e essencialista no sentido trans? 


Foto: Shutterstock
 
Ao fim do meu último artigo, observei o estranho fenômeno do ativismo transativista, que, muito embora se apresente como continuador do movimento pelos direitos civis, tem realmente muito pouco a ver com a tradição norte-americana do common sense. Não obstante a retórica do universalismo possa enganar os mais incautos, o que ressalta na agenda trans são a radicalidade, a virulência, o seu niilismo. Eis a principal marca do movimento identitário em sua versão mais extremada.

Ocorre é que, quando se dirigem a públicos extra-acadêmicos, e genericamente progressistas, os transativistas mais radicais costumam atenuar seu discurso, tentando angariar empatia e identificação geral. 
A coisa não tarda a mudar de figura quando os radicais estão em seus casulos acadêmicos, quando já não hesitam em moderar a linguagem. Num ensaio introdutório a uma coletânea de estudos sobre gênero, uma das enragés transativistas, Susan Stryker, chegou a propor que o maior propósito do transgenderismo era o de subverter o paradigma epistemológico do Ocidente. Nada menos. Para a alegada defesa de direitos individuais e proteções civis, a coisa parece ter ido bem além das chinelas… publicidade

Stryker e outros transativistas sabem que, no fundo, o que lhes cabe promover é o trabalho disruptivo, de modo a que os indivíduos concretos sejam usados pelas causas, e não o contrário. Nesse sentido, a velocidade com que as contradições se sucedem no seio do movimento trans-identitário chega a ser estonteante, gerando uma série de fissões no radicalismo outrora “ortodoxo”. Uma das principais frentes de batalha, como se sabe, tem oposto as feministas radicais aos transativistas. Enquanto as primeiras assumem uma posição mais convencionalmente construcionista, as segundas apelam a um curioso “naturalismo” de segunda mão. Susan Stryker chegou a propor que o maior propósito do transgenderismo era subverter o paradigma epistemológico do Ocidente | Foto: Reprodução Redes sociais

Com efeito, as assim chamadas “mulheres trans” dizem ser mulheres — como se, de algum modo, possuíssem cérebros femininos “presos” no corpo de homens. Mas, da perspectiva feminista radical, a ideia de um cérebro naturalmente feminino não faz sentido.
Se as mulheres pensam e agem diferentemente dos homens é porque a sociedade assim as forçou por convenção social, exigindo-lhes que fossem sexualmente atraentes, maternais e submissas aos homens.  
Para as feministas, o que terá se passado na história entre os sexos foi um processo político marcado por uma espécie de “submissão ritualizada” das mulheres aos homens, um processo de exploração do qual as “mulheres trans” estariam se beneficiando.

Há não muito tempo, o gênero era considerado uma mera construção social, enquanto o sexo era uma realidade biológica. Agora, os ativistas alegam que o gênero é destino, enquanto o sexo biológico não passa de construção social

A posição construcionista, como dissemos, é a que foi sempre historicamente marcada pela ideologia feminista da segunda onda. Consagrada, entre outras, por Simone de Beauvoir, o argumento consistia na ideia de que as mulheres não nascem naturalmente mulheres, conquanto possam vir a se tornar. No lado do transativismo, a confusão reside num misto entre duas posições. Se, por um lado, o transativista começa como realista contra o construcionismo feminista, obviamente não pode levar esse realismo naturalista até as últimas consequências, pois isso destruiria a premissa política fundamental de que o gênero é construído, fluido, mutável etc.

As contradições do transativismo permanecem sempr
e ocultas, jamais examinadas, porque, no fundo, o transativismo não admite fazer elucubrações metafísicas
Sua retórica está repleta de afirmações ontológicas, tal como a de que as pessoas são do gênero ao qual dizem pertencer ser, e de que os sentimentos determinam a realidade. Os radicais não querem que o debate aconteça no nível da filosofia, de modo que o disfarçam com as vestes da “ciência” e da “medicina”. E cooptam várias associações médicas e profissionais a serviço dessa ideologia delirante.  
Simone de Beauvoir foi escritora, intelectual, filósofa existencialista, ativista política, feminista e teórica social francesa | Foto: Wikimedia Commons

A Associação Psicológica Americana, por exemplo, elaborou um panfleto intitulado “Respostas às suas questões sobre pessoas trans, identidade de gênero e expressão de gênero”. O texto fala em “transgenderismo como um termo guarda-chuva para pessoas cuja identidade de gênero, expressão de gênero e comportamento não se conformam com o tipicamente associado com o sexo que lhe foi atribuído ao nascer”. Note-se a linguagem politizada. As pessoas não nascem com sexo — é-lhes “atribuído”.

Trata-se de uma reviravolta espantosa. Há não muito tempo, o gênero era considerado uma mera construção social, enquanto o sexo era uma realidade biológica. Agora, os ativistas alegam que o gênero é destino, enquanto o sexo biológico não passa de construção social. Se, por um lado, afirmam ainda que as possibilidades para a identidade de gênero são ilimitadas — para homens, mulheres, ambos ou nenhum —, insistem também que a identidade de gênero é inata e imutável, estabelecida de uma vez por todas desde uma tenra idade.

O transativismo afirma não haver diferenças significativas entre homens e mulheres,
mas repousa sobre rígidos estereótipos sexuais a fim de sustentar que a “identidade de gênero” é real, mas o corpo biológico não o é. Diz-se ademais que a verdade é tudo o que uma pessoa afirma ser, mas no instante seguinte postula-se a existência de um eu real “dentro” da pessoa. O gênero é uma construção social, mas também simultaneamente inato e, em novo rodopio, por sua vez “fluido”. 
Tente-se imaginar o que significa exatamente ter um senso interior de gênero, e o que significaria ter esse senso interno de gênero à parte o fato de ter um corpo desse ou daquele sexo.

Por último, restam mais de mil e um paradoxos do transgenderismo. Se não há homem e mulher, por que há homem trans e mulher trans? Se nenhuma mulher cis pode ser enquadrada num determinado estereótipo de feminilidade, por que a mulher trans é invariavelmente um homem que se autoidentifica como uma mulher estereotípica? 
Por que uma mulher trans é sempre um homem cis que se autoidentifica como mulher cis, e nunca um homem trans que se autoidentifica como mulher trans? 
Por que não parece haver dupla incidência do fator trans? 
Talvez porque trans + trans = cis? 
Diz-se que um homem trans é uma mulher que se autoidentifica como homem. 
Mas ser homem (ou mulher) não é justamente o ato de se autoidentificar como tal? 
Se a ideologia de gênero postula uma identidade identificante, por que depende tanto das identidades identificadas para definir o gênero por oposição? 
Por que, enfim, a ideologia de gênero é relativista no sentido cis e essencialista no sentido trans? Resta-nos, enquanto dá, seguir perguntando, enquanto a gritaria revoltosa não se impõe pelo silêncio… Ativistas alegam que o gênero é destino, enquanto o sexo biológico não passa de construção social| Foto: Reprodução/WikiMedia Commons

Leia também “O que o transativismo tem a ver com direitos civis”
 

Recomendamos: A epidemia trans

 
Flávio Gordon, colunista - Revista Oeste
 
 

domingo, 5 de fevereiro de 2023

Um governo na oposição - O Estado de S. Paulo

J. R. Guzzo

Querem passar quatro anos falando do ‘golpe’, de Bolsonaro? Não é viável. As realidades estão aí 

O Brasil está vivendo, certamente, um problema crítico de linguagem. Descrevem-se os acontecimentos com palavras que não servem para mostrar o que de fato aconteceu; é claro que o resultado dessa disfunção é um tumulto mental maciço, que leva, como em geral ocorre em casos assim, a raciocínios de baixa qualidade e a decisões piores ainda. 
É o que está acontecendo com o “golpe” e os “golpistas” da baderna destrutiva do dia 8 de janeiro – e, agora, com a história alucinada de uma operação para gravar conversas de um ministro do STF com o propósito de impedir a posse do atual presidente da República, ou coisa parecida. Nem o “golpe” é golpe nem os “golpistas” são golpistas – não conseguiriam, agindo como agiram, derrubar a diretoria de um clube de bocha. 
Somando-se uma coisa com a outra, obtém-se uma comédia de circo, ou, então, o pior golpe de Estado da história universal dos golpes de Estado.
"É o que está acontecendo com o 'golpe' e os 'golpistas' da baderna destrutiva do dia 8 de janeiro"
"É o que está acontecendo com o 'golpe' e os 'golpistas' da baderna destrutiva do dia 8 de janeiro" Foto: Carlos Moura/SCO/STF
Golpes de Estado exigem um líder, um plano coerente de ações concretas, tanques na rua, a designação clara de quem faz o que, quando, como e onde, o controle do abastecimento de combustíveis e uma porção de outras questões práticas. 
O golpe de Brasília seria o primeiro em que o líder foge para o exterior antes de dar o golpe – quem já viu uma coisa dessas? 
Também não há precedentes de alguém que tenha querido tomar o governo quebrando vidraças, cantando o Hino Nacional e atacando estátuas de Rui Barbosa
E a palhaçada da armação secreta para comprometer o ministro do STF? Os golpistas iriam anular o resultado da eleição, ou manter o ex-presidente na sua cadeira, mostrando uma fita gravada? 
Em suma: o golpe de Estado, tal como ele tem sido descrito até agora, poderia levar a qualquer coisa, menos uma – o golpe de Estado.

É óbvio que quem violou a lei tem de ser responsabilizado pelo que fez, dentro do devido processo legal – aliás, há um mês não se fala em outra coisa, dentro do governo, que não seja processar, punir, prender, como se o Brasil estivesse ameaçado pela explosão de uma bomba de hidrogênio. 

Tudo bem, mas o País está precisando, com urgência, de um governo que comece a governar – que a Justiça cuide do “golpe”, mas a vida tem de continuar. Não há governo no Brasil desde o segundo turno da eleição. O que havia sumiu e o novo não assumiu; continua tendo, como objetivo único, fazer oposição a um governo que não existe mais. 
É um disparate. Querem passar os próximos quatro anos, então, falando do “golpe”, da “defesa da democracia” e de Jair Bolsonaro? Não é viável. As realidades estão aí; não vão desaparecer com choradeira, nem com ministros que não saem do noticiário policial.
 
J. R. Guzzo, colunista - O Estado de S. Paulo

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

A linguagem ‘neutre’ não é ‘inclusive’ — e nem é uma linguagem - Revista Oeste

 Flavio Morgenstern

A novilíngua artificial usada pela Agência Brasil é pura propaganda ideológica — e imposições linguísticas eram a forma como se escravizavam povos no passado 

Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock

Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock 

“Parlamentares eleites reúnem-se pela primeira vez em Brasília.” Com estas palavras, a Agência Brasil saudou o “1º Encontro de LGBT+eleites”, ocorrido em 20 e 21 de janeiro deste ano. 
A linguagem neutra vem tomando o lugar da língua portuguesa em círculos da elite política, no marketing e em discussões autorreferentes universitárias. Só não está na boca do povo.
 
O uso de uma língua artificial e inexistente tem levantado um debate sobre a sua legalidade: pode um governo utilizar canais oficiais com uma língua diversa da do seu povo? 
A determinação de um novo gênero por coação, de cima para baixo, sem nenhuma participação popular, ignorando a língua oficial do país — aquela, ehrr, falada pela população — não parece condizer com a lei, com a cultura e nem com a lógica.[A Constituição Federal estabelece:  "Art. 13. A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil."]
Foto: Reprodução Agência Brasil

A celeuma ganha contornos ainda mais graves por não se tratar de uma língua neutra, como é apresentada: trata-se de uma linguagem ideológica. Alguém que diga “eleites” — ou todes, amigxs, delus, deputad@s  não está apenas trocando um significante por outro, supostamente mais “inclusivo”: está fazendo propaganda política. Você, eu, todes sabemos em quem ele vota, o que ele quer destruir e o que quer implantar no lugar. É uma linguagem ideológica, como qualquer linguista de meia pataca saberia reconhecer.

Termos não são neutros: “companheiro” significa coisas distintas na boca de um militar, de um casal sem laços matrimoniais e do senhor Luiz Inácio Lula da Silva. No Brasil, recentemente, a Justiça quis proibir a bandeira nacional (falando em “multas pesadíssimas”), até com projetos de lei (é preciso dizer que veio de um petista?). Qualquer menção da administração passada até à pátria rendia censura dos tribunais, alegando que o “uso político” (sic) feria a impessoalidade da administração.

Gramaticalmente imprestável, resta à linguagem supostamente neutra o seu papel de propaganda político-ideológica constante

Como algo infinitamente mais propagandístico pode ser considerado legal ainda mais conspurcando o tesouro cultural mais igualitariamente distribuído que é a língua? Um governo tem o direito de ditar à força uma novilíngua?Lembrando sempre que a Constituição assevera que “A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil” — e não alguma linguagem neutra ideológica.

Complicando a complicada gramática portuguesa
Na novilíngua do romance de Orwell, as pessoas eram impedidas de pensar em qualquer coisa fora dos ditames do que o Partido queria. Apesar do clichê, não é algo nada diferente da adoção de uma linguagem ideológica. 
Até mesmo dizer “homem e mulher” deixa de ser uma descrição da realidade para adentrar supostamente o reino da dúvida e da discussão conceitual (algo proibido se a questão for a ética e os experimentos de mercado das big pharma, por exemplo).
George Orwell 1984
Livro 1984, de George Orwell | Foto: Reprodução/ Flickr
Discutir qual é o porcentual de pessoas que alegam ser “trans” é matéria proibida, que gera censura e processos. 
Mas, com os olhos naquela verdade esquecida antes da censura atual, é curioso pensar que o fenômeno trans era praticamente inexistente há menos de uma década. Ninguém nunca ousou afirmar que uma marca de gênero na língua pudesse ser “ofensiva” por quem assume características dos dois gêneros (não deveria ser o contrário?).  
Óbvio que a pergunta sobre “por que de repente tantas pessoas alegam ser trans” tem uma resposta óbvia — e que não deve ser explicitada.

De toda forma, sendo um porcentual bem restrito (data maxima venia) da sociedade, por que toda uma língua precisa se adaptar para não “ofender” pessoas que nunca pensaram em se ofender com a língua até meia dúzia de anos atrás, antes de pessoas poderosas garantirem que elas precisam se ofender? A imposição de novas normas gramaticais que se pretendem “inclusivas”, na prática, é apenas exclusão de uma comunidade linguística de mais de 200 milhões de pessoas falantes da língua que nunca se preocuparam em dominar as novas determinações do alto comando estatal de pensamento.

Gramaticalmente, marcar adjetivos com finalização em -e não é capaz de gerar o efeito de “neutralidade de gêneropretendido pelos promotores da ideologia de gênero. Simplesmente porque as temíveis marcas de vogais tônicas com ­-a e –o não são marcas “puras” de gênero em português.

Como explica a professora de português Cristiane Bassan, o gênero é muito mais definido pelo artigo que acompanha a palavra do que pela vogal temática do substantivo: “O motorista. Termina em A, e não é feminino. O poeta. Termina em A, e não é feminino. A ação, a depressão, a impressão, a ficção. Todas as palavras que terminam em -ção são femininas, embora terminem com O”.

Portanto, ao tentar criar um terceiro gênero neutro” em português, não se cria um gênero a mais, distinto de marcas femininas ou masculinas — e sim só se faz propaganda ideológica. Ainda mais porque a marca de -e escolhida (por quem?) para uso, que já está em adjetivos como grande, não indica nenhum “terceiro gênero”.“Boa parte dos adjetivos da língua portuguesa pode ser tanto masculina quanto feminina, independentemente da letra final: feliz, triste, alerta, inteligente, emocionante, livre, doente, especial, agradável etc.”, continua a professora. “Terminar uma palavra com E não faz com que ela seja neutra. A alface. Termina em E e é feminina. O elefante. Termina em E e é masculino. Como o gênero em português é determinado muito mais pelos artigos do que pelas vogais temáticas, se vocês querem uma língua neutra, precisam criar um artigo neutro, não encher um texto de X, @ e E.”

A linguagem neutra tem uma característica perigosa, além de flagrantemente irreal: ela é imposta

Tentar criar um gênero neutro por coação é um imperialismo cultural que não faz cócegas na língua portuguesa. A própria marca de masculino ou feminino varia de língua para língua: o pronome plural do inglês they, muito usado por impositores da linguagem neutra, possui marca de gênero em português (eles/elas). O sueco possui uma primeira pessoa do plural com marca de gênero (den), e uma sem marca (det).

Pior: as palavras têm gênero, não as coisas — e esta lição deveria ser uma obviedade, ainda mais para “estudiosos”. A palavra “a criança” não faz nenhuma marca entre feminino e masculino. Dizer “meu amor”, “meu tesouro” tampouco é exclusivo para homens — e “minha paixão” também não o é para mulheres. Línguas com o gênero neutro, como latim, alemão ou es eslavas também não fazem referência a “transgêneros” em pronomes como it, es ou o artigo das. Os artigos, que marcam tanto o gênero do português (inclusive o número: sabemos que “os menino”, apesar do erro gramatical, está no plural), são livres de marcas no inglês, com the servindo para tudo. A palavra “garota”, em alemão, por ser um diminutivo, está no gênero neutro: das Mädchen. E assim por diante.

O gênero privilegiado no português é, justamente, o feminino. Como explica a advogada e professora de português Lara Brenner Queiroz: “Quem argumenta assim desconhece que o gênero gramatical masculino não corresponde só e obrigatoriamente a pessoas do sexo masculino, mas também a um público misto ou genérico, caso em que o gênero gramatical masculino passa a ter um caráter neutralizador do ponto de vista sexual — ou seja, quando se diz, por exemplo, que ‘O brasileiro lê pouco’, não se está querendo dizer que só os brasileiros do sexo masculino leem pouco, e sim que ‘brasileiros e brasileiras’ leem pouco”.

Em palavras como moço e moça, monge e monja, cantor e cantora, oficial e oficiala, freguês e freguesa, juiz e juíza, alemão e alemã, judeu e judia, a única marca de gênero clara está no sufixo ­- a do feminino — cada uma das masculinas possui um final diferente, explica Lara Brenner. Sobre o caso em questão, a professora Lara Brenner é assertiva: “Dizer ‘parlamentares eleites’, segundo o próprio argumento de quem milita a favor disso, exclui os gêneros feminino e masculino da mesma forma como se argumenta que ‘todos’ exclui os neutros e femininos”. Num mundo ideológico que tanto quer diferenciar gênero de sexo, principalmente a partir dos terríveis experimentos de John Money, do fraudulento relatório Kinsey e do livro Gender Troubles, da feminista Judith Butler, faltou explicar a diferença entre sexo e gênero… gramatical, que nada tem a ver com performances sociais típicas de homens ou de mulheres.

Explica Lara Brenner: “’Sexo’ é o conjunto de características físicas e biológicas que distingue o sistema reprodutor. ‘Gênero biopsicossocial’, uma invenção da modernidade — a qual até então se dava muito bem com a definição de sexo biológico —, é a condição humana resultante do papel sexual socialmente assumido por um indivíduo que, num corpo de homem, se sente como mulher, e vice-versa. ‘Gênero gramatical’, por sua vez, é a categoria linguística que não passa de uma propriedade formal da gramática e nada tem a ver com a confusão anterior. Em vez de gêneros masculino e feminino, poderiam tranquilamente se chamar gêneros A e B”.

Para os proponentes da ideologia de gênero e os “múltiplos” gêneros humanos, ainda se ganha de brinde mais um problema, como aponta a professora Lara Brenner: “Ao forçar a ligação direta e obrigatória entre o gênero sexual e o gênero da palavra, cria-se o seguinte problema: se afirmam atualmente que há dezenas de gêneros biopsicossociais além do masculino e do feminino (como queer, agênero, andrógeno, gênero fluido, bigênero etc.), deveria haver, por uma questão de paridade, uma terminação para cada um dos gêneros”. Algo que o artificial -e não é capaz de realizar, a não ser unindo todos em uma maçaroca homogênea.

A língua como propaganda
Gramaticalmente imprestável,
resta à linguagem supostamente neutra o seu papel de propaganda político-ideológica constante.

No entanto, linguagem da propaganda constante é marca do totalitarismo. Livros de ficção que lidaram com o tema sempre mostraram o papel da linguagem: 1984, de George Orwell, tem a infame novilíngua, enquanto Laranja Mecânica, de Anthony Burgess, é inteiro escrito em uma língua artificial, para não comentar a linguagem de boletim de ocorrência, quase ouvindo as teclas da máquina de escrever, de O Processo, de Franz Kafka. Estudos históricos também existem, como LTI – Lingua Tertii Imperii, de Victor Klemperer, o maior estudo sobre a linguagem do Terceiro Reich, assim como as obras de Jean-Pierre Faye, principalmente Introdução às Linguagens Totalitárias.

Todos mostram um processo duplo. Em primeiro lugar, a imposição top-down de uma linguagem artificial em substituição à natural (o ódio ao natural é a clave fundamental de nosso século). Qualquer filósofo, botânico ou matemático percebem rapidamente como temos mais contato com a realidade quanto mais orgânica — e mesmo antiga — for nossa linguagem descritiva: exatamente o que se perde com as linguagens artificiais. Depois, toda a linguagem passa a ser mediada — e é onde mora o extremo perigo.

O historiador Orlando Figes conta como era difícil na União Soviética ter de lidar com qualquer questão das humanidades, já que elas são conhecidas como ciências do espírito (Geisteswissenschaften) no mundo civilizado — e a palavra “espírito” havia sido cancelada, permitindo-se apenas falar em materialismo. Já a militarizada linguagem do Terceiro Reich — que começou a ser utilizada na Alemanha ainda no século 19 — tratava vitórias esportivas com condecorações do Exército.

Saudação nazista em escola de Berlim (1934). 
As crianças eram doutrinadas desde muito cedo - 
 Foto: Wikimedia Commons

Será que devemos fazer um experimento top-down, com a imposição lenta e gradual de uma linguagem afastada da realidade, e que acabe sempre precisando ser mediada por uma autoridade para ser validada — e não apenas aceita a priori como óbvia e descritiva? Se queremos entender por que tantas pessoas, principalmente jovens, são defensoras aguerridas (kämpferisch?) da censura, começamos a entender num piscar de olhos. Numa Blitzkrieg.


Imperialismo linguístico
Impérios eram criticados por ter governos — e leis — dos quais o povo não tinha sequer conhecimento — como a famosa “oclusão parlamentar” do Império Austro-Húngaro e suas 11 línguas, quando croatas ou tchecos faziam longos discursos apenas para atrapalhar. Um certo Adolf Hitler desacreditou no parlamentarismo ao admirar o espetáculo. Alguns anos mais tarde, usaria a língua falada nos Sudetos, que ficaram com a Tchecoslováquia, para inaugurar a Guerra mais mortífera que o mundo já viu.

A linguagem neutra tem uma característica perigosa, além de flagrantemente irreal: ela é imposta. Uma gramática normal segue o uso de uma comunidade linguística, inspirando-se em seus zênites, como escritores, poetas e filósofos. Uma língua imposta é “criada” por meia dúzia de iluminados que passam a obrigar comunidades linguísticas com milhões de falantes a abdicarem de uma língua por uma língua “inclusiva”, com uma nova gramática que inclua o “eleites”, significa aceitar uma imposição. E aceitar uma imposição — o Brasil recente o sabe — significa aceitar todas.

Leia também “A direita precisa de líderes novos e melhores”

 

 Flavio Morgenstern, colunista - Revista Oeste


terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Impeachment… já?! Molecagens de uma oposição irresponsável podem custar caro ao país - Gazeta do Povo

Vozes - Paulo Polzonoff Jr.

"Ensina-me, Senhor, a ser ninguém./ Que minha pequenez nem seja minha". João Filho.

Afobação

Kim Kataguiri: otaku fantasiado de deputado. Ou seria “depotaku”?| Foto: Reprodução/ YouTube

Estamos em janeiro. Ainda. E já tem pedido de impeachment do presidente Lula. Na verdade, dois. O primeiro foi feito pelo deputado Ubiratan Sanderson; o segundo, pelo também deputado Evair de Melo. Ambos têm como justificativa o revisionismo histórico de Lula, que insiste porque insiste que o impeachment de Dilma Rousseff foi um golpe. Mas todo mundo sabe que os documentos praticamente iguais estão destinados ao fundo da gaveta o presidente da Câmara, Arthur Lira.

Ao ler as petições quase infantis, dirigidas a Arthur Lira naquela linguagem entre a do cartorário e do escrivão de polícia, me veio à mente a figura sempre patética dos petistas que, a cada espirro de Fernando Henrique ou Temer, pediam o impeachment deles. Mas aí me segurei pelo colarinho e falei para mim mesmo com uma expressão de Dirty Harry: “Não era você mesmo que outro dia estava cobrando uma oposição dura a Lula?”.

Era. Digo, sou. Daí minha preocupação com essas traquinagens que fazem a festa dos ingênuos e dos oportunistas, ao mesmo tempo em que só servem para reforçar os falsos temores que emanam sobretudo do Supremo Tribunal Federal. O pouco de democracia que nos resta parece desaparecer quando oportunistas se aproveitam do picadeiro esvaziado para contar a piadinha sem graça do “impeachment precoce” ou do "mandato interrompido".

Como já diagnosticava alguém, o problema do Brasil não é nunca o governo; é sempre a oposição. Isso está claro desde os anos 1990, com a oposição burra e histriônica do PT aos Fernandos. 
Depois, com a oposição frouxa do PSDB aos intermináveis 16 anos do PT no poder. 
Em seguida, com a oposição do PT, acrescido de seus partidos-satélites e de uma imprensa cada vez mais antagonista (no pior sentido da palavra), a Temer e Bolsonaro.

Sei que essa oposição que está aí não é exatamente a mesma oposição que trabalhará de fato para proteger o Brasil dessa tragédia anunciada chamada Lula. Sei que até o dia 2 de fevereiro estamos numa espécie de limbo de representatividade, uma oferta da nossa mutcho loka legislação eleitoral tão poderosa que em torno dela gravitam casos e mais casos de censura e até um permanente Estado de exceção. Coisas contra as quais, espero, a nova legislatura atue com um mínimo de dignidade. (É, minhas expectativas são bem baixas mesmo).

"Otaku, gamer e deputado"
Mas os sinais que vêm da dupla Sanderson & Melo, ambos reeleitos, são preocupantes e revelam uma oposição meramente oportunista, afoita e apaixonada pela própria imagem. Características, aliás, que se aplicam também à traquinagem do moleque e deputado federal Kim Kataguiri, em teoria do partido União Brasil, mas na prática um representante do MBL, aquele grupo que só quer ver o circo pegar fogo.

Pois não é que alguém soprou no ouvido de Kataguiri que seria uma boa ideia denunciar Lula por desinformação (novamente usando a história do “impeachment foi golpe”, na qual, aliás, de tanto repetirem estou começando a acreditar) ao imoralíssimo órgão de repressão criado pela AGU do eterno garoto de recados Bessias?  
Com isso, Kataguiri conseguiu o que queria: espaço no noticiário. 
Por causa essa brincadeirinha narcisista do “otaku, gamer e deputado”, agora corremos o risco de ver chancelada a existência do Departamento de Censura petista.

Uma oposição séria e razoavelmente adulta (não confundir com a oposição prudente & sofisticada das Joices e Frotas da legislatura passada) lutaria com todas as forças contra a criação do órgão de repressão. E não tentaria usá-lo infantilmente contra o governo totalitário que se insinua. Isso é coisa de moleque que gosta de bancar o espertalhão para, por uns poucos dias, receber o aplauso dos parvos, incautos e distraídos. Não se usa a força imoral do Estado contra o Estado; política não é judô.

As traquinagens dos três deputados servem apenas para corroer ainda mais a nossa débil cultura democrática – estratégia usada há décadas pelo PT e que, hoje, serve de justificativa tanto para as arbitrariedades do STF quanto para o desespero estúpido dos vândalos de 8/1. Pirotecnias talvez agradem o tuiteiro que esteja à toa na vida. 
Mas não se engane: essa banda que passa tocando refrões marxistas é muito mais perigosa do que a banda anterior, desafinada, mas bem-intencionada.

Paulo Polzonoff Jr., colunista - Gazeta do Povo - VOZES


domingo, 28 de novembro de 2021

A estúpida ilegalidade da linguagem neutra - Sérgio Alves de Oliveira

“EXCELENTISSIME SENHER PRESIDENTE DE EGRÉGIE SUPREME TRIBUNEL FEDEREL !!!”...........

Na qualidade de advogado, talvez esse venha a se tornar o tratamento protocolar nas minhas petições à presidência do Supremo Tribunal Federal quando ela for ocupada pelo Ministro Edson Fachin.

É claro que estou escrevendo sobre a absurda liminar concedida por Sua Excelência, o Ministro Fachin, do STF, referente ao cancelamento da lei do Estado da Rondônia que proibiu a linguagem binária, pronome neutro, ou neolinguagem, na grade curricular, e no material didático, das instituições de ensino no referido Estado, públicas ou privadas, e em editais de concursos públicos, na ação promovida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino. Os “fundamentos(?),pasmem : “preconceitos e intolerâncias, incompatíveis com a ordem democrática”.

Mas Sua Excelência esqueceu de “pequenos” detalhes, de ler a constituição, as leis respeitantes, e especialmente o tratado internacional denominado “Acordo Ortográfico da Língua Portuguesas”assinado em Lisboa em 1990,entre os países de língua portuguesa, Angola, Guiné, Cabo Verde, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, e BRASIL, naturalmente.  Esse tratado adotou uma ortografia UNIFICADA entre os signatários. No Brasil foi aprovado pelo Decreto Nº 6.583/2008, assinado pelo então Presidente Lula da Silva, após aprovação do Congresso Nacional, pelo Decreto Legislativo Nº 54/1995.

Ora, por força do artigo 5º, parágrafo 3º, da CF, os tratados internacionais sobre “direitos humanos”  valerão tanto quanto  “emenda constitucional”. Todos os demais tratados internacionais serão hierarquicamente equiparados à lei ordinária. Por esse motivo o tratado da unificação da língua portuguesa não é norma constitucional, porém LEGAL. Vale igual à lei. [lembramos que o conceito de direitos humanos no Brasil é mais amplo quando concede, favorece,  coisas esdrúxulas, aberrações, bizarrices; tal conceito faz com que a linguagem neutra valha mais do que um mero tratado; quando é para soltar bandido, qualquer tratado tem validade indiscutível, especialmente em interpretação que solte o bandido. Apropriadamente,  o ilustre articulista cita o artigo 13 da CF e o inciso XXIV, do artigo 32 da Lei Maior.
Acontece que paira sobre todos um artigo não escrito, que concede às interpretações criativas valor superior a tudo que exista no 'estado democrático de direito' vigente no Brasil. Sendo público e notório os que estão autorizados a efetuar interpretações criativas.]

Mas no referido tratado internacional nada consta sobre “linguagem neutra”, ou equivalentes de outras “bichisses” quaisquer. A língua portuguesa tem masculino, feminino, macho e fêmea. A tal “linguagem neutra” traria como consequência o desligamento do Brasil,por desrespeito,do referido tratado internacional.

Mas tem mais. Por força do artigo 13 da CF,” a língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil”.  
Já pelo artigo 32, XXIV, da Constituição,”compete PRIVATIVAMENTE á União legislar sobre “diretrizes e bases da educação nacional”.o que faz mediante a Lei 9.394/96,denominada exatamente “Lei de Diretrizes e Bases”.

Ora,pelo que se vê,o Brasil virou a própria “Casa (ou c...) da Mãe Joana” em matéria de ensino, e outras “cositas más”, onde todo mundo manda e ninguém manda. Não são só mais alguns Estados e Municípios que metem indevidamente os seus “bedelhos” em matéria privativa da União,e no caso, também do “Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa”, mas também todo tipo de organização LGTB, “confederações de trabalhadores disso ou daquilo”,etc.

Sérgio Alves de Oliveira  - Advogado e Sociólogo

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Cíntia Chagas: ‘Estamos vivendo uma ditadura da linguagem’ - Revista Oeste

Cristyan Costa

Professora afirma que o dialeto não binário idiotiza as pessoas e critica o ataque do movimento negro a expressões supostamente racistas


Formada em letras pela Universidade Federal de Minas Gerais, a professora Cíntia Chagas se tornou conhecida graças ao modo peculiar de ensinar português, com um método que une histórias e as regras gramaticais. Ela foi demitida de dez instituições de ensino por sua técnica inusitada. Foi aí que decidiu abrir seu próprio cursinho, que faz sucesso nas redes sociais e no YouTube.
 

A professora de português Cíntia Chagas | Foto: Divulgação

 A professora de português Cíntia Chagas - Foto: Divulgação

Também levou os ensinamentos que transmitiu em sala de aula para os livros Sou Péssimo em Português, que se tornou best-seller, e Um Relacionamento Sem Erros (de Português). Defensora da norma culta, Cíntia se manifesta contra a linguagem neutra. “Emburrece as pessoas”, diz. Sobre os ataques de militantes a palavras e expressões supostamente racistas, ela é taxativa: “Alguns argumentos simplesmente não se sustentam”.

Confira os principais trechos da entrevista.

O governo vetou o uso da linguagem neutra em projetos financiados pela Lei Rouanet. Como você avalia isso?
Trata-se de uma decisão acertada. Caso contrário, os pagadores de impostos estariam custeando iniciativas de caráter ideológico, que destoa do que é correto e do pensamento da maioria. Todos os projetos culturais financiados pelo Estado têm de ser o mais neutro possível. A iniciativa do governo deu alívio para o país, sobretudo no momento em que uma emissora poderosa, como a Globo, anuncia que vai pôr a linguagem neutra em sua nova novela, o que é um absurdo.
 
É possível rastrear a origem da linguagem neutra?
A origem ainda está sendo debatida. Sabe-se que os defensores desse dialeto são as chamadas pessoas não binárias”, que correspondem a 1,2% da população, os militantes da ideologia de gênero e políticos que usam minorias para fazer barulho na imprensa e angariar votos. 
Além disso, a linguagem neutra tem o apoio de professores universitários que são militantes de causas de esquerda. Há relatos de alunos expondo e-mails dos docentes com os dizeres “querides alunes”. Isso é perigoso porque sabemos que os estudantes têm apreço e admiração pelos educadores. Dessa forma, fica mais fácil induzir os jovens a defenderem a linguagem neutra. A soma do sentimentalismo que adorna o dialeto não binário com a admiração que os alunos têm por seus professores é a combinação perfeita para difundir algo que só vai destruir a língua portuguesa.

“Querer impor a linguagem neutra e pautas similares é puro elitismo”

Os defensores desse novo jeito de falar sustentam que ela é inclusiva. Isso procede?
De maneira nenhuma. A linguagem neutra exclui 43 milhões de disléxicos no Brasil devido aos “pronomes neutros”. Portanto, impõe-se mais uma barreira a um público que já sofre com dificuldades de aprendizagem. Os surdos também saem prejudicados, visto que muitos deles precisam fazer leitura labial para compreender as palavras. Não é razoável cobrar dessas pessoas o entendimento de “todes”, “ili”, “dile”, entre outros. Os cegos são outro grupo que sai marginalizado. Eles leem através de programas de computador. Teremos de atualizar os softwares de acessibilidade? Por fim, a linguagem neutra exclui uma maioria gritante, que é contra essa aberração linguística. Não há outra forma de caracterizar o dialeto não binário. Aberração linguística foi a expressão que a Academia Francesa de Letras utilizou para definir a linguagem neutra ao proibi-la no país.
 
Há um movimento forte para inserir a linguagem neutra em empresas. Como você enxerga essa tentativa?
Muitas vezes, a iniciativa privada pouco se importa com os não binários. Um CEO até discorda, mas cede aos apelos da equipe de marketing porque quer evitar a cultura do cancelamento. Muitos surfam na onda para ser politicamente corretos e ganhar pontos com a imprensa. Então, se no momento é legal falar “todes”, vamos aderir, pensam eles. Lembro-me de um caso envolvendo O Boticário. Certa vez, o CEO da companhia disse que trocou o termo Black Friday por Beauty Week porque alguns negros poderiam se sentir ofendidos. Ao se justificar, o executivo admitiu não saber a origem do possível preconceito com a “Semana Negra”, porém optou pela mudança por via das dúvidas. Isso tudo mostra que estamos vivendo uma ditadura da linguagem. Parece que voltamos à Idade Média. Se naquele tempo havia livros que eram proibidos, agora são palavras e expressões. Onde fica a liberdade das pessoas? Primeiro, esse pessoal domina o que falamos, depois o que pensamos e, por fim, como agimos.
 
A escola e as universidades estão atentas para esse problema?
Infelizmente, não. Na sala de aula, os defensores da linguagem neutra juram que querem apenas inserir uma nova variante da língua, sem desmerecer a norma culta. Contudo, sabemos que isso abre brechas para problemas de leitura e de escrita, principalmente em um país com problemas graves na educação. O dialeto não binário também pavimenta o caminho para discutir a ideologia de gênero nas escolas. Essa pauta diverge do que pensa a maioria dos pais. Deveríamos seguir o exemplo da França. O ministro da Educação daquele país proibiu o uso da linguagem neutra nas escolas, nas universidades e em instituições públicas. No Brasil, a atitude dos governos ainda é tímida, mas está ocorrendo. Recentemente, Rondônia impediu o avanço do dialeto não binário, além de Santa Catarina. Isso é uma guerra ideológica e política. Ser contra a linguagem neutra é defender a língua portuguesa, a educação, a escrita e a leitura. [A Constituição Federal em seu artigo 13, determina: "Art. 13. A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil.".]
 
Podemos dizer que vivemos em um momento de “patrulhamento vocabular”?
Totalmente. Hoje, não se pode mais falar a palavra “judiar” porque no dicionário está escrito “tratar como os judeus foram tratados”. Ao perguntar para judeus que conheço se eles se sentem ofendidos com essa palavra, escuto um “não”. Em alguns casos, evitar esse termo é compreensível, em razão do passado envolvendo o Holocausto e caso se esteja diante de um judeu mais ortodoxo que possa se sentir mal. Todavia, dificilmente alguém que fala “judiação” está realmente querendo ofender judeus. Com o passar do tempo, a tendência é que diminua o preconceito que possa haver sobre determinadas palavras. Logo,  torna-se um exagero banir o uso delas. Há políticos que se apropriam de minorias para fazer barulho. Às vezes, um público que estaria se sentindo discriminado não está, de fato, se importando com isso. Vivemos um momento preocupante.

“’Tempo negro’ remete à cor preta, ao sombrio, ao escuro. Não tem nada a ver com discriminação”

O movimento negro chamou de racistas expressões, como “a coisa está preta”. Como você vê esse ataque?
Enxergo como hipocrisia. Não pelo negro, mas, sim, por quem usa essas pessoas para aparecer. Quando falo que “a situação está preta”, quero dizer que não estou enxergando uma solução. Preto é antítese de branco. Soluções remetem ao claro e ao transparente. Estamos falando de cores. No ano passado, o jornalista Amaury Junior escreveu em uma rede social que “estamos vivendo tempos negros”, devido à pandemia. Caíram matando em cima dele, incluindo uma cantora famosa. Eu o defendi argumentando o seguinte: “Tempo negro” remete à cor preta, ao sombrio, ao escuro. Não tem nada a ver com discriminação com negros. As pessoas que estão por trás desses ataques não são burras. Por hipocrisia, usa-se isso para gerar alarde. No caso de políticos, a estratégia é conseguir novos eleitores e votos.
 
Onde surgiu essa “cartilha antirracista”?
Entendo que essa cartilha surgiu no meio de militantes que têm anseio político. Muitas palavras que estão “proibidas” nessa espécie de “documento” nem sequer deveriam estar lá, como “denegrir”, cuja origem é do latim “denegrare”, que significa manchar. É óbvio que há expressões que são preconceituosas, como “eu não sou tuas negas”. Isso é uma ofensa. As pessoas não têm de falar assim. Caso ocorra, a Justiça está aí. O que me incomoda é a hipocrisia e a mentira de constarem nessa cartilha expressões que não são preconceituosas.
 
O que é o chamado “preconceito linguístico”, que os adeptos do politicamente correto tanto falam?
Preconceito linguístico é a ideia segundo a qual não há certo nem errado na língua portuguesa. O que existe é o adequado e o inadequado. Para os defensores dessa teoria, falar “nóis vai” não está errado porque, no contexto de algumas pessoas, seria correto. Nesse entendimento, quem corrige o indivíduo à margem da norma culta se torna um carrasco e passa a difundir “preconceito linguístico”, que remete às desigualdades econômicas e sociais do país. Nada disso procede. Essa história de preconceito linguístico emburrece as pessoas. O gramático Evanildo Bechara indaga: se as escolas se eximirem de defender, com unhas e dentes, a norma culta, quem há de fazer? Portanto, é papel dos educadores preservar a língua portuguesa como ela é. A partir do momento em que se rebaixa a norma culta a apenas uma variante entre várias, como a linguagem neutra, criamos futuros adultos despreparados para fazerem leituras sofisticadas. A leitura nos moldes da norma culta estimula o raciocínio e proporciona à pessoa o desenvolvimento de pensamentos complexos.
 
Com todos esses ataques, quais peculiaridades a língua portuguesa vai perder?
Vai perder a sua construção morfológica. Porque em vez de falar “todos”, direi “todes”; em vez de “ele”, falo “ili”; em vez de “dele”, falo “dile”. Daqui a pouco não vai se poder falar mais nada. Resumidamente, é a destruição da língua como a conhecemos.
 
O que fazer para impedir a deterioração da língua portuguesa?
Em primeiro lugar, proibir a linguagem neutra no Brasil nas esferas municipal, estadual e federal. Em segundo lugar, os pais precisam atuar em harmonia. Eles precisam perceber que são importantes nessa luta e cobrar das escolas o fim dessa prática. Em terceiro lugar, a união dos professores que amam a norma culta
Querer impor a linguagem neutra e outras pautas similares é puro elitismo. Esse tipo de assunto, por exemplo, não está sendo discutido nas favelas. Aprender a língua portuguesa é um direito nosso, assegurado pela Constituição.

Leia também “Os mais recentes ataques da linguagem neutra” 

 

Cristyan Costa, colunista - Revista Oeste


segunda-feira, 23 de novembro de 2020

“Querides alunes" - Percival Puggina

Chamou-me a atenção a notícia de que o Colégio Franco-Brasileiro, tradicional educandário carioca, passava a adotar a linguagem de gênero neutro nas comunicações formais e informais. O motivo desse pega pra capar ideológico é dado pela conjugação do feminismo radical com o movimento LGBTQI et alii na sua guerra contra o macho da espécie.
Em nota pública dirigida à comunidade escolar, o colégio disse:

"Renovando diariamente nosso compromisso com a promoção do respeito à diversidade e da valorização das diferenças no ambiente escolar, tornamos público o suporte institucional à adoção de estratégias gramaticais de neutralização de gênero em nossos espaços formais e informais de aprendizagem".

Embora a nota da escola pareça extraída de uma assembleia de militantes, seu inteiro teor informa que ela não “configura a obrigatoriedade da adoção da estratégia” porque “a normatividade linguística de neutralização de gênero (...) ainda evidencia certa restrição a esses usos”. Ou seja, a boa gramática ainda não foi para o lixo seco. Mais adiante, afirma: “A substituição da expressão queridos alunos por querides alunes passa a incluir múltiplas identidades sob a marcação do gênero em “e””. E fica claro o objetivo a ser perseguido. Afinal, diz, “a marcação neutra de gênero compareceu a diversas categorias gramaticais no passado de nossa língua” e “o uso da língua reflete as mudanças pelas quais a sociedade passa”. Abusam da História..

Enquanto conto até 10 vou decidindo saltar a fase dos presumíveis adjetivos, inclusive alguns muito corretamente aplicáveis ao caso. Então, vamos aos fatos. Além do Congresso Nacional, quase todas as Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores do país decidiram excluir a ideologia de gênero de seus planos de Educação. À época em que o tema foi objeto de acaloradas discussões, eu afirmei que para os grupos feministas radicais e para os radicais do movimento gay aquela sucessão de democráticas derrotas legislativas estava longe de significar que o assunto se esgotava. Eles manteriam o objetivo que, em última análise, não pode dispensar a sala de aula. Não pode prescindir do domínio das mentes infantis.

É sobre isso que o Colégio Franco-Brasileiro confabula e é para proteger as crianças disso que nos mobilizamos nacional e localmente contra a introdução da ideologia de gênero nas escolas através dos planos de educação. Levar uma criança ou uma escola inteira a falar de modo incompreensível o vasto vocabulário do “dialeto” de gênero, em construção, exige penetrar no que lhe dá causa: o ideológico e perigoso território do gênero. E o que é pior, do gênero que, ou se escolheria nas circunstâncias do cotidiano, como a echarpe de cada noite, ou na construção do coletivo, por reconhecimento da tribo. 
O produto colhido por essa perversidade serão homens não masculinos, inadequados às mulheres que continuarem sendo femininas.

Percival Puggina (75), membro da Academia Rio-Grandense de Letras e Cidadão de Porto Alegre, é arquiteto, empresário, escritor e titular do site Conservadores e Liberais (Puggina.org); colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil pelos maus brasileiros. Membro da ADCE. Integrante do grupo Pensar+.

 

sábado, 23 de novembro de 2019

Professor de juridiquês - Merval Pereira





A estupefação que causou o voto de quatro horas do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, na abertura do julgamento sobre o compartilhamento de dados entre os órgãos de persecução penal (Ministério Público e Polícia) e os de investigação (Unidade de Inteligência Financeira- UIF, antigo Coaf -, e Receita Federal) foi provocada pela tentativa de sinuosamente voltar atrás sem deixar clara a mudança.

Tão obscuro o voto que teve que ser explicado mais tarde por uma nota oficial. Há pesquisas, como a do economista Felipe de Mendonça Lopes, da Fundação Getulio Vargas, que mostram que, com o televisionamento ao vivo dos julgamentos, os votos ficaram maiores em média 26 páginas, o que aumenta o tempo de leitura em cerca de 50 minutos.O ministro Luis Roberto Barroso definiu bem o momento: “Seria preciso chamar um professor de javanês”. Referia-se ao conto “O Homem que Sabia Javanês”, de Lima Barreto, sobre um vigarista que, sem saber nada do idioma, se apresentou como professor  de javanês a  um barão que colocara um anúncio em busca de alguém que lhe ensinasse a língua. [apesar da maioria se considerar 'supremo', situação que os alça à condição de divindade, os ministros permanecem humanos e apesar de não lhes faltar holofotes, o excesso de exposição os seduz.

Votos longos, findam por despertar a atenção, ainda que lavrados em javanês, e ser o centro delas, mais cristaliza de forma até exagerada uma aura de supremo.]

A utilização de métodos econométricos deu a ele a certeza de que a mudança de composição do plenário do Supremo não tem nada a ver com o aumento do tamanho dos votos, mas sim a transmissão ao vivo. Já houve quem propusesse o seu fim, mas parece uma decisão impossível de ser revista, devido à cobrança sempre maior da transparência das decisões, não necessariamente clareza.

 Quanto à obscuridade da linguagem, lembrei-me de um ciclo de palestras que coordenei este ano na Academia Brasileira de Letras sobre a influência do barroco em nossa cultura. Um dos aspectos abordados pelo ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Nelson Jobim foi justamente o juridiquês, esse idioma parecido com o português, salteado com termos em latim, que nos acostumamos a ouvir durante a transmissão dos julgamentos pela televisão.

Jobim criticou as transmissões, avaliando que com elas os votos ficaram mais longos. Mas ressaltou a vantagem da transparência do processo decisório do Supremo, não obstante o Brasil continue sendo o único país do mundo que televisiona os julgamentos de seu Supremo ao vivo, em tempo real. A Corte Suprema dos Estados Unidos realiza suas reuniões a portas fechadas, e somente o acórdão é divulgado, sem a especificação das eventuais divergências entre seus membros. E nenhum deles vai à imprensa criticar a decisão da maioria ou dar seu voto divergente.

 Mas, voltemos ao juridiquês. Para Jobim, o uso radical da linguagem mais culta e o excesso de erudição têm o objetivo de “transmitir potência no discurso”. Nelson Jobim acredita que o formalismo da linguagem jurídica já virou piada, mas “ainda assim, insistimos em usar o juridiquês no Brasil”.  Para ele “a ornamentação lingüística” sinalizaria um jurista mais preparado, “pois quem se afasta se torna grande e incompreensível”. Jobim definiu assim o falar empolado: “Comunicação sem clareza é uma forma eficaz de esconder ignorância no assunto sobre o qual se fala”.  Leu, ao encerrar a palestra, um trecho do conto “Teoria do medalhão”, do patrono da ABL Machado de Assis, destacando a seguinte frase: “Falar difícil é fácil. O difícil é falar fácil”.

O tema favorece debates intermináveis, e na quarta-feira tomou conta das redes devido ao longo e obscuro voto do presidente Dias Toffoli. Em um grupo de que participo na internet vieram diversas citações muito úteis para se ter uma idéia de como se deve falar.  Diz Ludwig Wittgenstein, respeitado filósofo da linguagem: "tudo o que pode ser dito, pode ser dito claramente; e o que não pode ser dito claramente, deve relegar-se ao silêncio".

No Dicionário de Filosofia de Nicola Abbagnano, outra definição de Wittgenstein da linguagem: “Devemos atribuir um significado às palavras que usamos se desejamos falar com algum significado e não por simples tagarelice, e o significado que atribuímos às palavras deve ser algo do qual todos já tenham conhecimento.”. Outro, Hans-Georg Gadamer, filósofo alemão, das maiores autoridades em hermenêutica, o estudo das palavras, afirma que "aquele que fala uma linguagem que mais ninguém fala, rigorosamente não fala". O sociólogo alemão Niklas Luhmann, considerava a argumentação jurídica um "acréscimo de redundância".


Merval Pereira, colunista - O Globo

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

A política como um pesadelo - Fernando Gabeira

Será que o porteiro realmente viu um dos assassinos procurando por Bolsonaro, que nesse dia estava em Brasília?

Enquanto a mancha se desloca para o Sul e ameaça Abrolhos, já não sei mais se a espero no Rio ou vou ao seu encontro. De qualquer forma, tento manter o foco no desastre ambiental enquanto as loucuras na política se desdobram num ritmo vertiginoso.
No princípio da semana, pensei em dedicar as horas vagas a pensar na questão da linguagem na política, que me surpreende tanto quanto a mancha de óleo. Os deputados do PSL brigam entre si com memes e se insultam usando personagens de história infantil. Se não parasse com as crianças, de vez em quando, não saberia quem é Peppa. Uma das contendoras na luta interna foi chamada de Peppa pelos adversários. Ainda bem que eu já vi as aventuras da porquinha rechonchuda.
Pensei em refletir sobre a nova geração de políticos e como a linguagem da infância ainda está presente no seu imaginário. 

Mudei de eixo à tarde. Vi imagens do depoimento de Alexandre Frota na CPI das Fake News. Ele exibiu cartazes com frases do guru dos Bolsonaro, Olavo de Carvalho. Era tão escandaloso que fiquei tentado a examinar o avanço da linguagem pornográfica no discurso da extrema direita.
Foi então que vi aquele vídeo da hienas cercando o leão Bolsonaro e pensei em voltar ao universo infantil. Não houve tempo. Eduardo Bolsonaro invocou o AI-5, numa entrevista a Leda Nagle. Voltei aos anos 60 e pensei até em mostrar como as coisas mudaram nesse quase meio século. Desisti desse esforço pedagógico. As pessoas que confundem épocas tão díspares não o fazem por ignorância, mas por necessidade. Constroem um enredo mental para o papel que amariam representar. No caso de Eduardo Bolsonaro, é a vontade de reviver a ditadura, com poder absoluto sobre a vida e a liberdade de expressão dos outros. 

Em certas viagens a Ouro Preto, fantasio uma volta ao século XVIII. Mas só por alguns momentos, quando não há carros nem buzina. Há tempos, quando Ronnie Lessa, acusado de matar Marielle Franco, foi preso, achei explosivo o fato de ser vizinho do homem que se tornou presidente da República. Imaginei como isso não daria um roteiro para uma série de televisão. Li que o filho mais novo do presidente namorava a filha do matador. Imaginei as possibilidades clássicas dessa história. 

Vejo surgir agora um novo personagem dramático: o porteiro do condomínio Vivendas da Barra. Ele é o mais antigo dos funcionários, deve conhecer todos os moradores, seus hábitos e relações superficiais. Sua lembrança do dia da morte de Marielle Franco enriqueceu as fantasias sobre a vizinhança de Bolsonaro com Ronnie Lessa, miliciano, matador e comerciante de armas. [lembrança  que surgiu mais de 500 dias após a suposta pergunta]
Será que o porteiro realmente viu um dos assassinos [sic] procurando por Bolsonaro, que nesse dia estava em Brasília? Por que teria anotado o número da casa buscada pelo cúmplice do matador [sic] como se fosse a casa de Bolsonaro? Como pode ter ouvido a voz de seu Jair, sem estar sintonizado com o canal da Câmara dos Deputados, onde Bolsonaro estava naquele momento?

Não vou especular sobre esse mistério, enquanto não ouvir a versão do próprio porteiro. As procuradoras do MP do Rio dizem que ele provavelmente mentiu.
Mas por que um velho e experiente porteiro confundiu duas casas? Para nós que vemos imagens aéreas, elas são todas iguais. Somos traídos pela superficialidade de nossa percepção, como os esnobes que dizem que a caatinga é monótona porque toda a vegetação é igual. 

Para ele, certamente cada uma delas tem uma história, desde o tipo de visitas aos pequenos cuidados cotidianos, instalação elétrica, vazamentos, no sentido literal.
Não entendo como pode ter confundido. Mentiu e enganou? Foi induzido? Sua memória funciona bem ou já dá sinais cotidianos de pequenas confusões? Para um roteirista, é relativamente fácil cobrir essas lacunas. Para mim, no entanto, os tempos são desconcertantes. Volto a perseguir a mancha. Também é desconcertante. Mas pelo menos vejo pessoas reais, com as luvas negras de óleo, tentando limpar as praias, proteger corais e mangues. Desenhos infantis, frases pornográficas, jovens aspirantes a ditador ou mesmo intrincados enredos policiais — tudo é uma espécie de desastre, mas pede outro tipo de voluntariado, equipamento e paciência.
 
Fernando Gabeira, jornalista - O Globo
 
 
 

terça-feira, 11 de junho de 2019

A roupa íntima da Lava-Jato

Políticos se mobilizam para convocar Moro a depor na Câmara e no Senado, falam até na instalação de uma CPI da Lava-Jato, além da aprovação da nova Lei de Abuso de Autoridade”

Uma das teorias da linguagem na internet, desenvolvida ainda nos tempos da linha discada, com seus ruídos característicos, foi batizada com o nome de “roupa íntima”. Trata-se da contaminação da linguagem adotada pelos usuários da internet pela informalidade do contexto em que utilizavam o computador, nas primeiras horas da manhã ou tarde da noite, geralmente utilizando a roupa com que acordavam ou iriam dormir. Os especialistas advertiam que essa informalidade era um risco para as comunicações de natureza comercial, administrativa ou diplomática.

Essa teoria foi comprovada no escândalo do WikiLeaks, a organização transnacional sem fins lucrativos, sediada na Suécia, administrada pelo jornalista e ciberativista australiano Julian Assange, que divulgou em 2013 milhares de documentos secretos do governo dos Estados Unidos, que monitorou conversas telefônicas e mensagens de e-mail em dezenas de países, com comentários assombrosos e revelações escabrosas de diplomatas e funcionários sobre a atuação do Departamento de Estado no mundo. Entre os documentos divulgados mais recentemente, um vídeo de 2007 mostra o ataque de um helicóptero Apache dos marines que matou pelo menos 12 pessoas, dentre as quais dois jornalistas da agência de notícias Reuters, em Bagdá, no contexto da ocupação do Iraque.

Coincidentemente, o autor do “furo”, o jornalista Glenn Greenwald, então colunista do jornal inglês The Guardian, que publicou os documentos também no The Washington, é o responsável pelo site Investigativo The Intercept, que divulgou neste domingo conversas comprometedoras, no aplicativo russo Telegram, do ministro da Justiça, Sérgio Moro, então juiz da 13ª. Vara Federal de Curitiba, e procuradores federais da força-tarefa da Operação Lava-Jato, entre eles Deltan Dallagnol, sobre assuntos da investigação. Casado com o deputado federal David Miranda (PSOL-RJ), Greenwald mora no Rio de Janeiro desde 2005.

Suas revelações mobilizaram os advogados de Lula e o PT, que denunciam a suposta contaminação do julgamento de Lula por motivações políticas da Lava-Jato. No Congresso, políticos de diversos partidos se mobilizam para convocar Moro a depor na Câmara e no Senado, falam até na instalação de uma CPI para investigar a Lava-Jato, além da aprovação da nova Lei de Abuso de Autoridade. Greenwald diz que o volume de material obtido por ele neste caso supera o da reportagem que lhe valeu o prêmio Pulitzer, graças à parceria com o ex-agente da CIA e da NSA Edward Snowden, que está preso até hoje. [material ilegal, visto que foi obtido mediante interceptação telefônica não autorizada pela Justiça.
Portanto, sem valor probatório.]

Moro minimizou o fato e atacou os autores do vazamento: “Não vi nada de mais ali nas mensagens. O que há ali é uma invasão criminosa de celulares de procuradores, não é? Pra mim, isso é um fato bastante grave — ter havido essa invasão e divulgação. E, quanto ao conteúdo, no que diz respeito à minha pessoa, não vi nada de mais”, disse o ministro, após participar de evento com secretários de segurança pública em Manaus.

Diálogos
Na semana passada, Moro teve seu celular “hackeado”, mas o Intercept alega que obteve os diálogos antes dessa invasão. Segundo o site, as informações foram obtidas de uma fonte anônima. Em um dos diálogos, Moro pergunta a Dallagnol: “Não é muito tempo sem operação?”. O chefe da força-tarefa concorda: “É, sim”. Em outra conversa, Dallagnol pede a Moro para decidir rapidamente sobre um pedido de prisão: “Seria possível apreciar hoje?”. E Moro responde: “Não creio que conseguiria ver hoje. Mas pensem bem se é uma boa ideia”. Nove minutos depois, Moro adverte a Dallagnol: “Teriam que ser fatos graves”.


De acordo com o Intercept, procuradores traçaram estratégias para cassar a autorização judicial para o ex-presidente Lula ser entrevistado pelo jornal Folha de São Paulo, por temerem que influenciasse a eleição. O procurador Januário Paludo teria proposto: “Plano A: tentar recurso no próprio STF. Possibilidade zero. Plano B: abrir para todos fazerem a entrevista no mesmo dia. Vai ser uma zona, mas diminui a chance da entrevista ser direcionada”. Outro procurador, Athayde Ribeiro Costa, sugeriu que a Polícia Federal manobrasse para que a entrevista fosse feita depois das eleições. Quando a autorização para a entrevista foi cassada por uma liminar obtida pelo Partido Novo, Paludo escreveu: “Devemos agradecer à nossa PGR: Partido Novo!!”.

Não somente os advogados de Lula pretendem virar a mesa, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) pediu o afastamento de Moro e Dallagnol dos respectivos cargos e as defesas de outros réus se preparam para pedir a nulidade dos processos, alegando que Moro e os procuradores, conforme jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (SDTF), não podem invocar as prerrogativas da magistratura como instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas. Seria prevaricação. [provas ilegais não anulam processos e a OAB não tem nada que intervir no assunto, Moro não está ocupando nenhum cargo privativo de bacharel em direito.
Assim, dificilmente, as supostas transgressões de Moro e dos procuradores chegarão a ser objeto de julgamento.]

 Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo - CB