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terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

O silêncio do clã Bolsonaro - O Globo

José Casado

Com o filho Flávio, Jair cultuava o ex-capitão do Bope

Escolheram o silêncio, estranharam amigos de ambos na Polícia Militar do Rio. [ a liturgia do cargo de presidente da República, desaconselha certas condutas, além do que elogios, especialmente para um morto,  são de pouca valia.] para um morto um eAté há pouco não perdiam chance de louvá-lo: um “brilhante oficial”, nas palavras do patriarca Jair, ou, um homem de “excepcional comportamento”, na definição do primogênito Flávio. Viam nele um combatente urbano, treinado no Batalhão de Operações Especiais, hábil no gatilho à distância, sagaz em perseguição camuflada na geografia carioca. 

Os Bolsonaro o reverenciavam. Jair, por exemplo, se apresentou como deputado federal no julgamento do amigo, no outono de 2005. Assistiu à sua condenação (19 anos e 6 meses de prisão) pela execução “de um elemento que, apesar de envolvido com o narcotráfico, foi considerado pela imprensa um simples flanelinha”, como descreveu em discurso de protesto na Câmara. Com o filho Flávio, cultuava o ex-capitão do Bope Adriano Magalhães da Nóbrega como símbolo de uma PM cuja prioridade, julgavam, deveria ser a eliminação sumária de suspeitos, “porque vagabundo tem de ser tratado dessa maneira”. Dedicaram-lhe discursos, homenagens e até inscreveram seus parentes na folha salarial do Estado do Rio. 

Estavam numa cruzada por alguma forma de legitimação das milícias. No plenário da Assembleia, o deputado Flávio argumentava: “Será que um vagabundo sendo preso poderá se recuperar? Temos de deixar de ser hipócritas! Não há recuperação mesmo.” E justificava o avanço desses grupos à margem da lei: “Não podemos generalizar, dizendo que esses policiais, que estão tomando conta de algumas comunidades, estão vindo para o lado do mal. Não estão.”  Era uma visão consensual no clã liderado por Jair. Em 2003, na Câmara, saiu em defesa das execuções feitas por policiais baianos. “Enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio será muito bem-vindo. Se não houver espaço na Bahia, pode ir para o Rio. Terão todo o meu apoio... Meus parabéns!”

Acusado de liderar matadores de aluguel no Rio, o ex-capitão do Bope fluminense acabou morto pelo Bope baiano em Esplanada, cujo cemitério foi erguido por Antônio Conselheiro, líder do fanatismo religioso no sertão do final do século XIX. O clã Bolsonaro preferiu o silêncio.
 
 
José Casado, colunista - Coluna em O Globo
 
 

sexta-feira, 28 de junho de 2019

O Supremo, supremamente legislando, como gosta de fazer decretou que a 'homofobia' é crime, equiparando tal coisa a crime de racismo

  "A tal homofobia"


O Supremo, supremamente legislando, como gosta de fazer tenho medo de quando decretarem o fim, talvez por inconstitucionalidade, da Lei da Gravitação Universal, e nos ponhamos todos a flutuar pelos ares –, decretou que a “homofobia” é crime, equiparando tal coisa ao racismo. Então, talvez pelos cansados e doloridos ossos do ofício de quem vive a pensar esta nossa complexa sociedade, pergunto eu o que são essas coisas todas ora criminalizadas. Não digo o que a lei vá determinar que sejam, de acordo com os ventos da moda e a cabeça dos juízes – de que, tal como de bumbum de neném, ninguém sabe o que vem. Mas o que são, de verdade, essas coisas que vêm de ser criminalizadas.



A primeira, que já estava na lei, é relativamente simples: racismo é tratar de forma diferente as pessoas em função de variações fenotípicas de aparência, como formato do olho, largura das narinas ou lábios, cor de pele e outros critérios irrelevantes. Que estas tenham sido tomadas no lugar de, sei lá, tamanho do pé, proporção na maior dimensão entre os ossos calcâneo e tíbia, formato de orelha (utilíssimo para identificar elfos!) ou qualquer outra besteira, é meramente questão cultural – japoneses são racistas contra os coreanos, mas poucos brasileiros seriam capazes de saber qual é qual.



O tal racismo, todavia, ou antes o racismo pregado sob a fantasia de combatê-lo pelos movimentos ditos “negros”, é mera importação de uma imbecilidade americana (mais uma, meu Deus!, até quando?!). Lá eles usaram, e usam ainda, esses elementos fenotípicos para manter separadas, na medida do possível, as nações (culturalmente distintas ao ponto de terem música e culinária próprias, sotaques diferentes etc.) descendentes dos norte-europeus, até agora predominantes; descendentes de escravos africanos (até agora comendo o pão que o Diabo amassou); e, nos últimos anos, os descendentes da maravilhosa mestiçagem entre espanhóis e nativos (estes últimos viraram uma estranha raça “hispânica” em que não entram os espanhóis). Lá, manter essa ficção de “raças” é um modo de lidar com um problema que na verdade é um “problema das nações”, em muito semelhante ao dos soviéticos, que também tinham de lidar com variações nacionais num todo que se supunha uma nação única. Vejam bem: não é certo; quando um americano refere-se a uma “raça”, ele na verdade está se referindo a uma nação. Mas o que é um termo, quando o seu sentido é plena e perfeitamente percebido, quando alguém pode ter a aparência duma “raça” e secretamente ser de outra, como no caso de Rachel Dolezal e, antes dela, de inúmeros afro-americans de pele clara que se passaram por whites, como George Herriman, quando era isso o mais conveniente?



Já aqui, claro, a palhaçada não tem como ir mais longe. Temos todos a mesma cultura, falamos com o mesmo sotaque e, principalmente, temos todos ancestrais tanto europeus quanto ameríndios e africanos, com a relativamente rara exceção de descendentes de gente que imigrou depois do fim da escravidão e, portanto, não tem chongas a ver com supostas questões raciais decorrentes da escravização de gente de pele muito escura por gente de pele de todas as cores. Preta inclusive.  m outras palavras, podemos, tranquilamente, dizer no Brasil que “racismo” consiste naquilo que fazem os movimentos racialistas importados da gringa: acreditar em supostas raças. 

Quem trata alguém melhor ou pior por sei-lá-qual besteira fenotípica, além de tirar carteirinha de otário, enquadra-se no tal racismo. É o triste caso de gente cujo cérebro foi tão bem lavado a seco, enxugado e passado a ferro por movimentos racialistas que chega ao triste ponto de sair pela rua com cartazes dizendo que “miscigenação é genocídio”, e outras frases tão infelizes que causariam enorme alegria num nazista. Há também um que outro idiota que, por alguma razão que seus dois neurônios lhe insinuam, acha mais provável que gente com a pele assim ou assada seja melhor ou pior nisso ou naquilo. Nos Estados Unidos, repito, há componentes culturais nacionais que acentuam este ou aquele aspecto, e o que lá se chama de “raça” é na verdade nação. Eu confiaria mais num alemão para cantar em coro que num irlandês ou francês, por exemplo. Mas aqui, em que graças a Deus nos misturamos todos desde antes de o bispo Sardinha virar ensopado de frutos do mar, chega a ser engraçada tal ideia.






Chegamos, então, a uma primeira conclusão: racismo é idiotice, pura e simples. É separar o inseparável, ontologizando um acidente irrelevante.



E a tal “homofobia”? Esta é bem mais complicada. Primeiro, etimologicamente, o termo não faz lá muito sentido. “Homo” significa “igual”, “o mesmo”, como em “homossexual” (que seria quem sente primordialmente atração sexual por pessoas do mesmo sexo, de sexo igual). “Fobia”, por seu lado, é “medo”. Assim, a “homofobia” seria o medo do igual. Tendo em mente o uso vulgar, vulgaríssimo, do termo na política e nas lúgubres e tristonhas redações de jornal, entretanto, daria até para requentar aquela noção, parcialmente verdadeira, segundo a qual quem tem propensão a um determinado pecado, mas que procura não cometê-lo, tem mais medo dele que quem não tem tal propensão. Faz sentido. Um ladrão regenerado foge de oportunidades de furtar algo; um alcoólatra sóbrio foge de bares; e alguém que sente desejo sexual por pessoas do mesmo sexo, mas racionalmente não quer realizá-lo foge, tem medo, de saunas gay, passeatas do orgulho idem, e por aí vai. Ele teria medo do igual, no sentido de ver o igual como alguém que caiu num abismo que o atrai, que o chama, e ele deseja desse abismo afastar-se o mais que puder.



Mas não. Infelizmente, o que querem criminalizar ao fazer um crime da tal “homofobia” seria o desagrado com o comportamento sexualmente ativo em relação ao mesmo sexo coisa que, curiosamente, todas as religiões com um tempinho mais de estrada (não estou falando de seitas abertas ontem à tarde) unanimemente condenam. Como venho dizendo há anos, o que os movimentos LGBT desejam não é a tolerância; esta, no Brasil, felizmente, eles já tinham. Nunca houve aldeões com archotes esperando Cauby Peixoto à porta das casas de espetáculo. Sempre se considerou perfeitamente normal que duas senhoras morassem juntas, e a disposição das camas no apartamento nunca foi da conta de ninguém. Mas não; a tolerância não lhes bastava. Queriam que o que todas as religiões tradicionais inclusive a que fez do Brasil o Brasil – condenam, ou seja, a prática da homossexualidade, fosse mais que tolerada quando mantida entre quatro paredes. Queriam que fosse igualada ao que a Igreja, que nos deu nossa civilização, considera um sacramento, ou seja, uma realidade visível e eficaz de uma realidade salvífica invisível: o matrimônio.



Ao seu modo, conseguiram. Não, claro, inventando um sacramento gay, mas levando às últimas consequências o que já estava em semente naquilo que Antônio Conselheiro, de santa memória, condenou como armadilha diabólica: o “casamento” civil. Quando o matrimônio se transforma em mero contrato, esse contrato pode primeiro ser abjurado e desfeito (o divórcio: demorou, mas chegou), e em seguida pode ser aberto a todo tipo de sociedade: daí o “casamento gay”, a poligamia ou poliandria (já há alguns casos registrados), em breve quiçá o casamento consigo mesmo (por enquanto existente apenas como farsa), com crianças, com bichos, com cadeiras, pianos ou telefones celulares.



Note-se que isso nada tem a ver com o amor que tenham ou não as pessoas. A questão é outra, totalmente outra. A sociedade reconhece o casamento, que é uma instituição de direito natural, pelo fato simples e evidente de que é nele que as próximas gerações são concebidas e criadas. É mero reconhecimento de fato preexistente na natureza. É exatamente como a menoridade penal, que visa reconhecer a diferença cognitiva e comportamental entre uma criança e um adulto, e não é em absoluto criada pela lei, apenas reconhecida por ela. Simples assim. Qualquer coisa que saia da união conjugal fértil, monogâmica e indissolúvel já não seria, de modo algum, casamento. A celebração do amor existente no presente entre as pessoas não é o que faz o casamento.



    Seria horrendo se o sexo não fosse de alguma maneira regrado pela sociedade



É perfeitamente possível, aliás, que haja casamento sem nenhum amor presente, como sempre foram os das famílias reais, por exemplo, em que na melhor das hipóteses os noivos viam um retratinho (pintado por um pintor muito generoso!) do futuro cônjuge. É o que ocorre também nos casamentos arranjados, que provavelmente hoje ainda correspondem à maioria absoluta dos casamentos no mundo, em grande parte devido aos indianos – há páginas de casamenteiros virtuais em que se encontram classificados como “doutora em Inteligência Artificial por Harvard, da casta tal, procura marido de casta e formação acadêmica equivalentes”. Ou seja: amor, afeto e desejo sexuais presentes são uma coisa, e casamento é outra, totalmente diferente. Mas divago.



Então, na ascensão das demandas do movimento organizado gay (que – não tenho dados confiáveis, infelizmente – provavelmente não correspondem às demandas reais dos que supostamente seriam representados por ele), após a equiparação de qualquer contubérnio sexuado ao matrimônio, vem a etapa seguinte. A campanha é furiosa. É difícil ver uma página de notícias na internet que não tenha manchetes trombeteando a bondade e beleza intrínsecas da relação venérea com o mesmo sexo a cada poucas outras manchetes. Na tevê – que graças a Deus não tenho, não assisto e em nada me atrai, muito pelo contrário – dizem que a situação é ainda pior. Eu sei que os anúncios de novas novelas já avisam que haverá drag queens, trans, casais gay, o diabo aquático, como já dizia Vicente Matheus. E precisamente como com o tal do racismo, pra variar, a campanha “anti-homofobia” (seja lá o que isso for) é importação da Gringolândia. Lá eles chegaram ao ponto de processar até a falência confeiteiros que não queriam fazer bolos para os tais casamentos gays, entre outras medidas pesadas. Aqui eles contam com o STF para fazer o que jamais seria feito por quem quer que tivesse de responder aos clamores populares.



Mas o problema de base é outro, como venho insistindo à margem de toda essa confusão. O problema é, primeiro, referente ao sexo. O que é sexo? Ele pode ser percebido como uma pulsão, um anseio, em cujo caso ele será sempre uma negação: o que eu desejo é aquilo que eu não tenho. Se desejo a Fulana (ou o Fulano, ou "n" Fulanas, ou "n" Fulanos), só o que isso significa é que eu não a tenho. Que há um buraco em meu ser na forma destoutro ser que desejo. O/a Fulano/a, neste caso, será apenas um conduto para o meu prazer (por mais que eu a/o ame, ou tenha me convencido disso).



Opinião da Gazeta: Criando um tabu



A outra forma de ver o mesmo fenômeno humano é como o processo que gera novos representantes da nossa espécie. Parece triste, é verdade, reduzir algo tão cheio de sentidos diversos para o ser humano (mormente o ser humano que ama) a algo tão básico e elementar, algo tão animal, quanto isso. Qual é a diferença, neste modo de ver, entre o sexo conjugal e o sapinho que espreme a sapinha para que ela solte óvulos sobre os quais (perdoem-me, leitores mais delicados) ele ejaculará para fazer surgir a próxima geração de girinos? Quase nenhuma.  Mas há uma diferença: o homem, por ser dotado de razão e por viver em sociedade (somos, afinal, já dizia Aristóteles, um “animal naturalmente social”), precisa lidar com isso de alguma maneira, como lida com a necessidade de alimentar-se. Assim como seria péssimo se as pessoas, por exemplo, comessem às escondidas, trancadas num cômodo fechado, tentando deglutir o máximo no menor período de tempo, ou se nós simplesmente agarrássemos a comida e a enfiássemos boca adentro em qualquer lugar (até mesmo, horresco referens, andando rua afora, como fazem os gringos mais selvagens), seria horrendo se o sexo não fosse de alguma maneira regrado pela sociedade.



E é este regramento que a campanha ora em curso, que espero em Deus tenha atingido seu ápice na derradeira barbaridade pseudolegislativa do STF, põe em risco. A sociedade sempre reconheceu o segundo modo de ver o sexo (como atividade reprodutiva) de forma a preservar o ambiente conjugal em que ele ocorre, para o bem das próximas gerações. É coisa boa e nobre que isso seja feito: assim toda criança tem preservado o seu direito a ter um pai e uma mãe, por exemplo, e nos raros casos em que um deles ou ambos se perdem ela pode ser adotada – dando-se-lhe pai e mãe formalmente, em geral reconhecendo quem a cria materialmente. Mas basicamente, ao reconhecer esta forma, continua entre quatro paredes a outra, que apontei em primeiro lugar. Os carinhos conjugais têm seu lugar: no quarto do casal, ou, na pior das hipóteses, na sala de estar quando não há visitas. Na rua, nunca foi de bom tom que mesmo casais casados e com filhos entretivessem-se em longos beijos luxuriosos, por exemplo, que dirá que se apresentassem ao outro com lingeries sexy ou coisa do gênero.



Mas fez-se a mistura, ao decretar-se, num outro fiat pseudolegislativo, que o casamento seria qualquer união sexuada. Foi já uma medida péssima por excluir de uma ampliação indevida do termo outros agrupamentos parafamiliares que teriam todo o direito a ver-se incluídos; afinal, qual seria a diferença entre duas senhoras solteironas que dividem uma casa e dão-se mutuamente prazer sexual ou outras duas senhoras, que igualmente dividam uma casa, mas que não se entregam a práticas tríbades? Ora bolas, no que a sociedade tem o seu pitaco a dar, absolutamente nenhuma! O que elas fazem entre quatro paredes lhes compete e a Deus, e só. Mas, ao misturar um sentido com o outro do sexo, uma visão com a outra do mesmo fenômeno, as segundas solteironas viram-se ou bem obrigadas a mentir para o oficial de cartório sobre seu uso dos aparelhos reprodutivo e digestivo (coisa que jamais deveria ser da alçada dele!) ou bem a continuar sem amparo legal para o seu arranjo.



    Agora, com o desejo sendo tratado como fonte da identidade, a cama foi para a rua. Ou para cima do ponto de ônibus



Houve, e há, casos evidentes de injustiça na impossibilidade legal anterior de reconhecer os arranjos domésticos outros que não os conjugais. O herdeiro dos Guinle, por exemplo, era um artista conceituado, mas sem muito juízo financeiro, que gastava o dinheiro à medida que entrava. Juntou-se com outro rapaz, e este arranjou-lhe as finanças de tal modo que, quando faleceu, era ele quem tinha mais dinheiro na falida família. Esta, imediatamente, passou a tentar arrancar para si o dinheiro que por justiça seria do companheiro do falecido. A injustiça é evidente, e merecia remédio legal. Um remédio que assegurasse igualmente os direitos de irmãs solteironas que vivem juntas, ou mesmo de arranjos domésticos como o meu atual, em que, aleijado, sou cuidado por um filho só. Neste caso, é claro que meu filho tem mais direitos que sua querida irmã, ainda que os dela sejam inegáveis. Mas eu só poderia assegurar-lhe estes se passasse pela farsa de fingir “casar-me” com ele, coisa que ironicamente continua impossível por terem sido preservados na instituição do casamento civil os impedimentos do matrimônio religioso.



Mas a inserção a fórceps de um reconhecimento do sexo como forma de dar-se prazer pelo outro na legislação serviu como mera cunha para a introdução de outro horror, formalizado por completo com a barbaridade do STF a que ora me refiro. E esta é a invenção de uma categoria de cidadãos definida pelo uso que fazem de seus aparelhos reprodutivos e digestivos. Ora, sempre houve quem fizesse as coisas mais bizarras entre quatro paredes. A mente humana, bem dizia minha sábia tia-avó Marina Ramalhete, “é um cipoal”. Uma maçaroca entrelaçada de que não se tem como definir o começo e o fim de cada parte, nem, muito menos, destrinchar, esticar, alinhar os componentes. Sempre houve quem quisesse que o companheiro (seja ele o cônjuge ou não, seja ele do mesmo ou de outro sexo) fizesse coisas estranhíssimas. O próprio presidente da República, lamentavelmente, apresentou à nação a perversão sexual de urinar no rosto do parceiro. Outros quererão outras coisas, com “bodes, anões besuntados e carrinhos de mão”, como aventou o Verissimo (Filho, que o Pai não se daria a tal facécia). E isso mesmo entre próceres da sociedade e casais respeitabilíssimos no que diz respeito ao público. Um cipoal, repito. Mas sempre, graças a Deus e à tão hoje mal-falada moral e bons costumes, esse tipo de coisa se fez entre quatro paredes.



Agora já não. Por se definir uma categoria de cidadãos a partir de seus desejos sexuais e de suas práticas para a busca de prazer venéreo, este tipo de coisa, esta faceta sempre presente do sexo, foi trazida à luz. E foi para, de péssima maneira, protestar contra este fato inegável que Bolsonaro fez a besteira imunda de transmitir para o país inteiro a degradante cena que se realizou – e era este o ponto dele, e é este o meu – sobre um abrigo de ônibus, em público. O mesmo ocorre por todo lado nas ditas "passeatas do orgulho gay", esta junção de dois pecados mortais, no carnaval e sabe-se lá por onde mais.



Qual é o limite? Uma dupla de pessoas do mesmo sexo, profundamente apaixonadas, andar de mãos dadas pelas ruas? Ou beijar-se como se tentassem arrancar uma à outra as amígdalas com a língua? Ou urinar na cara do outro sobre um ponto de ônibus?! A linha divisória entre o mau e o bom comportamento foi borrada completamente quando se reconheceu legalmente a busca de prazer venéreo como um bem objetivo, esquecendo-se do fato evidente de que toda e qualquer sociedade sempre reconheceu o sexo apenas como modo de garantir o ambiente conjugal para a perpetuação da sociedade e, claro, da espécie. Nunca se quis que a sociedade entrasse no quarto conjugal; só se quis que daí nascessem crianças, e que elas fossem bem educadas. Mas agora, com o desejo sendo tratado como fonte da identidade, a cama foi para a rua. Ou para cima do ponto de ônibus.



O objetivo disso tudo, dessa campanha toda, dessa invenção maluca de modalidades identitárias fluídas, é fragilizar e violentar a instituição conjugal



As pessoas não são o que elas desejam. Ao contrário, até: o que desejamos, por o desejarmos, é provado como algo que nos falta, logo algo que não somos. Se fôssemos cair num freudismo barato, poderíamos dizer que o rapaz que procura outro rapaz para o prazer sexual sente-se atraído pelo outro por ver nele a figura de seu pai ausente, ou mesmo do masculino ausente nele mesmo por não ter tido uma figura paterna. Isto, aliás, explicaria às mil maravilhas o triste e horrendo tipo de crime com que já tive o desprazer de me deparar muitas vezes em minha carreira de perito criminal, em que um senhor mais idoso contrata rapazes para ter relações e acaba sendo barbaramente torturado e morto por eles após a relação. Ou seja: eles procuram nele algo, excitam-se, são capazes de participar da orgia e, esta finda, revoltam-se contra o próprio desejo, que veem encarnado naquele senhor idoso e exausto, naquele triste modelo de pai putativo e, no mais antigo tipo de sacrifício, o imolam, matando-o como se nele matassem ao mesmo tempo seu pai ausente e o próprio desejo pelo mesmo sexo que esta ausência criaria. São sempre crimes horrendos, com requintes de crueldade raros de encontrar em outros. Talvez fosse isso a verdadeira “homofobia”, o verdadeiro medo do igual. Ou, pior, do igual já passado do ponto; são sempre rapazolas fortuchinhos que chacinam um senhor de cabeça branca.



Ao trazer para a via pública o que sempre ficou entre quatro paredes, que é o sexo como busca do prazer venéreo apenas, o que se traz, em última instância, são esses horrores, ainda piores que o uso do próximo como penico. Pior, ao se afirmar a existência (pois não se pode criminalizar o inexistente – é fato conhecido da antropologia que todo tabu aponta para um desejo) de pessoas definidas apenas pela orientação geral de seus desejos venéreos, sejam eles orientados para pessoas do mesmo sexo ou não, criam-se identidades fluídas como fluido é o desejo. Daí a importância no processo da teoria de gênero, que procura justamente afirmar esta fluidez identitária, em que ora se é homem, ora se é mulher, e ora se é dragão – caso real: o senhor Richard Hernandez, 55 anos, americano, após “virar mulher”, mandou cortar fora as orelhas e o nariz, além de bifurcar a língua e submeter-se a diversos outros procedimentos, na crença de assim tornar-se um dragão. Ficou foi feio, tadinho.



E, se fôssemos usar a teoria de gênero para outro desejo extremamente semelhante, que é o gustativo? Afinal, ambos – comer e reproduzir-se – são pulsões oriundas da mesma necessidade vital básica de persistir, enquanto indivíduo e enquanto espécie. Eu mesmo, hoje, teria passado por vários “gêneros” diversos, na medida em que já ingeri coisas tão díspares quanto cerveja e café. Se não as houvesse desejado, não as teria consumido. E a diferença entre a bebida ou comida e o sexo é apenas de tempo, na medida em que foi o meu desejo sexual pela minha esposa que veio a fazer nascer meus lindos filhotinhos, hoje adultos, e foi o meu desejo gustativo que me fez ingerir chá, cerveja, iogurte, o que seja. Comemos mais frequentemente algo que, com perdão da grosseria, alguém. Por menos que o queiram as colunas dos jornais, sexo não é algo nem tão frequente nem tão frenético quanto se quer fazer crer, para a imensa maioria das pessoas. Temos de desejar alguém para que a espécie perdure, e temos de desejar a comida para que o indivíduo perdure. Mas do desejo ao nascimento tem-se no mínimo nove meses, e depois ainda há todo o tempo de criação da pessoinha que surgiu daquele desejo. Assim, tem-se tempo para definir. Já a comida e a bebida, que temos que desejar várias vezes ao dia, faz com que a fluidez do nosso gosto seja aparente: agora quero chá, depois quero cerveja, depois quero uma maçã ou um lombo de porco assado. Imaginemos o que seria definir nossa identidade a partir desses desejos gustativos! Mas é bem isso, porém em câmera lenta, que se faz quando, seguindo a ideologia de gênero, inventa-se de se definir a identidade de alguém pelo que a pessoa deseja.






E, voltando à vaca fria, se a sociedade abraça este absurdo, fazendo do desejo (logo, da afirmação da ausência) fator preponderante na definição da identidade, arromba-se a parede do quarto para a rua, o que faz com que ganhem vida os fantasmas mais horrendos que possam sair deste nosso cipoal mental. O que se cria, então, é uma sociedade em que não há um argumento definitivo contra quem deseja urinar em público no rosto do parceiro, desde que a relação seja consensual. E a necrofilia, em que não há possibilidade de consensualidade, mas tampouco há de negação? E a pedofilia, em que sempre é possível afirmar a presença de algum tipo de desejo e consenso por parte da vítima, na mesmíssima medida em que se o afirma, por exemplo, quando se oferece à sociedade como algo bom um menino de 10 anos de idade travestido de drag queen, rebolando num palco para basbaques de meia-idade?



Pois isto já há. De drag queens de 10 anos de idade, ou de drag queens com ficha na polícia por abuso sexual fazendo shows para crianças em bibliotecas públicas americanas, à Xuxa declarando que agora é “bem comida”, o que sempre havia sido (felizmente) mantido entre quatro paredes pulou à rua. O sexo como desejo venéreo, graças às canetadas imbecis de quem crê criar realidade com leis humanas, tornou-se coisa pública e celebrada, como antes era a procriação no âmbito conjugal. A criação das novas gerações, a aposta no futuro, foi substituída pela celebração do orgasmo presente. As bodas, pelas bacanais carnavalescas ou das inúmeras paradas do orgulho gay mundo afora.



E com isso sofre justamente aquilo que a sociedade deveria procurar manter, e sempre manteve, como algo a proteger pelo bem das próximas gerações: a família de verdade, a família geradora de vida, em que um homem e uma mulher, juntos, têm filhos e os criam e, ao longo de toda a vida e especialmente na velhice, amparam-se mutuamente. Tanto pela confusão entre casamento e contubérnio sexuado, quanto pelos horrores que leva à imaginação de crianças e adultos essa, por assim dizer, projeção cinematográfica do mais decadente e mais perverso que possa haver no inconsciente sexual, quanto, finalmente, pela proteção extra dada às demonstrações de desejo sexual pelo mesmo sexo, em detrimento do desejo matrimonial.  Em outras palavras: se a “homofobia” é proibida, o dono de bar terá de traçar uma linha ele mesmo do que será permitido em seu estabelecimento: entre o dar-se as mãos e o uso da boca do parceiro como urinol, onde ele a traçará? E mais, onde será que o juiz que o julgar a traçará?! Já para o rapaz e a moça que se gostam, que esticam os olhos um para o outro, o que se tem é o contrário: se não se entregarem aos prazeres da carne imediatamente, como se não houvesse amanhã (literalmente, pois o amor conjugal existe em função do amanhã: o matrimônio, repito sempre, é uma aposta no futuro, não uma celebração do presente), ai deles! Serão ridicularizados, espezinhados, mal-tratados. Se a Xuxa, do auge de seus sei-lá-quantos anos de idade, é “bem comida”, que palhaçada é essa da Mariazinha de querer esperar até o casamento? E seu futuro marido, então, terá até mesmo a própria masculinidade negada!



    Reitero o conselho que faz já umas boas décadas dou aos amigos atraídos por gente do mesmo sexo: armem-se. Aprendam uma arte marcial



Na verdade, o objetivo disso tudo, dessa campanha toda, dessa invenção maluca de modalidades identitárias fluídas, é justamente este: fragilizar e violentar a instituição conjugal. O que se quer é dissolver ao máximo a célula primeira da sociedade, que é a família, para que a atomização da sociedade em indivíduos torne mais fácil levá-los a depender em tudo do Estado e de grandes corporações. Hoje já se depende mais do banco, da tevê, da escola, do Facebook, do WhatsApp, do Tinder, e do próprio governo que da família e dos amigos, mais que em qualquer tempo anterior.  

Na Europa, onde essa atomização da sociedade já foi ainda mais longe, uma amiga que lá não tinha família foi comentar com uma sua amiga do trabalho algo sobre o comportamento do filho, e recebeu logo uma cortada: “a prefeitura tem psicólogos de graça!” A ideia é essa; que as crianças – na impossibilidade de serem geradas em chocadeiras, como no Admirável Mundo Novo – sejam filhas de mãe solteira e pai ausente, educadas pela escola e pela tevê, e assim se tornem mais consumidores que cidadãos, mais súditos que atores políticos. Para isso a sexualidade de um pequeno porcentual da população está sendo usada como bucha de canhão, como cunha para arrombar algo muito maior que ela, sem que os fautores do processo se interessem pelo que venha a acontecer com os que eles ora usam.



O STF deu um passo enorme neste sentido, e é isso que acontece já e acontecerá ainda mais, a não ser que de algum modo a sociedade tome em mãos as rédeas e freie a disparada deste cavalo cego e louco que ela monta e galopa célere rumo ao abismo. A imensíssima maioria do povo não gosta disso e não quer isso, e uma reação começa a se levantar, como a própria eleição de Bolsonaro aqui e Trump lá mostram. Uma pesquisa recente nos Estados Unidos mostrou que aumentou o porcentual de pessoas a quem desagradaria que o filho aprendesse “História LGBT+” na escola, ou mesmo que tivessem professores com atração sexual pelo mesmo sexo. Este último dado é muito perigoso. Não por demonstrar “homofobia”, mas por demonstrar a internalização dessa horrenda visão das pessoas como definidas por seus desejos, algo que (taí, al roviescio, um acerto do STF) é tão absurdo quanto defini-las pela cor da pele. Nunca ninguém, repito, atacou Cauby.



Já o excesso de campanhas de afirmação pública do que sempre se manteve entre quatro paredes, de beijos gay em novelas a coisas repulsivas como urinar na cara de alguém em público, e tudo o mais que vem dessa maluquice inicial de definir quem se é pelo que se busca, logo não se tem nem se é, estão fazendo com que aumente a violência desordenada que se pretenderia em tese combater. Isso precisa acabar, e logo.



Enquanto isso, reitero o conselho que faz já umas boas décadas dou aos amigos atraídos por gente do mesmo sexo: armem-se. Aprendam uma arte marcial. Ser usado como bucha de canhão – e é isso que se está fazendo com os supostos “LGBT+” – é coisa muito perigosa. Buchas de canhão são descartáveis.

Carlos Ramalhete - Gazeta do Povo


quinta-feira, 23 de maio de 2019

Nova confusão à vista no julgamento de Lula no TRF

O atual presidente do TRF-4 festejou a primeira condenação de Lula, no caso do tríplex. Agora ele deve julgar o recurso do petista no caso do sítio de Atibaia


Há uma nova confusão à vista entre a defesa do ex-presidente Lula e o Judiciário. No fim de junho, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região passará por uma dança de cadeiras. As mudanças vão afetar a 8ª Turma, que julgará o recurso do petista no caso do sítio de Atibaia. O desembargador Victor Laus, um dos três responsáveis pelos processos da Lava-Jato, assumirá a presidência do tribunal. Seu lugar na Turma deverá ser ocupado pelo atual presidente, Carlos Alberto Thompson Flores, antecipou ontem o portal Gaúcho ZH.

Flores festejou a primeira condenação de Lula, no caso do tríplex do Guarujá. O desembargador definiu a decisão do então juiz Sergio Moro como irrepreensível”. “Vai entrar para a história do Brasil”, celebrou, sem esperar os recursos da defesa. O repórter Luiz Maklouf Carvalho quis saber se o magistrado havia gostado da sentença. “Gostei. Isso eu não vou negar”, ele respondeu.  As declarações irritaram o ex-presidente. “Esse cidadão é bisneto do general Thompson Flores, que invadiu Canudos e matou Antônio Conselheiro. É da mesma linhagem”, retrucou Lula. [Qual o valor que tem a irritação de um ladrão condenado, presidiário encarcerado, contra sentenças que o condenam? Eles sempre vão se irritar.] 
 
Foi uma provocação infeliz. Tomás Thompson Flores era tio-trisavô, e não bisavô do desembargador. O militar era coronel, e não general. Além disso, ele não matou Conselheiro. Morreu três meses antes.  Seis meses depois do imbróglio, Flores voltou a cruzar o caminho de Lula. Quando seu colega Rogério Favreto mandou soltar o ex-presidente, o desembargador ligou para o então diretor da Polícia Federal, Rogério Galloro, e ordenou que ele ignorasse a decisão. Depois do telefonema, Flores se lembrou de desautorizar Favreto por escrito. Ele devolveu o caso a João Pedro Gebran, que desejava manter o ex-presidente na cadeia.

O advogado Cristiano Zanin, que defende o petista, estuda pedir a suspeição do desembargador. “Um juiz tem que ser e parecer imparcial”, afirma.  [necessário lembrar que esse competente advogado é o mesmo que pediu a um comitê de boteco da ONU para libertar Lula e autorizar que ele fosse candidato;
a suspeição só cabe quando um magistrado expressou opinião sobre processo no qual está atuando ou poderá atuar. 
No caso do processo do triplex, o desembargador Thompson Flores expressou sua posição, por não haver o menor risco dele atuar naquele processo.
Será mais uma derrota a ser 'comemorada' pelo eficiente advogado.] Anos atrás,  Lula condecorou Flores com a Ordem do Mérito Militar, concedida pelo Exército. Agora o desembargador caiu nas graças de Jair Bolsonaro. Há três dias, o presidente o escolheu para receber a Ordem do Mérito Naval, dada pela Marinha.

Bernardo Mello Franco, jornalista - O Globo

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

O vendedor de greves

Esforço para livrar Lula da lei prejudica mais a democracia do que as mentiras que ele diz

Sábado, o País ficou sabendo que o presidente Temer não se intromete em assuntos do Judiciário, mas resolveu meter sua colher imprópria no julgamento de Lula, hoje, no Tribunal Federal Regional da 4.ª Região (TRF-4), em Porto Alegre. À pergunta formulada em entrevista exclusiva pelos repórteres da Folha de S.Paulo Gustavo Uribe e Marcos Augusto Gonçalves sobre como vê o julgamento e se seria melhor que o réu concorresse nas eleições este ano, o presidente respondeu: “Não posso dizer uma coisa que está sob apreciação no TRF. Agora, acho que se o Lula participar, será uma coisa democrática, o povo vai dizer se quer ou não. Convenhamos, se fosse derrotado politicamente, é melhor do que ser derrotado (na Justiça) porque foi vitimizado. A vitimização não é boa para o país e para um ex-presidente”. Pois, segundo Temer, caso Lula seja impedido de se candidatar, isso vai “agitar o meio político”. Ora!

Não é o caso de aqui citar devotos, correligionários e parasitas oportunistas que sonham se coligar com Lula no pleito. Mas, sim, destacar figurões do governo e da oposição – Fernando Henrique Cardoso, Geraldo Alckmin, João Doria, Beto Richa, Ronaldo Caiado, Rodrigo Maia, Raul Jungmann – e vários interessados que dispararam esse mesmo truísmo absurdo e suspeito. No Estado de Direito, vigente no Brasil, não há a hipótese de candidatos escolherem que adversários preferem para a disputa. Ou há?

Eles deveriam é atentar para o pronunciamento de um eventual beneficiário da condenação do ex-líder metalúrgico hoje, o ex-governador do Ceará Ciro Gomes, presidenciável do PDT. Ciro disse que torce pela absolvição de Lula, mas se negou a crer que haja uma conspiração política no Poder Judiciário contra o petista. Em rara prova de lucidez, o ex-ministro do próprio disse que imaginar um complô “ofende a inteligência média do País”. E ainda advertiu que “a consequência inevitável desta constatação teria desdobramentos tão graves que a um democrata e republicano só restaria a insurgência revolucionária”. É isso aí!

Contrariando sua vocação de trânsfuga contumaz, ele é fiel ao juramento de cumprir e defender as leis do País, feito quando assumiu o governo do Ceará, em 1991. Ao contrário, o presidente e alguns citados, ainda vigente o juramento, cometem delito de lesa-pátria, rasgam a Constituição e posam de generosos e benevolentes. Segundo meu avô, de esmola grande cego desconfia. Não é o caso desses que se fingem de cegos para se dar bem no futuro, caso tenham de se submeter ao Estado de Direito, no qual todos têm de seguir a lei. Quem canoniza o réu investe no falso conceito de que voto substitui Justiça e cancela penas, como pregava Antônio Carlos Magalhães à época do mensalão. E deu no que deu!

Nisso, aliás, todos eles têm no condenado a nove anos e meio de cadeia por corrupção passiva e lavagem de dinheiro a mais completa síntese de campeões da patranha, celebrados nas figuras de João Grilo e Chicó na obra-prima da comédia popular brasileira O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. Basta lembrar que todos manifestam temer uma convulsão social com a eventual confirmação da condenação do Pedro Malasartes dos palanques e palácios. Afinal, ele seria o mais popular líder político do Brasil em todos os tempos. É mesmo? Por que, então, Lula não viaja em aviões de carreira como os mortais comuns e só comparece a eventos controlados pela militância cega por devoção e paixão?

Lula ascendeu entre heróis nacionais como líder das greves de metalúrgicos do ABC paulista em plena ditadura militar, da qual foi vítima. Na verdade, como está explicado no meu livro O que Sei de Lula (Topbooks, 2011), ele teve no general Golbery do Couto e Silva seu propulsor no início da carreira de dirigente. O criador do Serviço Nacional de Informações usou sua liderança carismática para impedir que Brizola empolgasse os movimentos sindicais e solapasse o regime. Emílio Odebrecht, pai de Marcelo, citado nas delações de 77 executivos de sua empresa e de quem Lula é o “Amigo” da tal lista, contou ao depor na delação premiada a procuradores federais da Lava Jato, a mais bem-sucedida operação policial e judicial da História, que Lula impediu greves em empresas suas, tendo recebido dinheiro para fazê-lo.

Foi nesse ínterim que Lula virou santo popular, por ter sido preso e processado após a intervenção no sindicato que presidiu nos anos 70 e 80. Mas sua passagem pela carceragem do Dops paulista à época da ditadura foi mais confortável que a de outros companheiros de cela, conforme testemunho do delegado Romeu Tuma Jr., secretário nacional de Justiça no primeiro governo Lula e filho do policial homônimo, em Assassinato de Reputações (Topbooks, 2013). Tuma relata que o falso mártir foi agente de informações do pai, a quem contava os segredos do movimento grevista. Se Odebrecht e Tuma não mentiram, em vez de vítima, o seis vezes réu de hoje foi, de fato, o que os colegas sindicalistas chamariam, à época, de “traíra” dos trabalhadores e “dedo-duro” dos militantes de esquerda, que sempre o endeusaram. Ninguém, até agora, desmentiu na Justiça os depoimentos aqui citados.

Em périplos pelo País, Lula conta lorotas que mais se acomodariam em narrativas das aventuras de grandes mentirosos do folclore. Como no caso recente em que algum intelectualoide do auditório do teatro Oi Leblon, núcleo de rebeldia juvenil na ditadura sob o nome de Casa Grande, lhe soprou que o assassino de Antônio Conselheiro foi ancestral do presidente do TRF-4, em que hoje está sendo julgado. De fato, o tio-trisavô de Thompson Flores era coronel, não general, e morreu três meses antes do beato de Canudos.

Essa foi apenas uma piada mentirosa e sem graça. Mais graves são as patranhas misericordiosas de pretensos adversários, como Temer, que põem as instituições em risco para tornar um mentiroso serial acima da lei e fora da democracia.
 
José Nêumanne - O Estado de S. Paulo 
 

domingo, 7 de janeiro de 2018

Salvadores da pátria

O sebastianismo é uma herança tão forte quanto o velho patrimonialismo das oligarquias brasileiras. Até caminham de mãos dadas, embora aparentemente se contraponham

A face mais popular do iberismo no Brasil é o sebastianismo, um mito messiânico originário do desaparecimento do D. Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos, a 4 de agosto de 1578. Menino ainda, assumiu o trono; o rei de Portugal morreu aos  24 anos e não deixou herdeiros. Em consequência, a primeira nação da Europa ocidental, que vinha de um exitoso ciclo de expansão marítima, mergulhou num período de frustração e desgoverno, sendo anexada pela Espanha em 1580. À época, o episódio personificou o mito do Encoberto, muito conhecido entre os cristãos-novos, por causa das profecias de Gonçalo Antônio Bandarra, um sapateiro de Trancoso, cujas trovas incomodavam a Inquisição:
“Augurai, gentes vindouras, / Que o Rei que daqui há-de-ir, / Vos há-de tornar a vir/ Passadas trinta tesouras. / Dará fruto em tudo santo, /Ninguém ousará negá-lo;/ O choro será regalo/ E será gostoso o pranto.”

Em sua defesa, Bandarra sustentou, perante os inquisidores, que havia se inspirado na Bíblia, ao ler os livros de Daniel, Isaías, Jeremias e Esdras, que profetizavam a vinda de um rei que traria, finalmente, a paz e a justiça aos povos da terra. Esse foi o ponto de partida para criação do mito, que mais tarde seria acalentado nas obras de Camões, do padre Antônio Vieira e até mesmo de Fernando Pessoa, que invoca o velho sebastianismo para mexer com os brios dos portugueses, diante da decadência em que se encontrava o seu país na primeira metade do século passado, desencantado com a República e a humilhação perante a Inglaterra.

Essa profecia de regresso de um salvador da pátria acabou tendo forte influência no Brasil, sobretudo no Nordeste. Ariano Suassuna, em seu Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, reconfigura o mito: “Guardai, Padre, esta espada, porque um dia hei de valer dela com os Mouros, metendo o Reino pela África adentro Dom Sebastião I — ou Dom Sebastião, O desejado — Rei de Portugal, do Brasil e do Sertão”.  

Descreve o sangrento movimento messiânico do qual participaram os antepassados do personagem-narrador, Pedro Dinis Quaderna, por volta de 1830, na cidade de São José do Belmonte (PE). Depois de sonhar com dom Sebastião, o sertanejo João Antônio dos Santos fundou um movimento messiânico que culminou na morte de 80 pessoas. Em maior escala, o messianismo ressurgiria no Brasil com o místico Antônio Conselheiro, líder dos jagunços de Canudos, no interior da Bahia.

Alguns líderes políticos, de certa forma, encarnaram o sebastianismo ou desejaram fazê-lo. É o caso do líder tenentista Luís Carlos Prestes, que se tornou um mito político depois de percorrer cerca 25 mil quilômetros, em 11 estados, durante dois anos, com sua coluna que chegou a ter 1.200 rebeldes. Cerca de 200 homens cobriram todo o percurso até se dispersarem, uma parte na Bolívia, outra no Paraguai. A adesão de Prestes ao comunismo, porém, reposicionou e limitou sua liderança, que acabou suplantada pelo governador gaúcho Getúlio Vargas, líder da Revolução de 1930, que governou o país por meio de uma ditadura, até 1945.

Espaço vazio
A legislação trabalhista e o salário-mínimo mantiveram inabalado o prestígio de Vargas após 15 anos de ditadura, possibilitando sua volta ao poder em 1950 pelo voto, embora o legado dele fosse além dessa fronteira, em razão da reforma do Estado e do seu papel na industrialização do país. Desde então, amalgamado ao populismo, o messianismo no Brasil tornou-se um fenômeno muito mais político do que místico-religioso, que sobrevive apenas nas festas populares, como nas Cavalhadas.

É nesse leito que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva manteve sua base eleitoral, depois de governar o país por oito anos, com programas compensatórios como o Bolsa Família, que facilitam a construção da imagem de suposto “pai dos pobres”, ainda que sua estratégia de desenvolvimento tenha fracassado e levado o país ao desastre econômico no governo Dilma. Nem de longe se compara ao legado de Vargas.

Do ponto de vista da política, o sebastianismo é uma herança tão forte quanto o velho patrimonialismo das oligarquias brasileiras. Até caminham de mãos dadas, embora aparentemente se contraponham. As alianças de Lula no Nordeste são um bom exemplo disso. No Brasil meridional, porém, o fenômeno não tem a mesma intensidade. O divórcio entre a política e a sociedade está gerando um outro tipo de liderança, de viés conservador e autoritário, que preenche o espaço vazio, no caso, a candidatura do deputado Jair Bolsonaro (PSC), mas que também se apresenta como “salvador da pátria”.

Os demais candidatos a presidente da República, embora com uma trajetória política mais orgânica e institucional, enfrentam dificuldades para se colocar como real alternativa de poder. O divórcio entre o Estado e a sociedade e a desmoralização dos partidos em razão do envolvimento de seus líderes com a crise ética fazem com que, no âmbito da sociedade civil, muitos procurem um novo São Sebastião fora do mundo da política. A rigor, nada impede que isso ocorra, mas ninguém vai resolver os problemas do país com reza ou num passe de mágica.

Luiz Carlos Azedo Jornalista e comentarista político