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segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

A casta de toga

Nada mudou. A Liga da Justiça traja toga cinza. Austeridade, só para os demais.

No início de fevereiro, a revista "Isto é" festejou "o novo tom da justiça". Para a revista, "o Supremo não se dobra a pressões" e rejeita "acomodações". Posando com caras de durões e trajando capas, os Ministros foram retratados como heróis, membros da Liga da Justiça.

Na abertura do ano judiciário, 'Os Onze Supremos' foram recepcionados pela FRENTAS (Frente Associativa da Magistratura e do Ministério Público). Os juízes e promotores não saudavam o estrelato de seus líderes. Estavam ali para pressionar, defender o seu. De lá para cá, a pressão só cresceu e, no final dessa semana, circularam rumores de que magistrados estariam dispostos a entrar em greve.  Não é a primeira vez que juízes pressionam o Supremo e ameaçam paralisar atividades. Fizeram o mesmo em 2000, ano da aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e da imposição de tetos salariais. Cortes e austeridade fiscal para todos, menos para os magistrados.

Nelson Jobim, em seu depoimento à História Oral do Supremo, desce aos detalhes, narrando peripécias de fazer inveja a Pedro Malasartes. Jobim manipulou pauta do Supremo, blefou, ameaçou, fez acordos com líderes do movimento grevista e muito mais. Tudo para escapar dos limites impostos pelo teto constitucional sem parecer que o Supremo cedera ao 'sindicato'. Para tanto, contou com a anuência do Presidente Fernando Henrique e fez tabelinha com o então Ministro Chefe da Casa Civil, Pedro Parente --a quem define como um 'craque' -- e com Gilmar Mendes, à época na Advocacia Geral da União.

Eis o resumo da ópera: "Aí você via as coisas mais malucas.(...) Tinha gratificação por... curso superior [risos]. Sabe disso? Tinha gratificação não sei do quê...,tinha o diabo de gratificação. (...) Eu absorvi tudo isso dentro do valor, então legalizei... E o Pedro Parente teve uma figura muito importante. (...) Todos aqueles penduricalhos que tinham, tudo ficou legalizado (...). Percebeu a lógica? Em vez de dizer que era ilegal, eu dizia que aquilo ali que tu recebeu passou a ser legalizado, porque passou a ser integrante do salário."

Não há quem não perceba a lógica. Jobim, Ministro do Supremo, guardião da Constituição, desenhou e implementou uma operação para 'legalizar' 'gratificações malucas'. Montou uma lavanderia, não de dinheiro, mas de penduricalhos. A operação foi longa e só se completou no governo Lula, em negociações diretas com o ministro Palocci e membros do STJ, para garantir que abono não fosse taxado. A íntegra do depoimento é de tirar o fôlego e vale o acesso ao portal do projeto. Assim, quando afirmam que não há nada de ilegal em seus contracheques, que seus salários acima do teto não ferem a lei, os juízes não estão faltando inteiramente com a verdade. Está tudo 'legalizado'.

Mas os magistrados voltaram a inventar novos 'adicionais malucos'. O para moradia, garantido por Luís Fux em 2014, é só um deles. Isto para não falar das ações cobrando dívidas e adicionais não pagos no passado. Por isto, os contracheques chegam à estratosfera. Tudo legal. Tudo decidido e autorizado pelo próprio judiciário que julga as ações que move contra o Estado.  A desculpa que recebem o que a lei autoriza é esfarrapada. A lei em questão fere lei maior. Os subterfúgios encontrados agora não passam de modos espertos de contornar a legislação em benefício próprio. São reedições da lavanderia do Jobim. Como observou Ribamar Oliveira (Valor, 8/02/2018), a Lei de Diretrizes Orçamentárias em vigor veda explicitamente o pagamento do auxílio-moradia para o agente público que possui imóvel no município em que exerce o cargo. Bretas, Moro e Gilmar Mendes e tantos outros, portanto, desrespeitam a lei. Simples assim.

Os magistrados estão dispostos a tudo para preservar e justificar seus privilégios
. O exemplo mais acabado ocorreu no início de 2016, significativamente, no Paraná. A Gazeta do Povo noticiou que juízes e promotores do estado recebiam salários acima do teto constitucional. A corporação recorreu à tática introduzida pela Igreja Universal: abrir processos individuais contra os jornalistas em 40 municípios espalhados pelo Estado. Eram citados em Curitiba em um dia, Maringá em outro e assim por diante, forçados a viajar pelo Estado para responder as citações, impedidos de trabalhar e arcando com os custos da defesa e as despesas dos deslocamentos. Que outra organização recorreria a uma estratégia tão requintada de vingança?

Ainda assim, em uma primeira decisão, a Ministra Rosa Weber não viu nada de errado na retaliação coletiva orquestrada pelos paranaenses. Demorou meses para se convencer do óbvio e acatar a medida cautelar do jornal.  O mais incrível é que a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) não se deu por vencida e entrou com pedido para que a ministra revisse sua decisão, alegando que "não houve abuso do direito de ação por parte dos magistrados paranaenses, pelo simples motivo de que a Associação de Classe não tem legitimação para propor ação coletiva visando à obtenção de indenização que decorre da violação de direito personalíssimo (ofensa à honra e intimidade)." Quando a questão é garantir seus salários, os membros da casta se comportam como intocáveis.

Desde a aprovação da LRF, juízes e promotores defendem seus privilégios com voracidade incomum, sem respeito à ética e à lei. Nada justifica os privilégios com que contam e só querem fazer crescer. Austeridade, só para os outros. Pode faltar dinheiro para educação e para a saúde, mas não para o Judiciário.  Não por acaso, na Lava Jato, não é segredo, delações envolvendo os membros da Liga foram evitadas. Moro e Dallagnol sabem das retaliações de que seus pares seriam capazes, afinal moram no Paraná e, no frigir dos ovos, são beneficiários dos penduricalhos 'lavados' por Jobim. Os castos predam o erário que dizem defender.

Nada mudou. A Liga da Justiça traja toga cinza. Austeridade, só para os demais.



Fernando Limongi - Valor Econômico

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

O vendedor de greves

Esforço para livrar Lula da lei prejudica mais a democracia do que as mentiras que ele diz

Sábado, o País ficou sabendo que o presidente Temer não se intromete em assuntos do Judiciário, mas resolveu meter sua colher imprópria no julgamento de Lula, hoje, no Tribunal Federal Regional da 4.ª Região (TRF-4), em Porto Alegre. À pergunta formulada em entrevista exclusiva pelos repórteres da Folha de S.Paulo Gustavo Uribe e Marcos Augusto Gonçalves sobre como vê o julgamento e se seria melhor que o réu concorresse nas eleições este ano, o presidente respondeu: “Não posso dizer uma coisa que está sob apreciação no TRF. Agora, acho que se o Lula participar, será uma coisa democrática, o povo vai dizer se quer ou não. Convenhamos, se fosse derrotado politicamente, é melhor do que ser derrotado (na Justiça) porque foi vitimizado. A vitimização não é boa para o país e para um ex-presidente”. Pois, segundo Temer, caso Lula seja impedido de se candidatar, isso vai “agitar o meio político”. Ora!

Não é o caso de aqui citar devotos, correligionários e parasitas oportunistas que sonham se coligar com Lula no pleito. Mas, sim, destacar figurões do governo e da oposição – Fernando Henrique Cardoso, Geraldo Alckmin, João Doria, Beto Richa, Ronaldo Caiado, Rodrigo Maia, Raul Jungmann – e vários interessados que dispararam esse mesmo truísmo absurdo e suspeito. No Estado de Direito, vigente no Brasil, não há a hipótese de candidatos escolherem que adversários preferem para a disputa. Ou há?

Eles deveriam é atentar para o pronunciamento de um eventual beneficiário da condenação do ex-líder metalúrgico hoje, o ex-governador do Ceará Ciro Gomes, presidenciável do PDT. Ciro disse que torce pela absolvição de Lula, mas se negou a crer que haja uma conspiração política no Poder Judiciário contra o petista. Em rara prova de lucidez, o ex-ministro do próprio disse que imaginar um complô “ofende a inteligência média do País”. E ainda advertiu que “a consequência inevitável desta constatação teria desdobramentos tão graves que a um democrata e republicano só restaria a insurgência revolucionária”. É isso aí!

Contrariando sua vocação de trânsfuga contumaz, ele é fiel ao juramento de cumprir e defender as leis do País, feito quando assumiu o governo do Ceará, em 1991. Ao contrário, o presidente e alguns citados, ainda vigente o juramento, cometem delito de lesa-pátria, rasgam a Constituição e posam de generosos e benevolentes. Segundo meu avô, de esmola grande cego desconfia. Não é o caso desses que se fingem de cegos para se dar bem no futuro, caso tenham de se submeter ao Estado de Direito, no qual todos têm de seguir a lei. Quem canoniza o réu investe no falso conceito de que voto substitui Justiça e cancela penas, como pregava Antônio Carlos Magalhães à época do mensalão. E deu no que deu!

Nisso, aliás, todos eles têm no condenado a nove anos e meio de cadeia por corrupção passiva e lavagem de dinheiro a mais completa síntese de campeões da patranha, celebrados nas figuras de João Grilo e Chicó na obra-prima da comédia popular brasileira O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. Basta lembrar que todos manifestam temer uma convulsão social com a eventual confirmação da condenação do Pedro Malasartes dos palanques e palácios. Afinal, ele seria o mais popular líder político do Brasil em todos os tempos. É mesmo? Por que, então, Lula não viaja em aviões de carreira como os mortais comuns e só comparece a eventos controlados pela militância cega por devoção e paixão?

Lula ascendeu entre heróis nacionais como líder das greves de metalúrgicos do ABC paulista em plena ditadura militar, da qual foi vítima. Na verdade, como está explicado no meu livro O que Sei de Lula (Topbooks, 2011), ele teve no general Golbery do Couto e Silva seu propulsor no início da carreira de dirigente. O criador do Serviço Nacional de Informações usou sua liderança carismática para impedir que Brizola empolgasse os movimentos sindicais e solapasse o regime. Emílio Odebrecht, pai de Marcelo, citado nas delações de 77 executivos de sua empresa e de quem Lula é o “Amigo” da tal lista, contou ao depor na delação premiada a procuradores federais da Lava Jato, a mais bem-sucedida operação policial e judicial da História, que Lula impediu greves em empresas suas, tendo recebido dinheiro para fazê-lo.

Foi nesse ínterim que Lula virou santo popular, por ter sido preso e processado após a intervenção no sindicato que presidiu nos anos 70 e 80. Mas sua passagem pela carceragem do Dops paulista à época da ditadura foi mais confortável que a de outros companheiros de cela, conforme testemunho do delegado Romeu Tuma Jr., secretário nacional de Justiça no primeiro governo Lula e filho do policial homônimo, em Assassinato de Reputações (Topbooks, 2013). Tuma relata que o falso mártir foi agente de informações do pai, a quem contava os segredos do movimento grevista. Se Odebrecht e Tuma não mentiram, em vez de vítima, o seis vezes réu de hoje foi, de fato, o que os colegas sindicalistas chamariam, à época, de “traíra” dos trabalhadores e “dedo-duro” dos militantes de esquerda, que sempre o endeusaram. Ninguém, até agora, desmentiu na Justiça os depoimentos aqui citados.

Em périplos pelo País, Lula conta lorotas que mais se acomodariam em narrativas das aventuras de grandes mentirosos do folclore. Como no caso recente em que algum intelectualoide do auditório do teatro Oi Leblon, núcleo de rebeldia juvenil na ditadura sob o nome de Casa Grande, lhe soprou que o assassino de Antônio Conselheiro foi ancestral do presidente do TRF-4, em que hoje está sendo julgado. De fato, o tio-trisavô de Thompson Flores era coronel, não general, e morreu três meses antes do beato de Canudos.

Essa foi apenas uma piada mentirosa e sem graça. Mais graves são as patranhas misericordiosas de pretensos adversários, como Temer, que põem as instituições em risco para tornar um mentiroso serial acima da lei e fora da democracia.
 
José Nêumanne - O Estado de S. Paulo